Transtorno

Sentiu dois fios líquidos descerem até o canto dos lábios. Resolveu parar. Entrou na primeira porta que viu, um bar espremido entre dois prédios antigos em cujas calçadas havia pelo menos três moradores de rua dormindo sob uma tralha indefinível de cobertores, roupas e até panelas. Estava perfeitamente consciente, mas não fazia ideia de como viera parar ali. Na semiescuridão do ambiente, além do balcão instalado ao longo de toda a parede do lado direito, viu quatro mesas à esquerda, todas ocupadas por um estranho emaranhado de figuras que ele não definiu se eram corpos, gravuras ou sombras. O lugar desenhava-se num L, contornando o balcão, onde um velho e uma garota com trapos sebosos nos ombros ocupavam-se entre copos e garrafas. Sentou-se aos fundos e tentou restabelecer o processo respiratório enquanto certificava-se de que havia perdido, além do rumo, o celular.

"Dificuldades?", perguntou uma mulher de meia idade, debruçando-se diante dele e mostrando parte dos dentes grandes levemente manchados de batom.

"Acho que não", ele olhou com certa ansiedade para o balcão com o braço erguido, queria tomar algo com urgência e ao mesmo tempo livrar-se da intrusa. A última coisa que pretendia naquele momento era entabular qualquer papo com uma desconhecida. Precisava desesperadamente compreender o que o levara até ali. Lembrava-se de ter passado próximo ao Viaduto do Chá e depois também pela Galeria Prestes Maia, e mais nada.

"Está todo suado", disse ela, e sacou de algum lugar entre os seios um longo lenço vermelho amassado e desbotado, que imediatamente esfregou com suavidade em sua testa.

"Um conhaque, por favor", disse em direção ao velho e à garota, sem saber se um deles prestara atenção a seu pedido.

"Espera um pouco", a mulher adiantou-se até a beirada do balcão, esticou os braços e pescou uma garrafa com uma mão e dois copinhos com a outra, os dedos enfiados quase até o fundo. "Aqui está", sentou-se sem cerimônias e sorriu agora de boca inteira, os dentes estavam inteiramente limpos.

Aliás, parecia outra! Mais jovem e mais bonita. Martino ajeitou-se na cadeira e, enquanto ela servia o conhaque, chegou a limpar os olhos. Sem que tivesse planejado, percebeu estar confessando a ela que, sim, acho que estava mesmo em dificuldades, iria confiar nela. Viu com surpresa que segurava, e até apertava, o braço cheio de pulseiras brilhantes, mas num segundo recuou assustado consigo mesmo. Pensou vagamente no Doutor Cavablanco, fazia tempo que não o procurava. Ele era uma das poucas pessoas que sabiam como tranquilizá-lo, devolvendo-o ao eixo de sua consciência. Por sobre o ombro da mulher tentava vislumbrar a porta da rua. Será que o tinham seguido até ali? Não lembrava ao certo o motivo de sua fuga. De repente sentiu uma mão em suas costas, quase saltou da cadeira, mas percebeu que alguém saía bêbado do banheiro e apenas apoiava-se nele para evitar a queda. Bebeu o conhaque de uma vez só.

"Não vá tão rápido, querido", a mulher havia trazido também uma garrafa de água para a mesa e agora servia-lhe um copo.

"Desculpe, mas qual o seu nome?", ele tinha tomado toda a água, sentia o estômago pesado.

"Você é tão engraçado", ela desandou a rir.

"O que há de engraçado?", Martino achou graça na risada da mulher e ele também sorriu.

"Mais conhaque, amor?", e encheu mais uma tacinha para ele.

"Se a velocidade for essa", disse a ela e ergueu a bebida antes de dar um golinho.

"Isso, sem pressa, você deveria saber, meu bem."

"Sem pressa, eu deveria saber", Martino vasculhou aquele rosto sem conseguir decifrá-lo, depois sorriu de uma vez.

