Archive for the ‘Contos’ Category

Núpcias

quinta-feira, fevereiro 15th, 2018

Tulipa amava Pedro que amava Luiza. Tulipa era irmã de Pedro. E Pedro, noivo de Luiza. Mais do que a própria noiva, Tulipa parecia eufórica à medida que se aproximava a data do casamento. Ligava quase todos os dias depois de voltar da faculdade.

“Você vem hoje?”, animava-se enquanto erguia as pernas e esfregava os pés um no outro, deitada de bruços em sua cama. (mais…)

Aparição no Rio Pinheiros

terça-feira, fevereiro 6th, 2018

A escritora descolada em busca de narrativas originais tinha quase tudo em mente: o episódio seria ambientado à beira do Rio Pinheiros, em São Paulo, quando o ser meio humano meio jacaré deixaria as águas com a naturalidade de um mergulhador. Na verdade, inicialmente o protagonista seria meio humano meio peixe, mas depois ela pensou que um pênis gigante confundindo-se com o rabão do jacaré poderia dar um tom picante ao texto, e isso bastou para que ela se decidisse. (mais…)

Mãos à obra

quarta-feira, janeiro 31st, 2018
Detalhe de "Vênus e as Três Graças", de Botticelli

Detalhe de “Vênus e as Três Graças”, de Botticelli

O testamenteiro sentou diante das mulheres, olhou para elas com curiosidade e disse lamentar muito, o Máximo era um excelente rapaz, mas sabemos como é a vida etc. etc. Tia Maria Antonia e Tia Antonia Maria estavam no escritório dele, num desses prédios imponentes da Faria Lima, sentadas em cadeiras de encosto alto, de modo que, com as costas bem apoiadas, não sofreriam com as dores em suas respectivas colunas, uma encrenca razoável que as perseguia desde a adolescência, quando foram vetadas para a equipe de vôlei do ginásio, o que era uma pena, dissera o professor de educação física, pois com essa estatura vocês seriam excelentes jogadoras. Tantos anos depois, superados os traumas esportivos e psicológicos (estes nem tanto), e confortáveis fisicamente, restava-lhes a dor na alma. (mais…)

Incidente no 21

terça-feira, janeiro 23rd, 2018

Havia se mudado para a Rua Iguatemi poucas horas antes de levantar-se e ir ao banheiro. Assim que começou a urinar, ouviu em meio ao silêncio escorregadio da madrugada idêntico ruído no apartamento de cima: líquido esguichando contra líquido, depois a descarga. Exausto, caindo de sono, enxugou as mãos na toalha presa ao suporte sobre o lavabo enquanto pensava que coincidência pode ser sinal de sorte. Sorriu para si mesmo, mas teve um sobressalto ao derrubar o suporte de metal. Nada demais quanto ao pequeno incidente, a não ser pela nítida impressão de ter ouvido barulho semelhante acima de sua cabeça. Esperou por alguns segundos sem mover-se, abriu e fechou a torneira, derrubou novamente o suporte, desta vez propositalmente, apertou mais uma vez o botão da descarga, mas tudo que pôde ouvir foram os ruídos causados por ele mesmo. Depois dormiu. (mais…)

Cachecol

segunda-feira, janeiro 15th, 2018

Cruzou com ele em frente ao Masp. Era um dia frio em que a maioria das pessoas vestia blusas e jaquetas. Ele estava também de cachecol cuja franja de lã escorregou com o vento e lambeu o ombro esquerdo de Luciana. Do instante em que ela o avistou até perdê-lo na linha final do olhar periférico, foram apenas alguns segundos, mas assim mesmo reconheceu-o. Não tinha como não reconhecê-lo. Seu rosto ainda permaneceu por um bom tempo como uma máscara enfiada em todas as cabeças dos pedestres à medida que ela avançava pela Avenida Paulista. A surpresa absorveu-a de tal modo que chegou ao Metrô Trianon sem ter planejado. Só então lembrou-se do café, lá atrás, onde tinha a entrevista de trabalho. Segurou a bolsa com força e começou a fazer o caminho de volta. A cada passo, vasculhava angustiada em meio à multidão. Não sabia explicar a si mesma o porquê de desejar vê-lo novamente. Era uma sensação desconfortável e ao mesmo tempo de um prazer brutal. Já à mesa, depois de cumprimentar a gerente de novos negócios da empresa onde pretendia trabalhar, abarcou disfarçadamente o entorno com um rápido olhar e, sem qualquer expectativa, deparou-se com o cachecol. (mais…)

