Três dúvidas

Leonardo Brasiliense, escritor gaúcho que já venceu o Prêmio Jabuti, acaba de publicar “Três dúvidas” (Companhia das Letras, 176 páginas).

Li o livro numa única estocada. E com o coração na mão. Porque, além da profundidade da proposta filosófica (bem explicada na orelha inclusive), há ali uma tensão permanente, um fio esticado que está sempre nos ameaçando com um possível rompimento.

Acho que, antes de mais nada, antes da própria "proposta maior" da obra, vem essa essa tensão, essa desesperadora perspectiva de irresolução, essa inquietante sensação de que, ao entrar no livro, fazemos parte de um voo cego cujo destino se abre à nossa frente como um insuportável leque de incertezas: não sabemos mais se teremos uma pista segura para aterrissar na volta.

Eis a sinopse publicada pela Companhia das Letras:

Três dúvidas é um livro sobre a dificuldade de se conhecer a realidade. Será que o que eu penso existe mesmo? Será que meus sentimentos correspondem à verdade? Como faço para não me perder na vastidão das lógicas possíveis para os sentimentos provocados por minha experiência da vida? Qual é esse fio que separa a loucura da sanidade, o vago do nítido, a impressão do conhecimento?

São três novelas. Na primeira, um homem recém-aposentado se vê sozinho no quintal de casa, olhando para dois limoeiros gastos e um poço sem uso, descartado do curso do tempo no qual se movem sua mulher, seu irmão, sua cunhada, o merceeiro, as pessoas que ocupam as ruas em seus quefazeres.

Na segunda, um jovem do interior se perde num labirinto de ameaças em Porto Alegre depois de buscar uma indiazinha boliviana no aeroporto. Como numa caixa de más surpresas, uma situação engendra a próxima para dissolvê-la minuciosamente até deixá-la reduzida a uma consciência tomada de pavor.

Na terceira novela, um jornalista está prestes a dar um salto na carreira com uma matéria bombástica que, acredita, irá transformá-lo no repórter mais importante do jornal. Mas um acidente na estrada transforma a realidade em destroços e as pessoas em espectros.

Um livro notável, de um jovem autor com muito a dizer.

Eis um trecho do livro:

Aos cinquenta e nove anos, José Francisco vive numa casa
de dois quartos, sala, cozinha, um banheiro dentro e outro fora, na área de serviço. No quintal, dois limoeiros e um antigo poço. Em parte gramado, o quintal é onde ele se sente criança, porque na casa dos pais também havia um poço, entretanto havia mais árvores, mais sombra, mais futuro.

Aposentou‑se faz um ano. Era corretor de seguros, agora é
um aposentado, simplesmente, não um “corretor de seguros aposentado”. Tem a impressão de que a aposentadoria joga a todos nessa última vala, sem importar o que faziam antes, uma vala rasa e aberta a toda mesmice: Fulano era funcionário, agora é aposentado; Beltrano era mecânico, agora é aposentado; o dentista, aposentado; o cozinheiro, aposentado.

Com seu pai foi diferente. Naquele tempo criavam‑se galinhas no quintal, tinha‑se uma horta. O pai, aposentado, tinha esses compromissos. E morando na cidade pequena, encontrava os antigos colegas na praça, comentavam as notícias, perguntavam‑se pelas famílias, quando viriam os netos. Os netos, seu pai 12 tinha dois, presentes do filho mais velho. Ele os esperava nos feriadões. Tinha o que fazer, tinha sempre o que esperar. Mas José Francisco não tem filhos, e na cidade grande os colegas não se conhecem enquanto trabalham, aposentados é que não têm por que se ver. Esses dias, leu no obituário o nome de um deles. Podia ser um homônimo. Na cidade grande há muitos homônimos, nunca se sabe se uma pessoa é ela mesma.

Sábado passado, depois do almoço, estirado na cadeira de
balanço do quintal, ele pensou em procurar algum de seus
homônimos. No encontro, os dois se apertariam as mãos, diriam “Prazer, José Francisco da Silva”, e teriam a sensação de se conhecerem há muito tempo. Quando acordou, no meio da tarde, não pensava mais nisso.

Abriu os olhos e viu a mulher. Carmem regava as plantas.
Ela não o viu, estava de costas. Mesmo de frente, não o veria: conhece‑o por completo, são vinte e cinco anos de casamento. Por conhecê‑lo tanto assim, tanto quanto ele próprio, já não lhe presta atenção.

José Francisco ficou olhando para a mulher até ela se virar.
Fingiu que acordava:

— Que hora é?

— Três e meia.

Voltou a dormir, forçando. Não tinha mais sono.

Agora, oito da manhã de quarta‑feira, José Francisco está de novo no quintal. Carmem foi trabalhar. Hoje ele almoçará na casa do irmão, que está de aniversário, almoço de família. No fim de semana o irmão vai com a mulher para o litoral, vai encontrar os filhos e os netos. A “família” no almoço de hoje, porque os 13 pais morreram há anos, são apenas eles dois. Desde que os pais se foram, o irmão, mais velho, tenta mantê‑los unidos, telefona‑lhe
semanalmente.

Ele está no quintal às oito horas da manhã. O quintal,
embora menos verde que o de sua infância e com um poço que não serve para nada, é o único lugar da casa que o faz recordar algo bom, onde havia mais sombra, quando havia mais futuro.

Aproxima‑se do poço. Abre‑o arrastando a tampa, um peso.
Olha o fundo e percebe o quanto é inútil o que acaba de fazer. O poço é seco. Arrasta a tampa de volta pensando que precisa dar um futuro a sua vida, qualquer um, e sem demora.

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