Piadas, Nelson Ned, música e morte

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Dificilmente eu guardo na memória uma piada. Acho que é porque eu não gosto da maioria delas. Uma piada quase sempre é depreciativa, preconceituosa, racista e, ainda mais quase sempre, de mau gosto.

Hoje, domingo, vejo no facebook uma série de piadas sobre a morte de Nelson Ned, boa parte disfarçada sob o pseudônimo de “enterro de anão”.

Há tantas piadas sobre a morte. Algumas são boas, desprovidas do ranço que enumerei no primeiro parágrafo. Às vezes, nem piadas são. São histórias, mesmo. Fatos.

Na minha cidade, contam a passagem de um velhinho que adorava tocar pandeiro e não podia ver uma rodinha de pessoas que já ia chegando, batendo no seu instrumento musical.

Pois bem. Numa certa noite, depois de tomar umas e outras, ele voltava para casa quando uma aglomeração chamou sua atenção. Festa, deve ter pensado. E, como as mariposinhas de Adoniran, dirigiu-se para as luzes agitadas. Era um velório. Dizem que saíram com ele nas costas.

A historinha envolve morte, música e bom humor. É inofensiva. Quase ingênua.

Mas nem sempre a brincadeira obedece a contornos singelos, principalmente quando o assunto é a dita cuja. E é isso que me assusta. Será que as pessoas que se propõem a fazer piadas de mau gosto com a morte o fazem conscientemente? Será que o fazem com a razão em dia?

Uma vez, numa das redações onde trabalhei, havia vários jornalistas jovens, bem jovens (acho que até eu era jovem na época). Foi no ano em que morreu o deputado filho de Antonio Carlos Magalhães.

A TV transmitia o velório ao vivo e, claro, ACM aparecia constantemente. Chorava constantemente. E na redação alguns dos jovens jornalistas comemoravam o sofrimento do velho coronel da política nordestina. Como se a perda de um filho fosse diferente entre um pobre e um rico, na casa grande ou na senzala, entre um político e um eleitor, entre um homem honesto e um corrupto explorador filho da puta.

O fato é que não me lembro de ter ouvido uma música na voz de Nelson Ned. Minhas ecléticas preferências musicais nunca o incluíram no meu setlist. Até que certo dia, no Rio de Janeiro, eu e alguns amigos saímos da praia para almoçar. Na rua, ao lado do bar “Garota de Ipanema”, havia um grupo cantando. Um dos sujeitos tinha um vozeirão espetacular. E bem nessa hora, sob uma incomum garoa carioca, foi que ouvimos “Tudo passará”, eternizado na voz de Nelson Ned.

Eu sei, compreendo – e acho natural –, que para muita gente, e talvez para mim mesmo caso estivesse do outro lado, ou seja, não tivesse participado daquele acaso, para muita gente esse lapso do cotidiano nada representa. Porque realmente é estranho explicar como um momento tão simples tenha se tornado tão especial.

Estávamos, talvez, andando tão à flor da pele que qualquer beijo de novela nos fizesse chorar, como canta Zeca Baleiro? Fragilizados por razões pessoais? Ou apenas entregues à emoção que o Rio de Janeiro é capaz de nos impregnar? Quem sabe?

Quem poderá saber?

Quem poderá mensurar instantes intraduzíveis cujo teor mergulha nas profundezas da música?

Quem poderá mensurar a emoção da morte? Seja na casa de luto em que o velhinho invadiu inocentemente com seu pandeiro, seja no velório do filho do político odiado, seja no enterro do anão.

Acho que muita gente se perdeu na futilidade (se quiserem, na superficialidade) das relações. A vida hoje se parece mais com um objeto que podemos enterrar no quintal do que com uma memória rica que devemos guardar.

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