Mãos à obra

Detalhe de "Vênus e as Três Graças", de Botticelli

Detalhe de “Vênus e as Três Graças”, de Botticelli

O testamenteiro sentou diante das mulheres, olhou para elas com curiosidade e disse lamentar muito, o Máximo era um excelente rapaz, mas sabemos como é a vida etc. etc. Tia Maria Antonia e Tia Antonia Maria estavam no escritório dele, num desses prédios imponentes da Faria Lima, sentadas em cadeiras de encosto alto, de modo que, com as costas bem apoiadas, não sofreriam com as dores em suas respectivas colunas, uma encrenca razoável que as perseguia desde a adolescência, quando foram vetadas para a equipe de vôlei do ginásio, o que era uma pena, dissera o professor de educação física, pois com essa estatura vocês seriam excelentes jogadoras. Tantos anos depois, superados os traumas esportivos e psicológicos (estes nem tanto), e confortáveis fisicamente, restava-lhes a dor na alma.

Haviam cuidado de Máximo desde que ele era “Mínimo”, como costumavam brincar já em sua fase adulta. Depois do acidente com os pais, as responsabilidades de criá-lo e educá-lo recaíram sobre a única parte viva que sobrara da pequena família. Fizeram de tudo por ele, desde dar banho até levá-lo para a prova do vestibular. Foi também a elas que ele prestou queixa daquela pelezinha incômoda na ponta do pipi, e foram também elas que fizeram os curativos depois do procedimento para tratar a fimose. Mãos à obra, minha filha, mãos à obra, minha filha, diziam entre si e, sempre animadas, iam cumprindo as tarefas referentes ao pimpolho. Máximo parecia não se importar com os excessos das tias e tampouco com o bullying imposto por colegas que em certos períodos da infância gritavam-lhe "lá vai o mimadinho".

Em meio a uma austeridade às vezes interrompida pelo espírito sardônico desenvolvido por anos de certo isolamento social, não encontravam dificuldades para recuperar o humor do garoto nas raras ocasiões de abatimento. Por sua própria experiência, elas conheciam o lado sádico de vizinhos e conhecidos. Comportamentos considerados distintos em relação ao senso comum pareciam incomodar inexplicavelmente pessoas com as quais não mantinham qualquer tipo de relação. Solteiras, as gêmeas sofriam – e enfrentavam de cabeça erguida – preconceito duplo. Mãos à obra, minha filha, mãos à obra, minha filha, e seguiam adiante, a cada dia mais alheias às convenções, e despreocupadas com as cobranças sociais e comportamentais.

A certa altura, já totalmente intolerantes a regras e imposições, passaram a divertir-se com a própria semelhança física. Idênticas em tudo, decidiram ludibriar a todos. Iam saborear uma íntima e deliciosa vingança. Nos cheques bancários ou para tirar ou renovar documentos, uma assinava pela outra. Embaralhavam fotos que depois nem mesmo elas tinham certeza da real identidade. Faziam-se passar por uma só para assustar entregadores que batiam à porta e viam a mesma pessoa no interior do apartamento e um minuto depois, dentro do elevador. Durante as consultas com o Doutor Cavablanco, Tia Maria Antonia fazia-se passar pela irmã, e vice-versa, sem que o médico, parecendo sempre preocupado com outros temas, pudesse desmascará-las ou, também admitiam, havia a hipótese de que considerasse inadequado atrapalhá-las em sua diversão caótica e ele mesmo embarcasse numa aventura cujas consequências não lhes pareciam ultrapassar a fronteira de uma inocente trama destinada a propósitos absolutamente particulares. Até mesmo o porteiro do edifício confundia-se depois de tantos anos. Só com Máximo não dava certo, pois desde menino não levava mais do que um segundo para dizer-lhes os nomes sem que precisasse ser corrigido. E, claro, jamais conseguiram emplacar a farsa com Jeremias e Nikita, o casal de gatos, ambos então já empalhados depois de longos e longos anos abusando do pequeno sortilégio de identificá-las quando necessário.

Envelhecidas, a gratidão do sobrinho transformou-se em esforço incondicional para assisti-las do melhor modo possível. Era Máximo quem as levava ao médico periodicamente. Era ele também quem as convidava para jantar em bons restaurantes uma vez por semana. Nesses encontros, sempre regados a um bom vinhozinho, o fraco das tias, as conversas podiam ser tidas como gravações. As frases, as entonações, as exclamações e as interrogações repetiam-se durante o tempo todo. Tia Maria Antonia e Tia Antonia Maria contavam-lhe, e principalmente a elas mesmas, sobre a infância do sobrinho, rememoravam os episódios mais engraçados e curiosos e cutucavam-se, ruborizadas, quando se referiam “àquela doencinha”. Também queriam saber das novidades no trabalho, da tese de doutorado, da viagem no fim de semana, daquele amigo que você ia nos apresentar.

Máximo telefonou e disse que não poderia jantar com elas, mas as visitaria na sexta à noite, após o trabalho. Mãos à obra, minha filha, mãos à obra, minha filha, e puseram-se a preparar o lanche para receber o sobrinho. Pensaram se dessa vez conheceriam o amigo que tinham visto no porta-retratos novo na estante do apartamento dele. Ou, quem sabe, traria uma namorada, mas ambas riram da piada, e depois desentenderam-se e xingaram-se, acusando-se mutuamente pela falta de respeito. Tia Maria Antonia dizia que Tia Antonia Maria começara a brincadeira sem graça, e vice-versa. Ambas, cada qual com um dos bichanos empalhados, deram-se as costas para tirá-los de cena, pois Máximo não suportava vê-los feito brinquedos na vitrine. Nos mínimos detalhes, continuavam fazendo tudo para agradá-lo.

Desde que lhes contou sobre a doença naquela noite, foram apenas seis meses. Agora estavam ali, diante do testamenteiro, cumprindo a última vontade de Máximo. Sentiam-se vazias e distantes, aos poucos a vida perdia o sentido. O testamenteiro limpou a garganta e, depois de ler as poucas linhas do documento, pediu para que Dona Antonia Maria assinasse primeiro. Houve um momento de hesitação, elas entreolharam-se, depois voltaram-se ao homem, chegaram a perceber seus lábios apertados num meio sorriso amargo. “Dona Antonia Maria, por favor”, repetiu o testamenteiro, mantendo a caneta suspensa no espaço correspondente à divisa imaginária entre as mulheres, evitando a gafe de equivocar-se sobre a identidade de uma e de outra. Novamente, avistaram-se de rabo de olho, ambas já desconfortáveis em suas cadeiras, mas nenhuma arriscou adiantar-se à mesa. Por fim, impacientes e desconcertadas, Tia Maria Antonia e Tia Antonia Maria encararam-se com expressões acusatórias e, apontando para a caneta, sussurraram em uníssono: Mãos à obra, minha filha! Cada uma pensava com raiva e desânimo que a outra não sabia mais quem era quem. Um segundo depois, as duas puseram-se em pé ao mesmo tempo, confessando intimamente que, na verdade, nunca souberam.

* Conto integrante do livro "O criador de tudo" (não publicado)
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4 Responses to “Mãos à obra”

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