Leia texto do escritor argentino Fernando Sorrentino

UM LIVRO ESCLARECEDOR
Ludwig Boitus: Stelzvögel, Gotinga, 1972

Fernando Sorrentino

No conciso prólogo dessa obra, o professor Franz Klamm nos informa que o Dr. Ludwig Boitus viajou de Gotinga a Huayllén-Naquén com o exclusivo propósito de estudar in loco o poder de atração simbiótica dessas aves pernaltas popularmente conhecidas como calegüinas, denominação quase unanimemente aceita na bibliografia especializada em espanhol.

Essa obra vem preencher um sensível vazio sobre o tema. Antes das exaustivas investigações do Dr. Boitus – cuja exposição ocupa quase um terço do volume –, pouco se sabia cientificamente sobre as calegüinas. De fato, salvo os fragmentados e assistemáticos - e, geralmente, povoados de afirmações fantasiosas ou dificilmente comprováveis – estudos de Bulovic, de Balbón, de Laurencena e outros, fazia-se necessária, até a data, uma fidedigna fundamentação científica que permitisse indagações mais profundas.

Nesse trabalho, o Dr. Boitus parte da premissa - talvez questionável - de que a característica predominante das calegüinas é uma personalidade poderosíssima (entendendo-se personalidade no sentido empregado por Fox e sua escola): a tal ponto poderosa, que, por sua simples presença, as calegüinas provocam nos demais seres vivos uma simbiose bastante profunda à sua própria condição.

Essas aves são encontradas exclusivamente na lagoa de Huayllén-Naquén. Seu número é muito elevado e talvez supere um milhão de exemplares, pois sua caça está proibida, sua carne não é comestível e suas penas não têm valor comercial. Como é comum às aves pernaltas, alimentam-se de peixes, batráquios, larvas de mosquitos e outros insetos.

Embora providas de asas bem desenvolvidas, raramente voam e, quando o fazem, jamais ultrapassam os limites da lagoa. São um pouco maiores que as cegonhas, mas ao contrário destas, não têm hábitos migratórios. O dorso e as asas são negros, chegando a ser azuis; a cabeça, o peito e o ventre, de um branco amarelado; as patas, de um amarelo pálido.

Seu habitat, a lagoa de Huayllén-Naquén, é de pouca profundidade, mas bem extensa. Como – apesar das reiteradas solicitações neste sentido – não há pontes sobre ela, os habitantes do local se vêem obrigados a dar uma grande volta para alcançar a outra margem, o que tem provocado, além de contínuas queixas do único jornal local, que a comunicação entre as duas margens seja pouco freqüente.

Claro que, aparentemente, com mais rapidez e facilidade poderiam atravessar a lagoa com a simples utilização de pernas-de-pau e até sem estas, já que em seu local mais profundo a água não ultrapassa o nível da cintura de um homem de estatura mediana. Mas como – mesmo de um modo talvez intuitivo – os habitantes conhecem o poder simbiótico das calegüinas, o fato é que preferem não tentar a travessia e optam, como já mencionado, por rodear a lagoa que, por sua vez, é cercada por um excelente caminho asfaltado.

Esta circunstância, entretanto, não impede, e talvez até favoreça – e isso se pode justificar, em virtude dos poucos recursos de subsistência oferecidos pela região – que o aluguel de pernas-de-pau para os turistas seja o negócio mais rentável de Huayllén-Naquén. A falta de uma concorrência séria e a inexistência de normas oficiais a esse respeito têm feito com que o preço do aluguel das pernas-de-pau seja, evidentemente, muito elevado, apesar de, sem dúvida, tal exorbitância ser a única saída para os comerciantes se ressarcirem de sua inevitável perda.

O que existe é uma lei da província cujo alcance, bastante limitado, exige que nos locais onde se alugam pernas-de-pau haja, bem visível e com letras garrafais, um cartaz com a advertência de que seu uso pode provocar alterações psicossomáticas de certa gravidade nos usuários.

Em geral, os turistas preferem desconhecer tal aviso e até rir-se dele, se bem que não se pode assegurar que todos o leiam, mesmo quando é inegável que os comerciantes cumpriram rigorosamente a exigência de exibir o cartaz em lugar bem visível, e sabe-se que as autoridades são inflexíveis quanto a esse aspecto, embora seja pouco freqüente a fiscalização, sempre precedida de um aviso, apesar de este costumar chegar poucos minutos antes do fiscal que, entretanto, cumpre fielmente sua tarefa, se bem que não se conheçam casos em que algum comerciante tenha sido multado.

