Cachecol

Cruzou com ele em frente ao Masp. Era um dia frio em que a maioria das pessoas vestia blusas e jaquetas. Ele estava também de cachecol cuja franja de lã escorregou com o vento e lambeu o ombro esquerdo de Luciana. Do instante em que ela o avistou até perdê-lo na linha final do olhar periférico, foram apenas alguns segundos, mas assim mesmo reconheceu-o. Não tinha como não reconhecê-lo. Seu rosto ainda permaneceu por um bom tempo como uma máscara enfiada em todas as cabeças dos pedestres à medida que ela avançava pela Avenida Paulista. A surpresa absorveu-a de tal modo que chegou ao Metrô Trianon sem ter planejado. Só então lembrou-se do café, lá atrás, onde tinha a entrevista de trabalho. Segurou a bolsa com força e começou a fazer o caminho de volta. A cada passo, vasculhava angustiada em meio à multidão. Não sabia explicar a si mesma o porquê de desejar vê-lo novamente. Era uma sensação desconfortável e ao mesmo tempo de um prazer brutal. Já à mesa, depois de cumprimentar a gerente de novos negócios da empresa onde pretendia trabalhar, abarcou disfarçadamente o entorno com um rápido olhar e, sem qualquer expectativa, deparou-se com o cachecol.

Não tinha como não reconhecê-lo. Vira-o pela primeira vez ainda no consultório do Doutor Cavablanco, havia uns bons anos. Ainda que logo de cara tivesse tentado estabelecer uma fronteira entre o domínio do próprio equilíbrio e aquele sentimento abrupto e desconhecido que a tomava como uma tempestade, suas forças foram insuficientes para recusar a invasão. Foi como um fogo que a queimasse de dentro para fora. Não sabia de sua origem, não podia simplesmente apagá-lo. Tinha feito dezesseis anos uma semana antes. Os pais haviam adiado a consulta para depois do aniversário. Assim não complicamos ainda mais as coisas, a mãe confidenciara por telefone à secretária do médico. Desde os catorze anos, o comportamento de Luciana alterava-se visivelmente durante o ciclo menstrual. No início, apenas o irmão sentia os efeitos de suas reações intempestivas. No entanto, por ser dois anos mais novo, não davam bola para suas queixas. Até o dia em que ela tentou empurrá-lo da sacada do oitavo andar. Luciana só queria ver como seria a queda, marcar quantos segundos levava para chegar lá embaixo, essas bobagens. Nada demais, até despertar de seu periódico transtorno e culpar-se por atitudes cuja procedência não podia explicar.

Acompanhada da mãe, ela observou o adolescente de cabelos nos ombros, lábios finos e desenhados como se sorrissem um sorriso eterno, e os olhos muito pretos assombreados por espessas sobrancelhas praticamente interligadas. Sentado à sua frente, mantinha um ar circunspecto, como se nada ali tivesse importância ou como se tudo ali o aborrecesse. Luciana desviara o olhar a tempo quando ele parecia estar erguendo as sobrancelhas em sua direção. Tentou fixar-se num quadro na parede do lado oposto, uma figura curiosa cujos cabelos ralos e olhos arregalados assemelhavam-na ao Saturno de Goya ou, pensou ela vagamente, seria mais uma daquelas obsessões em que as imagens vistas durante suas aulas de pintura multiplicavam-se sem sentido em outros ambientes. Ela procurava centrar toda sua atenção na tela, e o garoto agora a fulminava de modo acintoso. Ela não o via diretamente, mas sabia. Sentia o peso de seu olhar. Doía-lhe a pele do rosto como nos dias em que se queimava ao sol sem protetor. Não pôde manter-se sentada. Precisava mover-se e recuperar o ritmo natural da respiração. Foi ver o quadro de perto. Leu no canto inferior direito a assinatura do Doutor Cavablanco e de mais uma pessoa, um jornalista. A figura vomitava uma longa folha de papel onde não havia uma letra sequer. Permaneceu estática por um minuto ou mais, como se analisasse a pintura, coisa que não conseguia de modo algum. Mesmo de costas, estava hipnotizada por aquele olhar.

