Aparição no Rio Pinheiros

A escritora descolada em busca de narrativas originais tinha quase tudo em mente: o episódio seria ambientado à beira do Rio Pinheiros, em São Paulo, quando o ser meio humano meio jacaré deixaria as águas com a naturalidade de um mergulhador. Na verdade, inicialmente o protagonista seria meio humano meio peixe, mas depois ela pensou que um pênis gigante confundindo-se com o rabão do jacaré poderia dar um tom picante ao texto, e isso bastou para que ela se decidisse.

Por mais assustador ou por mais que sua aparição fosse fantástica, o monstrengo passaria batido para os motoristas da marginal. Logo em seguida, comeria um cachorro idiota cujo crime fora avançar em sua direção, e então, aí sim, a partir da indignação de um defensor da causa animal que por acaso passava ali perto, todo mundo começaria a dar bola para a figura impressionante. No entanto, em vez de desespero, correria, engavetamento de veículos e coisas do tipo, a indignação do carinha da ONG animal seria engolida pela ação de três adolescentes correndo até o Jacaromem com seus celulares devidamente posicionados para uma “selfie duca”.

Motoristas começavam a descer de seus carros no meio da pista, uma aglomeração crescia à margem do rio e a movimentação já atraía helicópteros com repórteres que sobrevoavam a área para seus mecânicos e infindáveis relatos sobre as condições do trânsito. Não tinha como ser uma alucinação coletiva, e a escritora achava difícil que, além dela, todos aqueles personagens anônimos tivessem fumado maconha ao mesmo tempo no meio de uma tarde ensolarada do verão paulistano. Um dos três adolescentes que chegaram primeiro ao local da cena teve o insight (ela achou por bem usar o termo inglês para mostrar modernidade e, talvez, algum charme) de puxar papo com o Jacaromem, e puft: não é que ele falava?

Falava e, mais que isso, parecia entusiasmar-se a cada instante, inflando o peitão esverdeado ou marrom (essa cor ainda estava sendo definida na cabeça da escritora) a cada nova pergunta do público, então já uma verdadeira multidão. Perfeitamente em pé, encolhendo ao máximo seu pênis-rabo entre as gordas patas, afastando disfarçadamente os ossinhos do finado cãozinho, o Jacaromem logo tratou de justificar a primeira demonstração de suas preferências gastronômicas, sabe como é, em algumas partes do mundo isso é comum.

No meio da galera (a escritora de repente lembrou-se da necessidade de um vocabulário mais próximo da, da, como dizer, da galera, velho!), o líder da causa animal tentava protestar contra as observações feitas pelo Jacaromem, mas seu esforço mostrava-se inútil, pois o interesse crescia vertiginosamente na direção do novo habitante da metrópole, na sua maneira de falar (como se estivesse sempre meio engasgado ou com algum furo permitindo a entrada do ar em seu aparelho vocal) e especialmente em seus olhos, absolutamente humanos.

A escritora percebeu que o sol escaldante incomodava o Jacaromem. Sua boca de extensas mandíbulas permanecia cada vez mais aberta, uma baba viscosa escorria pelos lados, de pouco em pouco ele abaixava-se e, de quatro, refrescava-se no rio imundo, mas logo um grupo de bombeiros chamado ao local esticou a mangueira até poder molhá-lo de minutos em minutos. Com as patas dianteiras, ele mesmo tomou a liberdade de apoderar-se da borracha para beber. Depois trouxeram-lhe um galão de água mineral, e também quiseram dar-lhe chocolate e cachorro-quente comprados em barraquinhas de camelôs que começavam a ser erguidas entre o rio e a marginal. Ele, no entanto, parecia desconfiado e apenas farejava os mimos enquanto conversava com o público.

O primeiro susto da escritora irrompeu quando, do meio da multidão, surgiu um sujeito de paletó e gravata dizendo sobre a necessidade de botar ordem na casa. Em seguida, posicionou-se ao lado do Jacaromem, cochichou algo em seu ouvido (que na verdade assemelhava-se a uma cratera) e avisou a todos que a partir de agora eu e meu cliente vamos estar cobrando por entrevistas, vamos estar abrindo também a possibilidade de uma exclusiva, desde que, claro, negociemos um preço razoável. A escritora era contra estar permitindo tamanho absurdo, mas não conseguiu despachá-lo da narrativa e muito menos da margem do rio: o empresário não passava de um escroto, ela escreveu com vingança e prazer!

Olhando na direção da água monótona do Pinheiros, amarelecida pelo reflexo do sol, a escritora também avistou, sem esperar por isso, a figura retilínea e grisalha de seu terapeuta, o Doutor Cavablanco. O médico tomava notas de um modo que a deixou intrigada, pois, ao invés de observar o monstrengo à beira do rio, ele ocupava-se das atitudes e reações dos frequentadores da cena toda. No entanto, logo perdeu sua silhueta em meio ao aglomerado.

Voltando-se na direção do núcleo da narrativa, a escritora sentiu o coração gelar quando, sem que ela tivesse planejado, o Jacaromem, talvez cansado e esfomeado após duas horas seguidas de conversa fiada e entrevistas descabidas, abocanhou o braço de um dos repórteres, retorceu-o girando duas vezes em torno de si mesmo (todo mundo já viu um crocodilo fazendo isso com os gnus) e arrancou-o de seu dono. O sangue esguichou sobre o rio.

Só então a escritora também desceu do carro e começou a gritar de horror enquanto o Jacaromem esticava-se para observá-la com indiferença sobre todos aqueles celulares erguidos acima de cabeças trespassadas pela ideia de não perder um segundo do inédito show.

* Este conto integra o livro "O criador de tudo" (não publicado)
* Para ler "Índia", clique aqui
* Para ler "Cachecol", que faz parte do mesmo livro, clique aqui
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4 Responses to “Aparição no Rio Pinheiros”

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