Archive for dezembro, 2002

Vapor

domingo, dezembro 29th, 2002

O homem sem planos é uma água empoçada: vai aos poucos evaporando. Mas, como toda regra tem sua exceção, excluamos dessa verdade o mau político. Ele quase nunca evapora. Talvez seu plano seja mesmo apenas este: não evaporar.

Abuso

domingo, dezembro 22nd, 2002

No elevador, na calçada ou onde for, privo-me de um carinho destinado à criança dos outros. Só o faço na presença dos pais, e olhe lá. Como posso dar o que mais precisa a criança, se nessa hora, sugestionado pelos ventos, alguém pode confundir meus amores?

Ontem

quinta-feira, dezembro 19th, 2002

Às vezes, no olho do furacão, consigo divisar à margem, plácidas, minhas recordações. Quero alcançá-las e afagá-las, mas não posso mais. Tenho até a impressão de que elas caçoam de mim. Também, quem mandou pararem no tempo?

Bush

terça-feira, dezembro 17th, 2002

Atacar ou não atacar, eis a questão. Bush é, em geral, o arquétipo da sociedade moderna. Não queremos mais saber se somos ou não somos. Desejamos apenas discutir se atacamos ou não atacamos. Shakespeare que se dane.

Fome

segunda-feira, dezembro 16th, 2002

A constatação de que ser rico num país como o nosso passou a ser pecado está ultrapassada. A dinâmica da pobreza é fantástica. Os parâmetros deterioram-se velozmente. Digo isto: depois do almoço, por mais que eu escove os dentes, custa a abandonar-me o gosto amargo da saciedade.

Ilha

domingo, dezembro 15th, 2002

Engraçado. Estou me culpando há várias semanas por ter parado ao meio a leitura de “A Ilha do Dia Anterior”, de Umberto Eco. Andei patinando no claustro de Roberto, sabe? É que antes li “Baudolino”, de quem estou morto de saudades.

Reclusão

sábado, dezembro 14th, 2002

Às vezes, chamam-me recluso ou, vá lá, sumido. Eu gosto de ser recluso ou sumido. Nessas horas de reclusão ou sumiço, meto-me à procura de minha liberdade. Quero certificar-me de que ela não morreu.

Homo sapiens

sexta-feira, dezembro 13th, 2002

O homem endureceu. Tantas foram as pancadas no couro do lombo, que o pêndulo de suas emoções suspendeu o balanço. Houve, aos poucos, a interrupção, ora hesitante, ora convicta. Ao olhar para o homem na rua, vejo-o duro demais. Não sei se volta a amolecer. Minha impressão é esta mesmo: endureceu.

Vítimas

domingo, dezembro 8th, 2002

Na esquina, o garoto enche com sua cara suja a janela do meu carro. Sem dinheiro no bolso, eu hoje não posso dividir o bolo. Minha impressão: o futuro dele já era, está condenado a cair nas garras da violência. Minha audição: Deus te abençoe, moço.

Distante

sábado, dezembro 7th, 2002

À distância, o interminável conflito entre judeus e palestinos surge-nos como um circo de horrores. É verdade que nos impressiona, mas não nos altera. A distância, aliás, é uma anestesia eficaz nesses casos. Não vê como são longínquos os universos separados pela espessura de nossa porta?