Seria a bebida? Mas um copo apenas seria capaz de deixá-lo alto? Sentia-se melhor agora, até esquecera-se de sua própria fuga, mas a consciência dessa pequena bobeira trouxe-o de volta a um estado de tensa vigília. Novamente pôs-se a olhar na direção da porta, esperando que a qualquer momento eles pudessem entrar. Mas eles quem? Martino perguntava-se sem chegar perto de uma resposta concreta. Enquanto falava com a mulher, esforçava-se para trazer à memória seus últimos passos, embora a cada minuto fosse mais difícil organizar os pensamentos no sentido de recompor seu quebra-cabeça. A impressão era de um labirinto e quanto mais ele remexia sua memória recente, mais afundava nesse intrincado percurso sem saída.

“É tipo droga?”, a mulher cobriu a boca com a mão e abaixou o tom em meio à vozearia incerta do bar.

“Não uso”, ele disse secamente.

“Mulher?”, ela fitou-o com um ar divertido enquanto tomava um pouco do conhaque.

“Você é detetive?”, Martino sorriu com simpatia.

“Ah, não, querido”, jogou a mão para frente, “embora eu chafurde bastante”, tornou-se pensativa por um instante antes de cair na gargalhada.

“Você faz o quê?”

“Vem cá”, a mulher levantou-se, pegou seu copinho de conhaque e dirigiu-se à única porta dos fundos. “Traga o seu”, virou-se como num passo de dança para chamá-lo.

Martino ficou agradecido pela oportunidade. Quanto mais longe da rua melhor para ele, embora não pudesse explicar a si mesmo aquela indesejada circunstância. Era como se tivessem apagado as últimas horas de sua vida. Lembrava-se apenas de ter ido ao encontro do pai no escritório da empresa, depois alguns flashes nas ruas, mais nada. Mesmo o que quer que o pai tivesse-lhe dito, ou o que era mais provável: cobrado dele, tornara-se completamente nebuloso. A mulher pegou-o pela mão no meio do pátio, ele vislumbrou uma varanda num formato semicircular e várias portas. Entraram numa delas, na parte central. O ambiente cheirava a talco e desinfetante. Havia um castiçal num dos cantos com algumas velas apagadas, uma penteadeira sob um espelho oval fixado na parede, onde ele viu-se tão pálido quanto a iluminação do quarto, um armário de roupas e um sofá. Um carpete arroxeado tornava o cômodo ainda mais obscuro. Sentou-se diante do espelho e virou o resto do conhaque.

“Está pálido”, ela postou-se atrás dele, em pé, e massageou-o no pescoço e nos ombros com as duas mãos.

“Acho que é a luz”, falando como um fantasma, nem mesmo ele percebia as demarcações dos próprios lábios finos e, àquela altura, inteiramente descoloridos.

“Você está frio”, tinha enfiado as mãos por dentro da camiseta dele e por um momento pensou que poderia perfurar facilmente com as unhas a pele branca de seu peito quase transparente.

“Estou?”, sentiu um arrepio nos mamilos ao toque da mulher.

“O sangue precisa circular”, ela debruçou-se até encostar os seios no pescoço de Martino, o queixo sobre a cabeça dele, as mãos roçaram suas coxas e, com a língua, ela procurou a orelha fria.

“Por favor”, ele enrijeceu-se na cadeira e fez um movimento obrigando-a a suspender o ataque.

“O que foi?”, apoiou as mãos novamente nos ombros dele, encarando-o curiosa através do espelho.

“Olha”, disse Martino, mas não continuou, apenas permaneceu imóvel enquanto, subitamente compenetrado, observava sua figura no espelho.

“Não importa”, a mulher beijou-lhe os cabelos.

“Me desculpe.”

“Não importa, meu bem, mas você continua tão pálido.”

“Você ainda não me disse seu nome.”

“Esmeralda.”

