A casa de Montevidéu

Desligou o celular depois de ter visto as horas. Onze e meia. Queria andar um pouco na região do hotel. Fazia uma noite bonita embora ele não soubesse de onde vinha o encanto. Nunca tinha ido a Montevidéu, e parecia-lhe uma grande chatice participar apenas dos passeios programados. Buscava um pouco de liberdade. Talvez na manhã seguinte nem fosse atravessar o Prata com os outros até Buenos Aires. De que iria valer a curta viagem ao sul se não conseguisse desligar-se de seu cotidiano?

Sabia também das previsíveis advertências dos colegas de trabalho que tinham viajado com ele e estavam sempre dispostos a lembrá-lo das coisas do escritório, não por mal, apenas porque reuniam em torno de si essa pobreza de espírito muito própria de certos abnegados. Lembrando-se das simpáticas recomendações do Doutor Cavablanco (“De nada lhe adiantará viajar apenas com o corpo”, “Esqueça um pouco as responsabilidades porque, não duvide, elas continuarão à sua espera”), respirou fundo antes de cruzar a Avenida 18 de Julio assobiando Garota de Ipanema. Meteu-se por pequenas travessas onde ainda havia movimento nos bares, escolheu num deles uma mesa logo à entrada, pediu uma Patrícia e sentiu-se dono de si enquanto bebericava e olhava com preguiça para todas aquelas pessoas desconhecidas, algumas delas aparentemente preocupadas em não se demorar muito ali, num dia útil do meio da semana. Férias. Sorriu com satisfação para si mesmo. É, meus amigos, todos têm sua vez. Depois ligou o celular apenas para mandar um recado a Manuela junto com uma foto do copo transpirando. Percebeu dezenas de notificações nas redes sociais e, sem abrir qualquer uma delas, desligou novamente o aparelho. O que faria Benedetti com o besteirol todo que permeia esse fútil intercâmbio humano? Balançou a cabeça com desprezo. Onetti, pensou em seguida, como agiria? Mas logo entregou-se a uma autocrítica indesejada, tentando a todo custo afastá-la como se ele mesmo não participasse do besteirol todo. Pensativo, recostou-se na cadeira com as mãos na nuca, indagando-se qual era mesmo o nome daquele outro escritor uruguaio, o de vida trágica? E foi então que, sem nenhum motivo específico, lembrou-se da casa: ele a tinha visto durante a caminhada noturna, e agora a imagem parecia solidificar-se diante de seus olhos, desconsiderando os limites do bar, os corpos dos frequentadores, a própria noite. Era como se, indignada, a construção estivesse ali para reclamar sua atenção.

Acordou no meio da madrugada com a nebulosa ideia de ter sonhado com a casa, sentou-se na beirada da cama lutando contra a estranha necessidade de explorar algo que não conseguia processar em sua memória, tal como ocorrera ao sair do bar e ver-se atraído pelo imóvel de dois pisos com quatro janelas de frente. Observara nas duas janelas inferiores uns suportes de vidros quadradinhos como se fixados numa grade, as folhas abriam-se para fora de par em par. Depois caminhara até a esquina e, sem poder controlar-se, voltara ainda uma vez mais para certificar-se de que as janelas do segundo piso compunham dois arcos em sua porção superior. Diante delas havia pequenas sacadas. De volta ao hotel, deitara-se com a mente ocupada em afastar-se daquela bobagem, exatamente como buscava fazer agora, entretanto parecia ser impossível. De manhã, mal tomou o café enquanto insistia com os colegas que não iria acompanhá-los a Buenos Aires. Quiseram ficar também para fazer-lhe companhia, mas ele safou-se objetivamente, precisava ficar sozinho, esperava que o compreendessem etc etc. Levantou-se e sem despedir-se saiu em direção à rua.

Na verdade, saiu sem a intenção de tomar um rumo determinado, mas pegou-se cumprindo o mesmo trajeto da noite anterior. Ao aproximar-se novamente do imóvel, surpreendeu-se com o portãozinho lateral. Também esse detalhe era idêntico. No entanto, como se despertasse de um sonho, perguntou-se idêntico a quê? Pensou até que poderia haver dezenas de casas como aquela, quem sabe centenas, exatamente iguais, dois pisos, quatro janelas dando para a rua, detalhes coincidentemente adotados por diferentes arquitetos ou inseridos às construções pelos próprios donos, incluindo o jardinzinho com pequenos arbustos rente à base da construção. Ao admirar o pequeno suporte de lâmpada fixado à parede bem entre as janelas inferiores, ele já estava com o dedo na campainha. Uma mulher de idade avançada entreabriu a janelinha do portão lateral, fitando-o desconfiada e sem dizer palavra. Sorriu para ela e disse ser brasileiro. Inventou uma desculpa qualquer, estava passando por ali e, como pesquisador de arquitetura, tinha se perguntado se por acaso teria a chance de conhecer o imóvel por dentro, é bastante simpático e o atraiu bastante, se a senhora não se importar. Ergueu as mãos como se o movimento o isentasse de segundas intenções. A mulher virou-se e atrás dela um homem vestido com macacão e luvas parecia estar em meio a um trabalho de jardinagem nos fundos do quintal. Ela fez um sinal ao homem, que imediatamente voltou a ocupar-se de seu trabalho. Depois abriu o portãozinho lateral e convidou-o a entrar.

