A dor de todos os natais

O Natal dói em mim. Mas, primeiro, vamos ao contexto.

Meio século se passou sem que eu pudesse decifrar o significado do Natal. A principal razão talvez se justifique no fato de que não sou religioso. Isto é, não tenho religião. Eu respeito as religiões, mas não comungo com elas, por assim dizer. Assim, permaneço a certa distância do caráter místico sobre o Cristo aniversariante, mas admiro o mítico, o caráter mítico.

Acredito (ou quero acreditar) na história do homem cujas forças espiritual e moral atravessam milênios. Acho que sua existência, assim como a de profetas ou figuras a partir dos quais foram fundadas outras religiões, serve de apoio para que a humanidade avance em direção à sua própria descoberta. Se não o faz, se afunda em sua incapacidade de digerir lições que decora sem aprender, não me parece se tratar de culpa das religiões ou daqueles que as inspiraram.

Acredito (ou quero acreditar), como já escrevi aqui mesmo no blog, num tipo particular de Deus. Não tenho simpatia por um Deus cheio de zombaria, rancor e injustiças. Prefiro o meu: um Deus parceiro e honesto. Parceiro porque está comigo nos tombos. E honesto porque não esconde que nem sempre poderá impedi-los. Parceiro porque me dá a mão para que eu me levante. Honesto porque não esconde que nem sempre poderá estar ali como um serviçal pronto a me atender.

E, sim, também pode ser chamado de salvador. Porque me salva pela aplicação da consciência. A consciência da limitação e finitude. Só esse gênero de Deus poderia justificar, a meu ver, os buracos que o todo poderoso tem deixado no seu glorioso rastro sobre a terra.

Talvez não seja preciso dizer mais nada para tornar clara a razão principal da minha dificuldade de compreender o tal espírito de Natal ou, como escrevi antes, seu significado. Há também outras razões, mas elas se perdem naquela névoa colossal que se forma quando tento captar as próprias intenções da vida. Desde que, aos três ou quatro anos de idade, brincando com um peixe de plástico amarelo debaixo da máquina de costura da minha mãe, perguntei a ela: mãe, de onde Deus veio?

Agora, o mérito da questão.

O Natal dói em mim. Todos os natais doem em mim. Não, não é aquela dor da consciência que remete às crianças executadas no Paquistão, às vítimas do ebola na África ou às presas fáceis das drogas nas cracolândias da vida. Tampouco a dor da saudade, das coisas perdidas e dos desejos utópicos. Não posso dizer que seja algo tão palpável e próximo de minha insignificante indignação.

A dor do Natal em mim surge como o mantra de um sânscrito imemorial ou o versículo de um evangelho taquigrafado numa linguagem específica para minha mente. É que não posso reparti-la, a dor. Não posso explicá-la com os clássicos caracteres digitados numa luminosa tela de computador ou desenhados num límpido pedaço de papel. Não é tão simples assim.

Ela, a dor, está no aperto de mão da saudação tradicional da data, no fundo do prato com a boa comida que me servem, no vinho atraente da taça, no torpor que se segue à ceia. Embora tenha começado antes, dias antes, semanas antes, ela, a dor, ainda sobrevive ao dia seguinte. E a outros também. A velha máscara que, de tanto usar, já se encaixa perfeitamente às linhas da minha face tenta expulsá-la, mas apenas a encobre.

É uma dor que procuro decodificar com a típica bravura dos teimosos ignorantes. Mas nem mesmo para mim – digo nem mesmo para mim porque às vezes podemos compreender sentimentos cuja transparência só diz respeito ao nosso íntimo, sentimentos que não temos como expressar a terceiros – nem mesmo para mim ela se revela com nitidez. E essa característica acrescenta, além da angústia de todas as dores, a tortura de algumas dores.

Oscar Wilde escreveu que a dor é a mais sensata de todas as coisas criadas. No caso da minha dor de Natal eu acrescentaria um asterisco ao final da frase e o justificaria assim: *à exceção da dor de Natal daquele cara lá de Bauru, sabem? Aquele que nasceu na Lagoa Seca, bairro rural de Cafelândia, onde as árvores de Natal de sua infância eram galhos secos adornados por cascas de ovos pintadas.

Obrigado, Wilde!

Já cheguei a pensar que o alimento para esta dor de Natal é minha própria intenção (quem sabe inconsciente) de cultuá-la. Seria, com todo respeito às proporções, equivalente ao culto à própria data. Enquanto religiosos cultuam o Natal, eu cultuo minha dor de Natal. Mas depois pensei que essa tese não se sustenta. Porque se há algo que me faria feliz nesta época do ano, se há um presente de Natal que me agradaria plenamente, este presente seria a fórmula para me livrar de minha dor de Natal.

E assim, em sua companhia, sem poder exorcizá-la, sem poder compartilhá-la, sem poder compreendê-la, eu a carrego nas costas. Ou, seria melhor dizer, no colo. Porque ela se manifesta no peito. Eu a carrego até que, a exemplo de todas as dores, ela se confunda com outras dores.

E assim, em sua companhia, mas também em companhia de todas as outras dores, eu resisto mais um ano. Mais um ano eu tento superar minha incompetência para decifrá-la, para fazer dela um ensinamento útil, assim como me parece ser a maioria dos ensinamentos de Cristo. De Cristo e de outros profetas. De Cristo, de outros profetas e dos que escreveram suas histórias, dos que talvez as lapidaram às expectativas da humanidade sedenta de ensinamentos que nunca parecem satisfazê-la.

E talvez esteja aí uma pequena fresta, uma mísera saída para debelar, ou ao menos apaziguar, minha dor de Natal. Talvez esteja aí, nessa busca incessante, ininterrupta e infinda, o próprio germe de uma vida cujos significados jamais poderão ser revelados. Talvez esteja aí a resistência conjurada no que sempre parece ser meu último fôlego na corrida atrás de um mundo melhor, minha última braçada no mar tempestuoso das incompreensões, meu último gozo em nuvens de amores que se dissipam diante do ódio que marcha pelas ruas e desertos.

Talvez esteja aí, nessa busca incessante, ininterrupta e infinda, a resposta à pergunta bobinha que fiz à minha mãe.

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