Índia

terça-feira, janeiro 9th, 2018

Tremia feito vara verde. Embora nunca tivesse prestado atenção a uma vara verde. Na verdade, conhecia apenas varas pretas. Sorriu para si mesma com um desalento mórbido. Não adiantava fazer graça com a própria desgraça. Caçoar da gente, como receitava a avó, para aliviar a vida. O medo que sentia acossava sua retaguarda, seus flancos, o próximo passo. Vinha de todos os lados. Ela pisava com insegurança como se corresse o risco de desabar a qualquer momento, mantinha-se de cabeça abaixada, o próprio ar parecia pressioná-la como o bafo de um inimigo no escuro. Pensamentos ruins iam passando fugazmente pelo sangue de Índia. Só que nenhum deles podia ser comparado a esta sensação, aqui, no meio da rua. Nem o que sentiu na primeira vez, quando percebeu todos os olhares em cima dela e de seu corpo, de seu jeans apertado, nem quando teve a certeza de sua sorte, nada disso chegou a incomodá-la como agora. Aos trancos e barrancos formulou uma tese que lhe pareceu aceitável. O medo quando a pegaram pela primeira vez era apenas o resultado de um processo natural de seu cotidiano. Quase todas as meninas que ela conhecia também tinham sido subjugadas. Com raiva, lembrou-se de como depositara a desgraça toda na prateleira dos episódios banais de sua existência. (mais…)

Dona Carmem Vermelha e o forasteiro da mesa 7 (Um quase-faroeste)

quinta-feira, outubro 19th, 2017

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Guillermo Jesus pisou em Cafelândia numa manhã poeirenta de 1926, dia em que a pequena cidade recém-emancipada comemorava a festa de sua padroeira, Nossa Senhora da Assunção. Haveria, logo mais à tarde, uma procissão. Desde a manhã, sob os rojões espocando no ar seco de agosto, começavam a chegar da zona rural punhados de sitiantes e colonos. O domingo prometia ser supimpa, como lembrou Dona Carmem Vermelha quase duas décadas depois, em 2 de setembro de 1945, também um domingo, ocasionalmente marcado pelo fim da Segunda Guerra Mundial. Ela se animava então a contar a um enigmático freguês os acontecimentos daquele longínquo e fatídico dia em que tudo se passou exatamente aqui, disse ela, dentro destas mesmas paredes. (mais…)

Vítimas do trem noturno

domingo, maio 22nd, 2016

Só mais dez minutos, eu disse baixinho sem quase mover os lábios para que eles não me ouvissem. Apesar de tudo, eu tentava mostrar naturalidade. Juliana apertava tão forte minha mão que chegava doer. (mais…)

O viúvo influenciável e a puta velha de García Márquez

sexta-feira, fevereiro 19th, 2016

Leu o conto de García Márquez sobre a puta velha que treina o cachorrinho para chorar em seu túmulo porque acha que vai morrer, e naquela mesma noite sonhou com uma impressionante tristeza jamais sentida. Estava em pé num lugar incerto e vazio, cercado pela escuridão, de onde ouvia latidos vagos que imaginava ser do cãozinho vira-lata com quem havia dez anos dividia seu apartamento de viúvo. Influenciável que era, acordou certo de sua própria morte. (mais…)

Como a gente, não tinha igual

terça-feira, setembro 29th, 2015

Antes que Lola lhe dissesse qualquer palavra, ele compreendeu. Não sabe explicar se foi pura intuição, se foi o resultado de reflexos apreendidos da fisionomia pesada da mensageira ou, até, se foi algo tão previsível que ele próprio já sabia antes mesmo que acontecesse. Num ato de desespero, tentou reconstruir os últimos dias, talvez para enfiar-se num melodrama capaz de esvaziá-lo da angústia que subiu pela garganta feito um arroto amargo. (mais…)