À noite, em casa, revirou-se na cama. Não dormia de jeito nenhum. Recapitulou com rigor cada momento da intersecção nebulosa e intrigante que os uniu durante vinte minutos. Não reteve qualquer fragmento da conversa com o médico. A imagem do garoto que devia ter a idade dela ocupava toda sua capacidade de pensar. Os olhos faiscantes, as sobrancelhas interligadas, o sorriso eterno. De repente, lembrou-se. Vasculhou no celular um de seus grupos no zap e pronto. Lá estava ele. O centro de uma investigação policial cujo rebuliço refletira como uma bomba nas redes sociais, embora os efeitos de sua explosão já tivessem diminuído razoavelmente em nome de outros episódios chocantes. Releu uma a uma as mensagens. Vocês viram isso? Quem é? Não sei, mas é muito gato! Não brinca, vai! Eu pegava! Viu o que ele fez? Ah, não consigo parar de ver essa foto! Será que ele é lisinho assim em tudo? Uau! Que boca é essa? Gente, o carinha é maluco! Hahahaha! Eu é que fiquei maluca por ele. Luciana rolou a conversa. Acessou dois ou três links de reportagens. Claro que não havia foto nem nome, mas o grupo já tinha tudo isso em seus mínimos detalhes.

O caso era controverso. A irmã gêmea do garoto sofrera um pesado bullying depois de ter sido flagrada, ao menos era isso que diziam, chupando um colega de turma no banheiro da escola. No início, foram apenas cochichos e trocas de mensagens restritas a grupinhos nas redes sociais. Mas, como todos sabiam, tudo que cai na rede um dia vaza. Boqueteira, Putinha do Segundo, Mamadeira e outros termos obscenos passaram a habitar o espectro acusatório formado a partir das convenções estabelecidas logo cedo por ideias machistas extremamente arraigadas em nossa sociedade, conforme comentou a professora de filosofia ao analisar o episódio. Curiosamente livre de qualquer carga negativa sobre os ombros largos da academia, o parceiro sexual da irmã gêmea do garoto em nada colaborou para amenizar as circunstâncias. Ao contrário, passava a clara impressão de orgulhar-se da exposição pública. Foi, pelo que lembrou Luciana, a primeira vítima do garoto. Até que todo o caso se desenrolasse, a polícia não soube explicar como alguém pôde ter um dos pés amputados numa dessas engenhocas de ferro que cravam suas garras na pata da caça. No mesmo banheiro da cena que desencadeou toda aquela histeria. Mas sobre esse episódio específico ela não encontrou nada na imprensa, apenas nas conversas do zap, junto com outras pequenas proezas cuja veracidade nenhum dos membros preocupou-se em checar em meio a um gênero febril de difusão que dava ao garoto o status de mito juvenil na arte da vingança.

A irmã gêmea era uma aluna aplicada e discreta, Luciana leu em uma das reportagens. Gozava de uma espécie de superproteção da parte do garoto. Nada do que acontecesse a ela passava despercebido por ele. Ler todos os dias aquelas palavras que apareciam dirigidas à irmã, escritas nos azulejos do banheiro ou nos muros do pátio, e reproduzidas nas vísceras expostas das redes sociais, doía mais do que se fossem destinadas a ele próprio, disse à imprensa o advogado da família. Ele sofria muito com toda a pressão, contou um amigo que preferiu não se identificar. Enquanto lia tudo e inteirava-se do caso, Luciana sentiu contrariada que lhe escorriam lágrimas já fazia tempo. A cada nova informação que encontrava nos portais de notícias, voltava ao grupo do WhatsApp para olhar com carinho a foto do garoto. Era uma imagem corriqueira. Alguém a ampliara talvez com a intenção de excluir os demais fotografados, e isso prejudicou um pouco o foco. Mesmo assim era possível visualizar seu rosto e parte do tronco. Estava sem camisa, tinha o peito completamente liso e os mamilos pareciam verrugas dilatadas. Isso a excitou. Sentiu raiva do formigamento logo acima do púbis, queria evocar repulsa, porém não conseguiu evitar uma onda de saliva que a fez engolir e engolir várias vezes enquanto, feito um animalzinho selvagem, uma das mãos deslizava entre as pernas. Achava que queria afastá-lo, mas como num mantra inconsciente estava cada vez mais chamando-o para si.