Já de posse de suas pernas-de-pau, os turistas, sozinhos, em pares, ou em alegres e ruidosos grupos de três, cinco ou dez pessoas, se internam na lagoa de Huayllén-Naquén, com o propósito de alcançar o povoado da margem oposta, onde podem adquirir, a preços reduzidíssimos, exóticos peixes em conserva, cuja venda constitui o principal meio de vida dessa população ribeirinha.

Durante os primeiros duzentos ou trezentos metros, os turistas avançam jubilosos, trocando brincadeiras entre eles e espantando, com seus gritos e risadas, as calegüinas que, como todas as aves pernaltas, são extremamente assustadiças. Mas, à medida que se internam cada vez mais na lagoa, suas manifestações de alegria e exultação tornam-se mais tênues, ao mesmo tempo em que aumenta a densidade de calegüinas por metro quadrado.

Agora são tantas e tantas, que só com muita dificuldade os turistas conseguem abrir caminho entre elas. Por outro lado, parece que, protegidas por seu grande número, elas perdem qualquer temor, embora a razão de sua quietude talvez possa ser encontrada na impossibilidade concreta de se moverem. Seja por que motivo for, o certo é que os gritos já não são suficientes para afastá-las, de modo que é mister recorrer a pauladas ou tapas e, mesmo assim, é pouco o espaço cedido pelas calegüinas.

É neste momento que, em geral, os turistas se calam: já não há brincadeiras nem risadas. Então – e só então - percebem um pesado murmúrio que cobre a lagoa toda e que nasce de milhares de gargantas de milhares de calegüinas. Em relação ao timbre, tal murmúrio não é muito diferente do que costumam emitir os pombos, só que de muito maior intensidade.

Penetra, assim, nos ouvidos e nos cérebros dos turistas tão profundamente, que quase chega a fazer parte deles, até o ponto em que, pouco a pouco, também os turistas começam a emitir o mesmo som: no início, de um modo evidentemente bastante imperfeito, mas logo já se torna impossível distinguir entre a voz dos humanos e a das calegüinas.

Quase simultaneamente, os turistas percebem, com uma sensação interna de asfixia, que, até onde o olhar alcança, tudo são calegüinas: já não podem distinguir a terra firme nem a água da lagoa. À sua frente e atrás, à direita e à esquerda, vislumbram um contínuo e monótono deserto, em branco e em preto, de asas, bicos, patas e penas.

Às vezes, sobretudo quando o grupo de turistas é numeroso, costuma haver entre eles um mais lúcido ou menos exaltado, que intui a conveniência de regressar, desistindo do projeto de adquirir a preços reduzidos os raros peixes em conserva vendidos na margem oposta. Margem oposta: mas qual é a margem oposta? Como voltar, se já perderam toda noção sobre de onde vêm e para onde vão? Como voltar se, com efeito, já não há pontos de referência, se tudo, em preto e em branco, é um contínuo e monótono deserto de asas, bicos, patas e penas? E olhos: dois milhões de olhos que piscam inexpressivamente.

Apesar da evidência de que já não é mais possível voltar atrás, aquele turista mais lúcido ou menos exaltado dirige-se a seus companheiros e pateticamente lhes diz: “Amigos! Voltemos por onde viemos!”. Mas seus companheiros já não entendem seus estridentes grasnados, tão diferentes do murmúrio anterior. E, apesar de eles também responderem com grasnados, ainda têm consciência de que continuam sendo humanos.

O medo toma conta deles, já não podem raciocinar com clareza e todos querem falar ao mesmo tempo. O coro de grasnados é ininteligível, não conseguem se entender e, embora queiram, não podem avisar uns aos outros que todos já são calegüinas. As outras calegüinas, as mais antigas daquela comunidade, que até então haviam permanecido no silêncio indiferente do espectador que conhece a trama, irrompem todas juntas, elas também, a grasnar agudamente, com todas as suas forças.

É um grasnar geral, uma explosão de triunfo e de conquista que, partindo desse primeiro e estreito círculo, estende-se rápida e tempestuosamente por toda a largura e extensão de Huayllén-Naquén, até ultrapassar seus limites e alcançar as casas mais afastadas do vilarejo. Os habitantes tapam os ouvidos com os dedos e sorriem. Por sorte, a algazarra não dura mais do que cinco minutos e, somente quando cessa completamente, os comerciantes do lugar começam a fabricar tantos pares de novas pernas-de-pau quantos foram os turistas que se internaram na lagoa.

Tradução de Ana Flores
[De El mejor de los mundos posibles, Buenos Aires, Editorial Plus Ultra, 1976]

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