Depois do jantar

“Quando eu falava dessas cores mórbidas
Quando eu falava desses homens sórdidos
Quando eu falava deste temporal
Você não escutou
Você não quer acreditar, mas isto é tão normal”

(Trecho de "Paisagem na janela", de Lô Borges e Fernando Brant)

“E sua irmã?”, perguntou o pai. Não tirou os olhos do prato.

Miriam apenas balançou a cabeça negativamente. Arrastava o garfo para lá e para cá em meio ao arroz.

“Você sabe para que é seu celular, não sabe?”

“Sei”, mastigou a comida sem perceber. Concentrava-se para pensar em coisas distantes que lhe exigissem toda a capacidade de abstração. Naquele momento esculpia pedras flutuantes no espaço sideral.

“Deixa ver.”

Miriam empurrou o aparelho até bem perto dele. O pó das rochas zanzava na escuridão. Refletia vagos brilhos estelares. Desenhos de todos os tipos.

“Quem é Silvinho?”

“Trabalho de escola, tá escrito aí.”

O homem olhou para Miriam por alguns segundos. Depois correu os olhos pelas mensagens.

“Não me esconda nada”, ele voltou a comer em silêncio.

Miriam puxou o telefone de volta. A rocha transformara-se num pequeno amuleto. Mas desapareceu quando, sem querer, ela viu um grão de arroz dançando por entre os fios do bigode do pai. Teve nojo.

Tinha tanto nojo! E aquilo parecia crescer sem parar dentro dela. Desde a hora de acordar. Só conseguia distanciar-se da sensação asfixiante durante a tarde, quando podia ficar sozinha. Depois de voltar da escola e antes que o pai chegasse do trabalho, deitava-se com uma foto da irmã colocada ao lado do travesseiro. De tempos em tempos, afagava o rosto fixado no papel. Sentia uma saudade insuportável daquele sorriso. Não se cansava dessa porção de sua rotina diária, da companhia fictícia de Sueli, de retomar uma a uma todas as brincadeiras da infância, desde quando eram pequeninhas. "Vamos passear na floresta enquanto o seu lobo se apronta", cantava baixinho. "Tá pronto, seu lobo?", respondia a si mesma com um fiapo de voz que sempre antecedia um pranto incontrolável.

“Qual foi a última vez que ela mandou mensagem?”, o pai segurou o garfo suspenso com um naco de carne mal passada.

“Mês passado”, Miriam focalizou um fiozinho vermelho que respingou no punho do pai. Teve que se esforçar para conter a ânsia de vômito.

“Você sabe o que deve fazer, não sabe?”

“Sei”, dessa vez ela não ergueu a cabeça. Rabiscava o prato com os dentes do garfo. Buscava um meio de trazer de volta a rocha esculpida, mas o amuleto perdera-se girando no espaço.

“Eu sei que você sabe.”

Ela tentou mastigar o arroz.

“A carne está boa”, disse o pai, “vermelha e pingando”, sorriu para ela.

Mas Miriam não viu.

Gostava de pensar que a irmã estava longe dali. Gostava de fazer cálculos que indicassem a possibilidade de uma distância cada vez maior. Feito um satélite que se afastasse de seu núcleo gravitacional até escapar do alcance de qualquer luz. Um satélite que, ocultado, pudesse deslocar-se por toda a galáxia sem correr risco de localização. Sonhava ser astronauta, com capacete e tudo, para ninguém vê-la ou reconhecê-la. Queria estar com Sueli num planeta só delas. Rindo como doidas, recordariam seus momentos de cumplicidade, brincariam tudo de novo. “Vamos passear na floresta enquanto o seu lobo se apronta”, pegava-se de repente cantando para si mesma. Era sempre assim, e então mudava de ideia sobre a distância, queria a irmã bem perto dela. Apertava a foto contra o peito, soluçava e no meio das lágrimas tentava evitar a raiva que a afogava. A raiva de tudo. Mas logo sobrevinha o sorriso no papel colado ao peito e ela voltava a pensar na irmã distante, numa lua escura percorrendo o universo. Respirava como Sueli havia ensinado, quando às quintas-feiras a irmã voltava do quarto do pai e a encontrava daquele jeito, chorando sem tomar fôlego, os olhos arregalados, deitada em posição fetal. Aspirava pelo nariz e expirava pela boca, aspirava pelo nariz e expirava pela boca. Repetia o procedimento três vezes. Depois puxava o ar por mais tempo, e repetia o processo até tranquilizar-se. De modo algum desejava chamar para si uma atenção que poderia acabar dando no que ela mais temia: os homens de branco. “Comporte-se”, dizia-lhe o pai desde que era ainda uma menina de colo, “seja boazinha ou precisaremos chamar os homens de branco”. Às vezes, sentia-se como uma tola qualquer ao imaginar os homens de branco. Não era mais criança e compreendia perfeitamente o significado da ameaça. Não sabia por que, mas aquele médico famoso, o Doutor Cavablanco, que saía em reportagens aos domingos e cujas teorias eram discutidas em sala de aula, sempre aparecia em seus pensamentos em horas como essa, embora ela fizesse de tudo para espantá-lo das ideias.