Tomou uma caixinha redonda em meio a todos aqueles objetos que ameaçavam despencar da penteadeira, abriu-a e, com a outra mão sob o queixo de Martino, sacou de lá uma esponjinha. Martino percebeu o coração acelerar ao vê-la lustrando sua pele, primeiro a testa, depois as maçãs do rosto, o nariz, o queixo. Sentia-se tenso, curioso e, aos poucos, arrebatado. Quando a viu juntar seus cabelos lisos com uma presilha e lançar mão de todo o aparato à sua frente, achou que fosse enfartar. Ouviu Esmeralda falando de sua pele, “é tão delicada”, e de súbito vieram-lhe fragmentos do diálogo no escritório do pai, “Você é delicado, eu sei”, tinha-lhe dito, as mãos da mulher eram tão macias, ele havia relaxado um pouco e ao mesmo tempo o coração subia-lhe pela boca quando a via trabalhar daquele modo em sua face, “mas nunca pude imaginar”, continuara o pai, não havia mais palidez, parecia tão vivo!, o pó, o rímel e agora... o batom!, que louca!, “Só posso pensar que você esteja completamente louco”, esbravejara o pai, ela pediu-lhe para que ficasse em pé, tirou-lhe a camiseta com o cuidado de quem evita rasgar um papel, “Tira tudo, meu bem”, o coração ia explodir, queria dizer a ela, mas ao mesmo tempo não gostaria de interrompê-la, estava mergulhando de cabeça numa atmosfera que o excitava cada vez mais, tinha fechado os olhos, “Você precisa abrir os olhos, rapaz”, a voz do pai reverberava em seus tímpanos, agora sentia o tecido de uma roupa estranha deslizando pelo corpo, arrepiava-se aos toques de Esmeralda, “Eu sei, meu querido, não diga nada”, ele sabia e não queria dizer nada, “Eu sei de tudo, rapazinho”, o pai ameaçara, as mãos dela encaixavam em seus pés um calçado delicadamente feminino, “Vai combinar bem com você”, Martino respirava com dificuldade, uma vigorosa simbiose de medo, apreensão e felicidade impulsionava o sangue por todo o seu corpo, ardia, “Vamos combinar uma coisa definitivamente, mocinho”, gritara-lhe o pai, estava quase pronto, disse-lhe Esmeralda, só faltava isto, e ajeitou-lhe os novos cabelos, “Só me faltava isto na vida”, enfurecera-se o pai, Esmeralda virou-o na direção do espelho, e ao descobrir-se dentro de uma nova ideia Martino percebeu que seus lábios entreabriam-se num espasmo de espanto e desejo.

“Estão procurando o...”, uma moça muito jovem, quase uma menina, com um shortinho minúsculo e uma blusinha acima do umbigo, abriu repentinamente a porta.

“Procurando quem?”, Esmeralda perguntou com indiferença enquanto sorria para Martino através do espelho.

“Ela?”, confusa, a moça apontou para Martino, mas viu apenas que Esmeralda levava o dedo indicador aos lábios.

“O que eu digo?”

“A quem?”, Esmeralda retocava detalhes de sua obra.

“Aos homens”, a moça olhou em direção ao bar dando pulinhos.

“Que homens?”

“Caralho”, ela impacientou-se de vez, “o pai dele, dela, sei lá, o pai está aí!”.

Não sabiam de nada, garantiram ao sujeito calvo com muitos quilos a mais, enquanto os rapazes fortes vestidos de terno e gravata vasculhavam os fundos, quarto por quarto, com armas em punho. De trás do balcão, o velho fuzilava Esmeralda abraçada a uma menina que ele não fazia ideia de onde tinha saído. Seu olhar parecia dizer depois você vai me pagar por tudo isto, mas ela já pagava, não pagava?, e por isso não deu bola para o olhar ameaçador. “Nada, doutor”, disse um dos rapazes ao voltar da incursão aos fundos. Sentado na mesma mesa onde havia estado Martino, o homem calvo coçou a cabeça. “Porra, não foi aqui que ele entrou?”. Mas tinham vasculhado tudo lá dentro, doutor, e nem sinal! Impaciente, o pai levantou-se fungando. Antes de sair, encarou Esmeralda e correu os olhos pelo corpo da menina maquiada e assustada que se agarrava a ela. “Vocês levam jeito”, disse para as duas. Depois, virando-lhes as costas antes de sair, com uma careta de desprezo, jogou uma nota de cem sobre o balcão. “Para compensar o transtorno”, resmungou.

* Este conto integra o livro "O criador de tudo" (não publicado)
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