Ele iniciou imediatamente sua vistoria por todos os ângulos possíveis. Avistou o tapete ao pé da porta que dava para um pequeno espaço antes da sala quadrada com sofás, uma mesa de madeira no centro e móveis antigos encostados às paredes, todos abarrotados de objetos também antigos, entre os quais pequenas esculturas indígenas, detalhes que de modo impressionante reconhecia um a um. Tomou nas mãos um castiçal acobreado e, subitamente, devolveu-o ao seu lugar sob os olhares da anfitriã. Não tinha intenção de parecer afoito ou demonstrar arrebatamento, mas ao mesmo tempo parecia-lhe difícil manter-se indiferente. Adentrava a casa e ia identificando os móveis e a disposição dos objetos e dos quadros, de modo que a sensação era de rememorar um lugar onde já tivesse estado. Enquanto a mulher dizia-lhe coisas que não podia assimilar, sucediam-se remotas lembranças de rostos, palavras, beijos, sons e cheiros. Num tranco caiu-lhe abruptamente a certeza de estar na casa da avó, a velha e longínqua casa de Botafogo, inteira ali, diante de seus olhos, em Montevidéu. Estava certo de não se tratar de imaginação. Dobrou o corredor à direita depois da sala, chegou à porta de um escritório, agora a voz da avó morta há tanto tempo ecoava em sua cabeça, a avó tomando-o pelas mãos, guiando o menino pela casa, dizendo-lhe de como vovô havia gostado de tudo ali, aqui vovô sentava para fumar, aqui ele lia Marx e Dostoiévski, aqui dormíamos após o almoço de domingo, pobre do seu vovô, maldita ditadura. A anfitriã mal conseguia acompanhá-lo. Ele sentou-se na cadeira do avô, imaginou o enterro simbólico que a avó havia narrado em meio a lamentos e fantasias, um enterro sem corpo. Quando garoto, tentava sem sucesso compreender o mistério fabuloso de um enterro sem corpo. Levantou-se da cadeira e correu os dedos pelos livros nas estantes. A voz da anfitriã ressoava sem sentido pelo ambiente, sequer lembrava-se dela agora. Esticou a mão para tocar o porta-retratos encaixado no centro da prateleira principal, onde uma fotografia desbotada pelo tempo mostrava um sujeito de uns trinta e poucos anos rindo com o cigarro na boca. Tinha o corpo dobrado à frente e afagava um cãozinho que se erguia nas patas traseiras. Era, sem dúvida, o avô.

Ouviu a mulher perguntar-lhe se estava satisfeito com a visita. Ela agora precisava dar o remédio ao marido, caso ele não se importasse. Nauseado, escorou-se na estante, tentou fortalecer-se num raio de sol que se intrometia pela pequena vidraça entreaberta, o fôlego fugia de seus pulmões como uma imagem dissipando-se na névoa. Percebendo seu estado, a mulher ofereceu-lhe água, e sem esperar resposta saiu a passos rápidos.

Ao voltar, ela se dá conta do escritório vazio, percorre o caminho de volta, passa pela sala, sai ao quintal e vai até o portãozinho lateral, mas nada do brasileiro estranho. Ouve o marido chamá-la, ainda está com uma mão no portão e a outra segurando o copo d’água. Vai até os fundos e certifica-se de que também ali não há ninguém, apenas as plantas, os pássaros e o cheiro da terra envelhecida. Quando entra no quarto, o marido assusta-se com sua palidez.

“O que foi?”, pergunta-lhe, impaciente, estirado na cama.

“Nada”, ela entrega-lhe a água e o comprimido, “acho que sonhei outra vez com aquele brasileiro”.

“O brasileiro”, o velho engole o remédio e sorri para ela um misto de ironia e condescendência.

“Ele”, a mulher dá dois passos em direção à porta e parece vasculhar o corredor à procura de algo que nem ela mesma compreende, “ele esteve aqui hoje”.

“É possível, Manuela”, diz o velho enquanto devolve-lhe o copo vazio acompanhado de um suspiro de cansaço. “Eu também penso ter estado em tantos lugares, mas cada vez me convenço mais de que são os lugares que passam por nós, e não o contrário”.

A mulher esboça um sorriso que não vinga. Depois pega o copo e sai. O velho recosta-se no travesseiro. Para passar as horas, tenta de novo capturar o passado cruelmente evasivo e lembrar-se de como concebeu a casa de que tanto gosta naqueles tempos duros de autoritarismo, quando a última coisa que se podia planejar era fixar residência.

* Este conto integra o livro "O criador de tudo" (não publicado)
* Para ler "Índia", clique aqui
* Para ler "Cachecol", que faz parte do mesmo livro, clique aqui
* Para ler "Incidente no 21", clique aqui
* Para ler "Mãos à obra", clique aqui
* Para ler "Aparição no Rio Pinheiros", clique aqui
* Para ler "Núpcias", clique aqui

Tags:

Comments are closed.