“Quando eu falava dessas cores mórbidas
Quando eu falava desses homens sórdidos
Quando eu falava deste temporal
Você não escutou
Você não quer acreditar, mas isto é tão normal”
(Trecho de "Paisagem na janela", de Lô Borges e Fernando Brant)
“E sua irmã?”, perguntou o pai. Não tirou os olhos do prato.
Miriam apenas balançou a cabeça negativamente. Arrastava o garfo para lá e para cá em meio ao arroz.
“Você sabe para que é seu celular, não sabe?”
“Sei”, mastigou a comida sem perceber. Concentrava-se para pensar em coisas distantes que lhe exigissem toda a capacidade de abstração. Naquele momento esculpia pedras flutuantes no espaço sideral.
“Deixa ver.”
Miriam empurrou o aparelho até bem perto dele. O pó das rochas zanzava na escuridão. Refletia vagos brilhos estelares. Desenhos de todos os tipos.
“Quem é Silvinho?”
“Trabalho de escola, tá escrito aí.”
O homem olhou para Miriam por alguns segundos. Depois correu os olhos pelas mensagens.
“Não me esconda nada”, ele voltou a comer em silêncio.
Miriam puxou o telefone de volta. A rocha transformara-se num pequeno amuleto. Mas desapareceu quando, sem querer, ela viu um grão de arroz dançando por entre os fios do bigode do pai. Teve nojo. (mais…)