O delegado disse a um repórter que a tragédia poderia ter sido evitada por detalhes. Ele não acreditava, por exemplo, que o garoto pudesse fazer o mesmo trajeto sanguinário caso tivesse encontrado alguém no apartamento da família ao voltar para casa antes mesmo de pegar o ônibus para o colégio naquela manhã. Mas não havia ninguém lá, lamentou o policial. Os pais saíam para trabalhar sempre antes dos filhos irem para a escola. Naquela manhã, um dos porteiros viu quando os irmãos desceram, mas tão logo pisaram na calçada diante do edifício retornaram abruptamente. A câmera do elevador mostra a primeira estocada. Sem demonstrar qualquer alteração, como se estivesse brincando com um colega, ele a golpeia depois de pegá-la pela nuca. Bate com a testa dela três vezes no vidro do espelho. A irmã parece perder os sentidos, mas não inteiramente, pois ele consegue levá-la até a porta do apartamento sem grande esforço. Dali, ele a empurra para dentro com violência. E fecha a porta. Um morador viu o sangue no elevador e a partir daí as coisas deram-se rapidamente. O segurança subiu até encontrar as marcas vermelhas no piso do oitavo. No 82, gotas de sangue ainda coagulavam lentamente num risco atravessando a porta na diagonal. Depois de tocar a campainha, ligou para a polícia.

A primeira coisa que chamou a atenção dos policiais foram as letras garrafais pintadas no muro alto em frente ao edifício: BOM DIA, CHUPA-ROLA. A tinta vermelha do spray brilhava ao sol como se fizesse parte de um festivo letreiro de parque numa manhã de um domingo qualquer. Arrombaram a porta antes de a campainha ter soado pela segunda vez. Os irmãos gêmeos estavam sentados lado a lado no sofá. Ele a abraçava como se devesse protegê-la de uma iminente catástrofe, um dos braços a enrodilhava pelas costas, o outro cobria-lhe o colo, mantinha os olhos fechados e parecia embalá-la com a cabeça em seu ombro. Não dava para ver a expressão da irmã. Ele a asfixiara com um saco transparente, e o sangue dos ferimentos espalhara-se por dentro do plástico lembrando um saquinho de Ketchup que tivesse inchado. Luciana entortou a boca com nojo ao conceber a imagem. Obrigou-se a suspender o suave movimento da mão direita e do quadril, estava de bruços e quando olhou para os dedos percebeu-os manchados de sangue. Quis ver a foto de novo, e o garoto parecia olhá-la profundamente, só a ela, teve a impressão de um leve movimento de suas sobrancelhas, os lábios entreabriram-se. Luciana aproximou o celular e beijou-o, tocou a tela do aparelho com a língua, a mão novamente enfiou-se entre as coxas, o quadril avançou em estocadas violentas que só diminuíram mais tarde, quando ela já desejava ser a irmã gêmea.

A gerente de novos negócios dizia qualquer coisa a respeito de desenvoltura, assertividade e café esfriando, quando Luciana conseguiu observá-lo de um ângulo reto em meio a outras mesas. As linhas da face haviam endurecido, as sobrancelhas pareciam estar mais separadas, embora os olhos mantivessem a mesma força. Já os lábios continuavam praticamente idênticos em seu sorriso eterno. No entanto, por mais que insistisse mentalmente, Luciana não encontrava algo que captara no consultório e, depois, especialmente na foto do grupo do zap. O garoto protetor, meigo e terno que matara a irmã gêmea havia se tornado um homem comum que veste cachecol no frio.

* Conto integrante do livro "O criador de tudo" (não publicado)
* Para ler "Índia", que faz parte do mesmo livro, clique aqui
* Para ler "Incidente no 21", clique aqui
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* Para ler "Aparição no Rio Pinheiros", clique aqui

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2 Responses to “Cachecol”

  1. […] * Este conto in­te­gra o li­vro “O cri­a­dor de tudo” (não pu­bli­cado) ** Para ler “Ca­che­col”, que faz parte do mesmo li­vro, cli­que aqui […]

  2. […] de tudo” (não pu­bli­cado) ** Para ler “Ca­che­col”, que faz parte do mesmo li­vro, cli­que aqui *** Para ler “Ín­dia”, […]