Dona Carmem Vermelha e o forasteiro da mesa 7 (Um quase-faroeste)

1

Guillermo Jesus pisou em Cafelândia numa manhã poeirenta de 1926, dia em que a pequena cidade recém-emancipada comemorava a festa de sua padroeira, Nossa Senhora da Assunção. Haveria, logo mais à tarde, uma procissão. Desde a manhã, sob os rojões espocando no ar seco de agosto, começavam a chegar da zona rural punhados de sitiantes e colonos. O domingo prometia ser supimpa, como lembrou Dona Carmem Vermelha quase duas décadas depois, em 2 de setembro de 1945, também um domingo, ocasionalmente marcado pelo fim da Segunda Guerra Mundial. Ela se animava então a contar a um enigmático freguês os acontecimentos daquele longínquo e fatídico dia em que tudo se passou exatamente aqui, disse ela, dentro destas mesmas paredes.

- Exatamente aqui – diz o velho Teotônio Três Marias, escancarando sua bocarra sem um dente sequer –, dentro destas mesmas paredes.

Bento Pirama suspende por um instante as anotações, mas deixa o telefone celular bem diante do Velho Teotônio Três Marias, cuja voz firme e ardida continua a ser gravada. Bento Pirama sorve mais um golinho e percebe sobre o visor do aparelho microgotículas de saliva que escapam dos lábios ensopados do dono do bar.

- Não pense você, Bentinho, que Dona Carmem Vermelha era fácil no trato. Não, não senhor.

Dona Carmem Vermelha devia ter em 1945 menos de trinta anos, mas o endurecimento de suas linhas faciais podia confundir qualquer um. Se davam a ela quarenta anos, ou até mais – o Velho Teotônio Três Marias joga a mão para a frente –, qualquer um acreditava. Até mais, ele repete. Era dura como pedra. Mesmo quando a mãe morreu. Dura como pedra, meu filho. Fechou o bar e ficou o tempo todo ao lado do caixão, mas nem uma gota de lágrima, nada, nada. Mantém-se absorto por longos segundos antes de recuperar o fio da história. Mas naquele dia – o Velho Teotônio Três Marias balança a cabeça afirmativamente – ela pareceu rejuvenescer.

Abre suas gengivas peladas para o jornalista. Depois, meneando a cabeça, diz: rejuvenesceu!

2

Guillermo Jesus entrou no bar às dez e quinze. Carmencita reteve o momento na cabeça naturalmente. E também num caderninho minúsculo onde anotava quase todos os acontecimentos. Carmencita o marcou bem não apenas pelas longas costeletas ou pelos cabelos desarrumados ou ainda por seu porte atlético que parecia fazê-lo ocupar toda a mesa 7. Mas principalmente porque ela estava aprendendo a ver as horas. Tudo então se relacionava com aquele objeto redondo instalado na parede bem acima do baleiro. Às nove, Papai foi mijar. Às nove e vinte, é a vez da Mamãe. Quinze para as dez, agora sou eu sentada aqui, mijando. E sorria baixinho. Cinco para as dez, entrou o bêbado nojento. Dez e um, Mamãe deu um ovo cozido ao Doutor Rebelo. Dez e cinco, são três fregueses de uma só vez no balcão, e outros entrando! Dez e dez, Papai me manda ficar no canto para não atrapalhar o movimento. Dez e quinze, chegou um homem grande, bonito e cheio de poeira no paletó.

- Foi bem assim, garoto – o Velho Teotônio Três Marias encara Bento Pirama como se, octogenário que é, mereça uma salva de tiros pela boa memória. – Melena – grita de repente para o balcão –, que tal trazer mais uma aqui para nosso amigo?

Bento Pirama, no entanto, envolvido que está pela atmosfera westerniana, pergunta se ele tem algum uísque. Sim, o velho se levanta feito o rapazinho que era naquela distante data que marcou o fim da guerra. Um minuto depois, volta com o indicador e o polegar da mão direita enfiados em dois copinhos.

- Agora você falou meu idioma – pisca sorridente para Bento Pirama.

Sobre a mesa, desce a famosíssima garrafa quadrada de rótulo preto com letras brancas.

- Sabia – pergunta o Velho Teotônio Três Marias – que já fui chamado de Velho Jack?

