A caminhada e o garoto de bicicleta

Retomo aos poucos minhas atividades físicas, que considero fundamentais para minha sobrevivência. Assim como experimento o estímulo impressionante da cafeína após meus (no máximo) dois cafezinhos diários, também sinto a endorfina produzir seus efeitos como se um sol particular nascesse diante de mim. Fiquei parado durante algumas semanas, nem sei explicar o porquê. Mas o fato é que desde já lamento o que perdi nesse período. Porque caminhar é também vivenciar uma crônica da vida.

Vejam o que me ocorreu agora há pouco, por volta das sete e meia da noite.

Parei num determinado ponto da caminhada e, apoiando-me ao poste de uma placa, comecei a fazer meus alongamentos. E lá veio, enquanto isso, um garoto, 7 ou 8 anos, de bicicleta e boné. Coincidentemente, seria ali também o ponto que ele contornaria para retornar à companhia dos pais, a coisa de trinta metros de onde estávamos. Tudo seria normal se ele não me olhasse com simpatia e soltasse aquela frase. Uma frase que me comoveu: “Oi, bom dia... quer dizer, boa noite, né?”.

Levei alguns segundos para responder. Fiquei surpreso. Comovido de verdade. Não é fácil nos dias de hoje um garoto de 7 ou 8 anos cumprimentar um adulto desse modo. Eu estava já no fim dos meus alongamentos e ao terminá-los, num impulso, dei três ou quatro passos na direção de onde estavam os pais e a própria criança. Num lapso, pensei em dizer, aos pais, parabéns pelo menino que vocês estão educando.

Mas antes que eu completasse meu trajeto, algo me travou. Não houve endorfina que me animasse a ir adiante. Não sei. Fiquei pensando no que os pais poderiam achar de um sujeito que fica conversando com o filho de 7 ou 8 anos. Pensei se iriam me interpretar de modo positivo. Pensei coisas assim. E passei reto, carregando um peso a mais que o simples cansaço.

Hoje, por mais que o mundo nos abra todas as portas para as mais diversas possibilidades de integração humana, a verdade é que às vezes ainda lutamos contra barreiras criadas por nossas próprias limitações, por nossos medos, por nossas incertezas, por nossa insegurança diante de tamanha abrangência.

Cem metros abaixo, na sequência da caminhada, observei um adolescente jogar, de dentro do carro, uma garrafa de cerveja vazia que se espatifou na sarjeta. Espero que aquela criança não se torne este adolescente. Espero que aquela criança não seja infectada por nossas limitações. Que ela não tenha medo de continuar dizendo boa noite e andando de bicicleta em meio a todos nós.

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