Archive for março, 2018

Cavalo Branco

terça-feira, março 20th, 2018

Trouxeram-lhe a bebida, mas Natália mal notou. Estava tão absorta pelo ambiente e, claro, pela música, que disse “obrigada” quando o garçom já tinha desaparecido. Observou com curiosidade as silhuetas dançantes sob as poucas luzes instaladas próximas ao teto elevado e estiloso, cujas telhas francesas entremeadas por algumas de vidro filtravam um pouco da claridade externa, às vezes até mesmo a lua alta e cheia. Tudo parecia como antes, pensou ao dar uma olhada geral pelas dependências. Talvez a maior diferença estivesse situada nela própria, rodou o copo entre as mãos com uma mistura de nostalgia e apreensão. Queria evitar uma comoção estúpida, mas ao mesmo tempo sentia o peito contrair-se, o coração batia levemente descompassado à medida que sua respiração oscilava. Molhou os lábios com a esperança de resgatar a estabilidade emocional, mas o máximo que conseguiu foi sentir o álcool queimar a garganta, depois um calorzinho entusiasmou-a momentaneamente. Perguntou-se se teria tomado a decisão certa. Virou um trago e tentou avistar o palco. Sentara-se bem lá atrás, o velho bar estava lotado e muita gente dançava na pista e entre as mesas. (mais…)

Hipóteses

quinta-feira, março 15th, 2018

Deitado de costas, viu que, no meio do céu, a lua fatiava-se em duas conforme o movimento das pálpebras, às vezes ganhava uma coloração âmbar, depois empalidecia atrás de uma membrana oscilante. Virou a cabeça para seu lado esquerdo, de onde vinha um som de respiração lenta e pesada, mas estava escuro demais, além do que suas forças não inspiravam grandes projetos físicos. Sentia uma tontura extenuante, era difícil manter o mundo em ordem. Fechou os olhos e tentou por algum tempo entregar-se a uma imobilidade absoluta, interrompida apenas por espasmos dos membros. O plano beirava a algo infantil, mas sua condição deplorável limitava-o a esse estágio do pensamento, nesse caso a esperança, logo tornada vã, de despertar de um pesadelo qualquer. Ao certificar-se resignado de seu estado de vigília, empreendeu um movimento cauteloso, esticou o braço esquerdo até onde pôde no rumo da respiração ofegante. Na verdade, era nada mais que o resultado do vento rodopiando sobre um tecido que ele reconheceu como sendo o próprio casaco embolado no chão. Com o mesmo cuidado, recolheu o braço sobre o peito, puxando junto o casaco, e então o ruído dissipou-se e tornou-o único na imensidão escura. (mais…)