Véspera

Dez anos haviam se passado e ela ainda sentia-se constrangida ao falar sobre o assunto. Na verdade, não apenas ela, mas todos de seu círculo mais íntimo, pois eles sabiam, ou pelo menos imaginavam, como fora difícil. Marianinha ainda não tinha seios quando, categórico, o professor de balé projetou seu futuro: uma joia a ser lapidada. O corpo esguio, a agilidade dos movimentos, a postura elegante, a capacidade de absorver as técnicas, tudo se encaixava sob a perspectiva expressada com euforia contida pelo veterano de dança clássica. "Além do mais, é ambiciosa e de uma disciplina infalível", disse confiante aos pais da aluna quando os chamou para inscrevê-la no concurso internacional. "Tem grandes possibilidades", animou-se quanto a vencer ou perder. "De todo modo, é bagagem que não se extraviará", sorriu com imenso carinho, de modo que ali mesmo recebeu a autorização para as providências formais.

Curiosamente, não era o episódio crucial que a desmontava a cada lembrança do caso, mas o que o motivara, um componente invisível e cuja explicação ela até hoje não encontrara. “Talvez você nunca a encontre”, disse-lhe uma vez o Doutor Cavablanco, e disse-lhe de um modo tão paternal e tranquilizador, que Marianinha aceitou melhor as inquietações causadas por seu drama. Entregou-se, então, a um regular exercício de sanidade: passou a refazer cada passo do tortuoso trajeto. O desejo de compreender-se superou o receio de ampliar as consequências traumáticas que a perseguiam. Sim, já era capaz de rememorar a consciência de sua própria evolução durante a sequência das aulas, não precisava mais tapar os ouvidos quando a voz do professor despejando elogios e traçando planos para seu futuro promissor ressoava de repente em sua cabeça. Podia até mesmo reconstituir a expressão de dor no rosto da mãe, que não conseguiu pronunciar palavra ao buscá-la em Cumbica na volta da viagem, e a reação impulsiva e violenta do pai, que ameaçou tirar satisfações com o professor. Tudo agora soava menos brutal. Era como ter caído sobre um tapete felpudo e macio onde se tem vontade de matar a preguiça.

No entanto, essas novas sensações não significavam uma solução, só um meio de avançar com mais segurança até o objetivo final de retomar a dança sem dor. Não há nada aqui, pensou um pouco antes de iniciar mais uma de suas sessões de terapia, ainda sentada na sala de espera trocando mensagens banais pelo celular. Apalpou a coxa e ali apertou o polegar com força, a raiva momentânea diluiu-se. Hoje, enfim, diria ao Doutor Cavablanco que estava pronta para atender ao pedido feito por ele havia já um ano. Sim, seguiria seu conselho, voltaria à pista de dança, retomaria os estudos, independentemente de êxitos ou fracassos.

“Você pode me contar o caso todo?”, o médico a surpreendeu tão logo ouviu sua decisão.

Marianinha percebeu um estranho espasmo nas pálpebras e um leve tremor nos lábios, mas os movimentos involuntários não duraram mais do que dois ou três segundos. “Desde os elogios do professor?”, ainda foi capaz de brincar.

Um dia antes de embarcar para o concurso na Áustria, ela deixou de lado o comedimento dos meses em que se dedicara integralmente aos treinos. Sentia-se preparada e confiante. Com a ajuda da mãe, já fizera as malas. Estava tudo pronto. Quem poderia, afinal, imaginar uma bobagem daquelas? Os pais estavam sentados à grande mesa quadrada da sala de jantar, um móvel antigo como sua própria família, e também como a casa em Pinheiros. Ali haviam estado avós e bisavós durante séculos. O formato permitia, segundo o pai, a integração familiar, ao contrário de longas mesas retangulares que restringem a visualização e dificultam os diálogos. Numa mesa comprida, dizia ele, as pessoas não sabem quem disse o quê. Aqui, insistia com exagerado apreço, todos podem falar olhando no olho. E por ironia foi numa das quinas de madeira maciça onde Marianinha, olhando com felicidade nos olhos dos pais, deparou-se com sua desventura.

