Questão glútea

Nem mesmo as duas ligações telefônicas atendidas simultaneamente foram suficientes para impedir-me o espanto e logo, a curiosidade. Dona Henrica havia marcado a consulta jurídica há dois dias, ligara na véspera e naquela manhã também, antes de dirigir-se ao escritório onde advogo. Havia uma extrema ansiedade em seu rosto quando a secretária, descumprindo uma ordem expressa de minha parte, enfiou-a subitamente sala adentro. Minha surpresa, entretanto, não residiu em sua expressão, mas na parte do corpo que separa as costas das pernas, ou seja, a região glútea.

Falando um português exato, minha cliente simplesmente não tinha a bunda. Cuidado: não confundir essa informação com outra – a de que ela não tinha bunda. Na verdade, ela não tinha a bunda. A bunda de Dona Henrica não estava lá, e esse era o motivo de sua angústia, quase um desespero. Diante do que considerei grave, suspendi de pronto as duas ligações e, respeitosamente em pé, como é meu costume diante de um cliente, convidei-a a sentar-se, ao que ela me respondeu tratar-se de algo impossível:

- Doutor, infelizmente, o senhor já deve ter percebido minha situação. Nem me sentar eu posso.

Desconcertada, Dona Henrica encostou-se à poltrona diante de minha mesa:

- Tomei muitas referências, o senhor é minha grande esperança para resolver este assunto.

Então, quem por um instante pôs-se desconcertado fui eu. Como assim? Que referências? Eu era um advogado, não um cirurgião plástico ou seja lá que nome se dá a um especialista dessa área. Ela insistiu:

- Acredite o senhor, dinheiro não é problema. Faça seu preço, eu pago.

Decerto que nem sempre aparece um cliente assim, tão disposto a meter a mão no bolso para pagar alguém que ele mesmo geralmente julga ser um explorador de suas desgraças. Um bom cliente é sempre um alento em nosso atribulado cotidiano, não nego, mas ali o que havia era uma paciente, isto sim. Quando fui abrir a boca, ela esclareceu:

- Doutor, minha maldita bunda me deixou há uma semana e não voltou. Já tentei de tudo, mas nada. Quero que o senhor tome a frente nisso.

Sentei-me num susto. Imediatamente, veio-me à mente o notório caso do alto funcionário público russo cujo nariz rebelou-se e desapareceu por um certo tempo, conforme é narrado por Gogol. Lembrando-me da situação humilhante enfrentada pelo russo, senti uma grande pena de Dona Henrica. Quanto tempo ainda ela ficaria sem essa parte do corpo? Seria possível, de alguma maneira, convencê-la a voltar? Essas e outras dúvidas percorreram-me como verdadeiros raios, sem me dar descanso durante alguns minutos, até que minha consciência atreveu-se a cutucar-me. Sim, eu não poderia abandonar aquela pobre mulher ao deus-dará. Alguém precisava tomar partido de sua terrível condição. Além do mais, tratava-se de um novo desafio para minha carreira. Bati o martelo:

- Muito bem, Dona Henrica. Vamos aos fatos.

Minha cliente mostrou-se tão satisfeita que por pouco não se esqueceu de sua impossibilidade de sentar-se. Foi logo falando:

- Procurei um acordo amigável, mas ela está irredutível. O senhor sabe como é, tomou gosto pela liberdade, conheceu pessoas que estão lhe enfiando minhocas... Desculpe-me se isso parece grotesco, doutor, mas acho que devo lhe dizer tudo, está correto?

Na verdade, a bunda de Dona Henrica encontrava-se por aqueles dias negociando seu passe com uma emissora de televisão. Pelo que minha cliente havia especulado, ela estava cotada para apresentar um programa de variedades em horário nobre, o que nada mais era do que seu grande sonho ao assistir ao sucesso de tantas colegas que contam com a conivência de suas donas. No mesmo dia, após marcar um horário por telefone, fomos até a emissora falar com um de seus diretores, que nos recebeu com muita gentileza. A simpatia, no entanto, tornou-se inquietação quando ele soube de nosso propósito. Mexeu-se na cadeira e pôs-se em pé:

- Mas, meu caro doutor, o senhor e sua cliente estão me pedindo algo que foge da minha alçada. Não fomos nós que a procuramos. E, além do mais, as gravações feitas até aqui revelam um grande talento de nossa futura contratada.

Dona Henrica desesperou-se ao meu lado. O executivo voltou a sentar-se, deixando apenas a pobre mulher em pé, o que de certa forma constrangeu-nos a ambos, mas fazer o quê? Naquela hora, até pensei na possibilidade de o diretor da emissora apiedar-se da situação e facilitar-nos o trabalho, mas ele não parecia disposto a colaborar.

- Os detalhes do contrato também estão em fase adiantada. Nosso departamento comercial já está inclusive se preparando para levar a novidade ao mercado.

