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Depois do jantar

quarta-feira, abril 18th, 2018

“Quando eu falava dessas cores mórbidas
Quando eu falava desses homens sórdidos
Quando eu falava deste temporal
Você não escutou
Você não quer acreditar, mas isto é tão normal”

(Trecho de "Paisagem na janela", de Lô Borges e Fernando Brant)

“E sua irmã?”, perguntou o pai. Não tirou os olhos do prato.

Miriam apenas balançou a cabeça negativamente. Arrastava o garfo para lá e para cá em meio ao arroz.

“Você sabe para que é seu celular, não sabe?”

“Sei”, mastigou a comida sem perceber. Concentrava-se para pensar em coisas distantes que lhe exigissem toda a capacidade de abstração. Naquele momento esculpia pedras flutuantes no espaço sideral.

“Deixa ver.”

Miriam empurrou o aparelho até bem perto dele. O pó das rochas zanzava na escuridão. Refletia vagos brilhos estelares. Desenhos de todos os tipos.

“Quem é Silvinho?”

“Trabalho de escola, tá escrito aí.”

O homem olhou para Miriam por alguns segundos. Depois correu os olhos pelas mensagens.

“Não me esconda nada”, ele voltou a comer em silêncio.

Miriam puxou o telefone de volta. A rocha transformara-se num pequeno amuleto. Mas desapareceu quando, sem querer, ela viu um grão de arroz dançando por entre os fios do bigode do pai. Teve nojo. (mais…)