Ela entrara saltitante para o último almoço antes de viajar, estava feliz e sentia-se leve, não se tratava de um ensaio propriamente dito, mas quase sem perceber, levada pelo entusiasmo, pegou-se praticando os passos que a alçariam a um novo patamar artístico. E bem aí, sorridente e senhora de si, bateu a coxa direita contra a mesa. Entre risos bobos e gritinhos de dor, esfregou as mãos sobre a pele, lacrimejou, o choque exigiu-lhe concentração para recuperar o equilíbrio, apoiou-se à mesa enquanto reprimia uma vontade estúpida de chutar a madeira com toda a força do mundo. Mas a avó e o avô, já mortos, mantinham-se ali, impregnados sobre o tampo encerado, ambos na companhia de vagos antepassados, todos em pé, guardando angústias e felicidades, lamentos e contemplações, arroubos e confidências que perpassam o fio dos metais e os riscos nas louças.

Diante do Doutor Cavablanco, Marianinha sorriu para si mesma, embora lá no fundo soubesse da impossibilidade de debelar um sentimento do qual temia se envergonhar, e por isso não o revelou ao médico.

Ao levantar-se, após o almoço, foi ao quarto e ergueu a saia. Uma mancha arroxeada formara-se sobre a pele, um sol negro denso no núcleo e esmaecido em tons lilases nas extremidades. Não doía, explicou enquanto a mãe a socorria com cremes e pomadas. Nada que o próprio traje do balé não resolvesse. Escondeu o episódio do velho professor, ou talvez mal se lembrasse dos últimos acontecimentos em meio à agitação comum de uma véspera. Viajou com ele, ambos certos de que tudo sairia bem. E tudo realmente saiu bem, menos o último e decisivo número.

“Que o senhor já conhece”, ela voltou-se hesitante para o médico.

“Conte outra vez”, ele reduziu o tom de voz a um grau mínimo, e Marianinha teve por um instante a impressão de ter adentrado um sonho.

Novamente movimentava-se com suavidade em sua apresentação aos jurados. Serena e concentrada, penetrava o silêncio com um prazer único. Sentia-se dona de todo o espaço, e não apenas do espaço do teatro. Sua apresentação, por assim dizer, ecoava no mais longínquo ponto do universo. “Você e mais ninguém”, lembrou-se do professor dizendo-lhe antes do número. “Apresente-se a si mesma”, ouviu-lhe outra vez a voz quebradiça contornada de conhecimento e confiança. No entanto, o sol escureceu-se de repente, de brilhante passou a lilás e então uma pedra ametista rolou pelos olhos de Marianinha. Como raio, um pensamento cruzou-lhe a fronte, era difícil explicar, mas o aviso de uma dor parecia ter se antecipado ao próximo passo, de algum modo certificou-se de sua iminência, assim que tocasse o pé direito no chão a lesão escondida sob a meia se manifestaria de modo lancinante, retesou-se de imediato, um súbito tremor assolou o tronco de Marianinha e aninhou-se em sua coxa, o impulso do balé confundiu-se com um corpo desajeitado à frente do júri boquiaberto. Dois assistentes cuidadosos a ajudaram a levantar-se, e no fim das contas foi preciso carregá-la nos braços.

Depois de todos os exames médicos, nenhuma lesão foi constatada. A mancha arroxeada ou o sol negro ou a pedra ametista ou coisa que o valha desapareceu sem deixar qualquer marca visível. “Está tudo em ordem com sua perna, garota”, disse-lhe um dos especialistas que a examinaram. “Pode retomar seu balé sem medo”. Mas ela não tinha como reter esse otimismo despojado. Ela simplesmente não podia controlar a ameaça invisível. A dor. A véspera da dor. A sensação intraduzível de uma irrupção sobre a qual só ela tinha consciência. E horror. Agora, no entanto, tentaria de novo. O Doutor Cavablanco permitiu-lhe uma longa pausa. Os dois permaneceram dentro de um silêncio respeitoso.

“E a mesa?”, perguntou-lhe por fim com uma nota de inocência e outra de divertida curiosidade.

“A mesa?”, Marianinha tinha uma expressão vaga.

O médico aguardou pacientemente.

“Sextavaram-na”, disse ela de repente num tom de voz que encheu a sala. “Sextavaram-na”, quase gritou enquanto ia sendo tomada por uma crise incontrolável de soluços. “Sextavaram-na”, repetiu já rouca, com o polegar enfiado na coxa como se pudesse atravessar a própria carne.

* Este conto integra o livro "O criador de tudo" (não publicado)
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2 Responses to “Véspera”

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