Dona Henrica tomou a palavra:

- O senhor me desculpe, mas eu não consigo compreender como uma emissora de televisão pode se interessar por uma apresentadora completamente desconhecida. Que audiência ela pode atrair?

Nisso, um sorriso de ânimo abriu-se no rosto do executivo:

- Eu mesmo presenciei um dos testes. Ela tem um alto grau de expressividade, sabe dançar muito bem, tem ótima aparência e também é bastante ousada quanto ao figurino.

De esguelha, senti minha cliente enrubescer-se, mas ela não se deu por vencida:

- Eu não gostaria de entrar em assuntos particulares, mas do jeito que as coisas andam, não estou vendo outra saída. Saiba o senhor que ela tem ótima aparência graças ao silicone implantado há alguns meses. E ainda falando sobre aparências, acabamos de voltar de uma viagem pelo verão grego. O tom vivo logo vai desaparecer, não tenha dúvida disso.

O executivo ajeitou-se na cadeira:

- Minha cara Dona Henrica, eu entendo sua situação, mas realmente é algo que foge ao meu domínio. Os testes de ontem tiveram a participação do público e a aprovação foi muito significativa. Estamos convictos de que o telespectador dará a sustentação necessária à nossa nova apresentadora.

Minha cliente não pôde evitar um rompante de raiva. Aos berros, dirigiu-se ao diretor:

- É de se admirar que uma emissora de televisão dê tanto valor assim a uma bunda miserável e sem caráter como essa! Vocês não têm coisa mais importante para pôr no ar?

O executivo mostrou certa agitação, mas não chegou a se enfurecer:

- Minha senhora, se o povo quer a bunda, nós temos que dar a bunda ao povo...

Percebi que a discussão estava rumando para ângulos obscenos:

- Por favor, por favor, vamos manter a cabeça no lugar. Seria possível ao menos conversarmos com ela, tentarmos expor a gravidade do problema?

O diretor não viu inconveniente algum em meu pedido. Dali a pouco, atendendo a um chamado seu, lá estava a exuberante bunda de Dona Henrica. Devo confessar que realmente ela tinha presença. Ao contrário de sua ex-companheira, ela pôde sentar-se confortavelmente ao meu lado, após cumprimentar-nos e dispensar a Dona Henrica um olhar fabricado entre a desconfiança e o cinismo. Quando fiz a proposta, eu já tinha em mente um plano que, a despeito das terríveis dificuldades apresentadas até ali, poderia ser consensual. Sem rodeios, fui logo ao assunto:

- Bem, pelo visto, todos aqui têm posições muito claras e distintas a respeito dessa questão glútea. A emissora já fez testes e aposta no sucesso da nova apresentadora, que poderá ampliar a audiência e consequentemente trazer mais receitas à empresa. Dona Henrica se sente traída, pois sem aviso prévio, comunicado oficial ou qualquer satisfação, sua bunda a deixou. Além disso, sua condição física se tornou precária. Já a bunda de Dona Henrica vislumbra a possibilidade de realizar seu grande sonho através de um ousado projeto profissional. De minha parte, sou franco a dizer que cada caso resolvido representa ponto positivo para minha carreira e dinheiro no meu bolso. Dessa maneira, acredito que um litígio entre as partes demandaria tamanha dor de cabeça para todos que não valeria a pena. A emissora correria o risco de suspender a estreia do programa por ordem judicial, Dona Henrica seguiria humilhada moralmente e tolhida em sua performance física, a bunda de Dona Henrica ficaria no estaleiro por um tempo imprevisível, sem poder concretizar seu sonho de vida e receber por isso, e eu teria de levar adiante um processo trabalhoso cujo ineditismo exigiria um esforço descomunal que jamais poderia ser devidamente pago por minha cliente. Sendo assim, proponho às partes algo perfeitamente viável, que se resume na volta da bunda ao seu lugar de origem e na imediata contratação de Dona Henrica pela emissora. Para a empresa, seria vantajoso porque seriam duas profissionais contratadas pelo preço de uma, pois tenho certeza de que nesse caso Dona Henrica e sua bunda não seriam inflexíveis e saberiam tratar com justiça os aspectos contratuais. Minha cliente sabe que nada pode ser pior do que continuar sem bunda, e sua bunda, conforme já foi exposto, quer apenas fazer sucesso na televisão, assim como muitas colegas. Eu mesmo posso ampará-las no sentido de elaborar esse documento. Se todos estiverem de acordo, podemos resolver isso tudo agora mesmo.

Em resumo, a proposta foi aceita e daqui a um mês o novo programa estreará com o interessante nome que eu mesmo sugeri: “Henrica mostra a bunda”. Lógico que o teor já é bastante conhecido de todos, mas o nome certamente atrairá a curiosidade do público para mais um programa de grande penetração da televisão brasileira.

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