“Você sabe onde ela está?”, o pai ergueu a voz sem fitá-la.

“Não”, respondeu Miriam após alguns segundos. Teve dificuldade para ouvir a própria voz.

“Não, mesmo?”

“Não, mesmo.”

“Sinto falta dela”, disse o homem de repente, como se tivesse pensado alto.

“Eu também”, pensou Miriam. Segurava o garfo no ar com um pedaço de omelete espetado, feito um satélite do prato. Estava assim desde que ouvira o pai perguntar-lhe do paradeiro da irmã.

“E você?”, o pai deixou os talheres sobre a mesa, apoiou as mãos ao lado do prato, encarou-a com um olhar pretensamente afetuoso que parecia pedir que se acalmasse, que continuasse comendo e que não lhe trouxesse mais problemas.

Miriam apenas ergueu os ombros. Depois levou a comida à boca.

“Está tudo bem?”, voltou a serrar a carne como alguém que espera apenas uma resposta protocolar suficientemente pacífica para devolvê-lo ao seu estágio anterior.

“Tudo”, ela levantou-se para levar o prato até a pia.

“Espera”, disse o pai. Segurou-a pelo braço. “Hoje é quinta-feira”.

Miriam viu que ele a soltava. Pôs-se a lavar a louça do jantar. Sentiu a água fria lamber as mãos, pensou nos homens de branco, se talvez não fosse melhor que o próprio Doutor Cavablanco viesse finalmente buscá-la. Imaginou que assim acabariam tantas angústias, conquanto na verdade soubesse que essa ideia não passava de uma pequena fração da revolta que antecedia as próximas horas de resignação. Atrás dela, o pai também deixou a mesa e colocou seu prato e talheres na pia. Sem tirar os olhos da louça, Miriam congelou-se como sempre. Embora, a exemplo de todas as outras vezes, desejasse fugir, também agora era dominada por uma insidiosa força gravitacional. Isso podia acontecer a qualquer hora. Bastava o pai estar próximo para que fosse atingida pela incapacidade de mover-se. Ele permaneceu ali por mais alguns instantes. Só quando saiu ela pôde enfim voltar a respirar. Mentalmente, chamou o sorriso da irmã. Olhou pelo vidro da janela à sua frente. Os faróis dos carros colavam-se uns aos outros num longo fio luminoso na avenida ao fundo. A torre da igreja reluzia. Não podia ver as estrelas dali. Não sabia se o céu estava encoberto. Não sabia se era noite de lua cheia. Sabia apenas que era quinta-feira.

“Você sabe por que precisamos fazer isso?”, perguntou o pai.

Miriam terminara a louça e voltava para o quarto. Pensava nas casas que vira pela janela da cozinha. Em seus habitantes cheios de problemas de todos os tipos. Seria possível alguém estar naquele mesmo segundo vivendo as mesmas angústias? Outras garotas sem saída como ela? Lembrou-se do policial por quem passou na rua outro dia. Apoiado no capô da viatura, ele a observou caminhando em sua direção. Parecia ser um cara legal. A poucos passos, ele até sorriu. Ela teve então o ímpeto de contar-lhe tudo. Inocentemente chegou a parar diante dele. O que ela tinha para falar vinha atrás de uma bola espessa escorregando para fora da garganta. Ainda não podia dizer. A bola estava subindo lentamente, abrindo caminho. Miriam já sentia os olhos úmidos. Uma comoção sincera ameaçava fazê-la flutuar, até ouvi-lo dizer “e aí, gracinha, o que é que manda, boneca?”. O jeito, a voz, a entonação melódica. Nada cheirou bem. Abruptamente, a bola começou a descer de novo até o estômago e lá ficou entalada.

