O badalo misterioso

Achei esta foto linda para ilustrar o conto (mas infelizmente não achei o crédito)

Achei esta foto linda para ilustrar o conto (mas infelizmente não achei o crédito)

O pequeno grupo de alunos reúne-se depois das aulas noturnas para ler em voz alta e discutir obras literárias de grandes autores. Um dos estudantes, filho do dono de uma modesta livraria nas imediações da escola, convencera o pai a ceder-lhes o espaço para as sessões semanais.

E lá estão naquela noite combinados de falar sobre Tchékhov*. Para começar, uma das quatro moças havia escolhido a leitura de um conto pouco comentado cujo título da edição que tem em mãos é “Pavores”.

- É um dos meus preferidos – interrompe-se depois de ler as primeiras linhas, nas quais o narrador confessa que em toda a sua vida só sentiu pavor três vezes, sendo o primeiro caso o de um campanário, visto por ele à distância e de onde escapava uma débil e inexplicável luzinha: este o objeto do pavor enunciado e sobre o qual discorre o autor na parte inicial do conto.

Ao terminar a leitura, enquanto observa os colegas com seus grandes olhos claros, a moça detém-se a um tique já captado pelos demais e, novamente, assopra os cabelos que lhe caem sobre a face antes de acrescentar que talvez a história a faça lembrar uma estranha passagem familiar e que talvez seja esse o motivo de sua predileção.

- Por que não nos conta? – anima-se a estudante sentada bem à sua frente, do outro lado da mesa, cujos cabelos aparados na testa por uma franja bem curta lhe conferem uma aparência curiosamente infantil.

- É uma boa ideia – concorda um dos rapazes parecendo cheio de si ao lado da narradora.

- Bem – a moça sorri de um modo tímido e simpático, dá dois suspirinhos e de novo faz uma ventania com a boca na direção dos cabelos, – então aqui vai.

Ela disse assim:

- Minha avó, que já é bem velhinha, conta que no povoado onde meu avô morreu, isso há bastante tempo, havia uma igrejinha a menos de meio quilômetro da casa deles. E todas as madrugadas, quando o silêncio era ainda mais fundo do que durante o dia, eles ouviam o sino badalar a cada uma das horas cheias. Eles viveram lá muitos anos, até que certo dia as autoridades religiosas anunciaram a retirada do sino. Na verdade, a igrejinha fecharia suas portas ali. Acho que naquela época o distrito se encontrava praticamente desabitado, restando apenas duas ou três famílias de sitiantes, como eram meus avós. Bem, o caso é que levaram o sino embora, mas para eles parecia que às vezes as badaladas continuavam a ecoar pelos ares do lugar. Noite após noite, eles podiam jurar que em certas horas ouviam o badalo. Até que meu avô morreu. É quando vem o desfecho da história. A certa altura do velório, minha avó debruçou-se sobre o marido para beijar-lhe a testa e então sentiu-se como se sacudida por uma onda de pavor e curiosidade: ela jura que do ouvido do defunto vazava o som de um badalo cujas batidas cessaram um segundo antes que ela pudesse confirmá-las com o testemunho de alguém presente.

E nisso, quando ela acaba de contar o episódio e todos permanecem em silêncio por instantes, como se absorvessem algum sentido da despretensiosa narrativa, a garota de franjinha ergue as sobrancelhas e faz um movimento com a cabeça que abarca em seu olhar intrigado todo o teto da livraria:

- Tem alguma igreja aqui perto, gente?

De uma vez, todo o grupo volta-se a ela.

- É que...

Sim, sim. Não é preciso continuar. Todos ali tinham ouvido. O badalo. O nítido som, acompanhado de um breve eco, que atravessara as paredes, as prateleiras, os livros, insinuando-se num rumorzinho que logo se dissipou.

O som de um badalo – pensa a estudante que lhes contara o pequeno episódio. – O som de um badalo que bate eternamente. Um badalo à procura de suas horas. E que por isso mesmo bate para sempre. Porque jamais encontrará o que se perdeu com o tempo.

Quando se dá conta, agora livre de seus devaneios recentes, ela ouve que a da franjinha já lê velozmente a segunda parte do conto. O personagem de Tchékhov está diante de um mistério na noite: na escuridão, sobre os trilhos ferroviários, percebe a aproximação de um ruído que cresce vertiginosamente e, em seguida, a passagem de um grande vulto negro...

*(Nota: uma das grafias utilizadas por editoras brasileiras)

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