“Porque Sueli não está em casa”, ela respondeu. Era exatamente a mesma resposta para a pergunta de todas as outras vezes.

“Sim”, o pai disse-lhe, encostado na porta do quarto dele, “porque Sueli não está em casa”.

Miriam deu mais dois passos em direção ao quarto dela.

“Se ela estivesse aqui...”, ouviu-o dizer.

Miriam parou por um instante.

“Mas ela nos deixou”, ouviu-o erguer a voz.

“Ela deixou você”, pensou Miriam.

“Deixou a própria família”, ouviu-o lamentar.

“O senhor quer agora?”

“Espere enquanto eu me apronto.”

Miriam fantasiou estar de mãos dadas com Sueli. Começou a cantar mentalmente “Vamos passear na floresta...”.

*** *** ***

Olhou no celular e viu que passava das duas. Havia demorado um bom tempo no banheiro. Esfregara tanto a pele com bucha e sabonete que estava cheia de dores. Isso, ao menos naquela noite em especial, era o de menos. O pior já havia acontecido. Cometera um erro. Tinha sido dominada pelo medo. Entregara-se ao choro e isso incomodara o pai. Novamente ele a ameaçara. “Você não compreende, não é?”, ele a segurara pelos ombros. “Ou será que é preciso tomar a atitude que eu não quero tomar?”.

As palavras despejadas por ele a inquietavam já na madrugada. Sentia-se atormentada pelo receio de ter dado motivos para que ele, por fim, cumprisse a velha ameaça de mandá-la para um desses lugares onde tratam os loucos, de onde, imaginava, jamais sairia para reencontrar-se com Sueli. Ela virava-se na cama, mas para onde estivesse voltada só via os homens de branco, até que pegou no sono e começou a sonhar com eles. Estavam ali para buscá-la. Miriam esperneava. Dois deles seguravam-na pelas pernas. Outros dois torciam seus braços. Acordou num sobressalto, molhada de suor. Sentou-se na cama lembrando-se de como devia respirar: aspirar pelo nariz, expirar pela boca, aspirar pelo nariz, expirar pela boca, depois puxar o fôlego por mais tempo, repetindo o processo até tranquilizar-se. Parecia ouviu a voz de Sueli procurando acalmá-la. Deitou-se novamente. Também ouvia pessoas dentro de casa. Associou-as ao próprio sonho e, de tanto medo de que se tornassem reais, adormeceu novamente, reencontrando-se com o mesmo sonho, os mesmos homens de branco. Não podia ver seus rostos, mas estavam ali para levá-la. O pai assistia a tudo de braços cruzados no limiar da porta. Sua expressão dizia “Eu avisei, não avisei?”.

Miriam gritava com todas as forças, mas ninguém parecia ouvi-la. Sentiu-se como um satélite agora atraído por uma gravidade alheia aos seus planos. Não teria forças para escapar. Gritou mais e mais, e quando atingiu aquela camada indefinível em que não se sabe o que é sonho e o que é vigília, quando acessou a possibilidade de livrar-se do pesadelo, tomou todo o fôlego possível para gritar de verdade, mas uma mão tapou sua boca e ela foi puxada bruscamente. Sentiu a quentura de um corpo real. De lábios próximos ao seu ouvido, “Vamos passear na floresta”, seu coração disparou e ela imediatamente a reconheceu, o satélite havia sido atraído pela força gravitacional de seu planeta. Havia, de fato, vozes pela casa. Levantaram-se abraçadas. Homens de paletó estavam no quarto do pai. Miriam conseguiu vê-lo num relance. Sentado na cama. Chorava com as duas mãos cobrindo o rosto. Homens de branco aguardavam no corredor. Elas atravessaram a casa de mãos dadas. Uma mulher com expressão condescendente abriu a porta da rua. As irmãs saíram para o primeiro clarão do sol.

* Este conto integra o livro "O criador de tudo" (não publicado)
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