Bento Pirama se diverte enquanto aspira o aroma inconfundível.

- Talvez – diz ao comerciante – caísse melhor John.

Os dois riem, mas logo o Velho Teotônio Três Marias parece se esquecer de si mesmo em algum lugar perdido no tempo.

- Chicharito Gomez nunca poderia prever – diz de repente.

3

Quando os olhos verdes e pequeníssimos como duas ervilhas de Chicharito Gomez pousaram sobre o ambiente, Dona Carmem Vermelha apenas olhou para ele de viés, entortou a boca, desconsiderou uma possível semelhança do passado que a trespassou feito um relâmpago, e disse ao então rapazinho Teotônio que devia ser um desses pirralhos metidos a besta que chegam a Cafelândia de vez em quando. Mas em poucos minutos Chicharito Gomez virou o jogo para si, mostrando-se simpático enquanto pedia o sanduíche e a cerveja.

- Ela até deixou escapar um tiquinho de admiração – o Velho Teotônio Três Marias aproxima no ar o indicador do polegar, rindo-se com a boca escura atrás das gengivas queimando com o uísque.

Ah, diz a Bento Pirama, era uma mulher e tanto, você precisava ver, Bentinho. Sabe por que a chamavam de Vermelha? Põe-se sério para dizer baixinho que era comunista. Isto mesmo! Mas o caso, meu filho, é que o Chicarito Gomez estava bem ali, e o Velho Teotônio Três Marias aponta para uma mesa vazia colada à parede atrás do jornalista. Sim, ali mesmo, embaixo daquele quadro com a loira fazendo propaganda da cerveja, bem ali. A senhora é a dona do lugar? A pergunta de Chicharito Gomez pegou Dona Carmem Vermelha de surpresa. O Velho Teotônio arregala os olhos para o jornalista. Caralho, Bentinho, quem não sabia que a Dona Carmem Vermelha era a dona do lugar?

- A cidade inteira sabia – arrisca Bento Pirama, aproveitando para dar um trago.

- A cidade inteira? – zomba o Velho Teotônio Três Marias. – A região toda, isso sim. O estado todo e sei lá mais o quê.

Dona Carmem Vermelha acabou de entregar as bebidas na mesa ao lado, anotou o pedido diante dos olhos dos fregueses, como fazia questão, e só então foi dar atenção a Chicharito Gomez.

- Pois quem haveria de ser?

4

Das dez e quinze à uma e meia da tarde, Guillermo Jesus tomou sozinho quatro garrafas de cerveja e cinco doses de cachaça. E não levantou uma só vez para mijar, anotou Carmencita em seu caderninho. Seria inútil descrever as várias páginas com ovos, salsichas, pães, frios e carnes, quitutes que Mamãe fazia como ninguém, supimpas. O que ficou no caderninho, no fim das contas e como um ponto final a tantas anotações sobre horas e comidas, foram aquelas marquinhas vermelhas que, abismada, Carmencita concluiu que jamais poderiam ter saído de seu lápis preto.

- Ela sentou ali – o Velho Teotônio Três Marias fez assim com a cabeça –, bem na frente do Chicharito Gomez.

Na verdade, só depois é que todos souberam quem era Chicharito, que se tratava de Chicharito Gomez. Dona Carmem Vermelha olhou ao seu redor e viu que todos os fregueses estavam bem atendidos, fez um sinal com a cabeça para Maria Curvelo, que ela ficasse de olho nas mesas, e naqueles minutos seguintes encarou Chicharito Gomez e perguntou sem mais delongas o que um homem tão bem vestido, incluindo aquela gravata cheia de florezinhas azuis, estava fazendo num comércio tão simplório. Dona Carmem Vermelha? Foi o que Chicharito Gomez perguntou enquanto mastigava o sanduíche.

- Eu mesma – com os olhos lambuzados de uma aguinha fina, o Velho Teotônio Três Marias engrossa a voz para imitar a distante patroa. – Eu estava bem ali – vira-se com dificuldade e indica a porta que, ao lado do banheiro, dá para o depósito dos fundos.

Dona Carmem Vermelha vestia sempre um roupão escuro, com largos bolsos de ambos os lados, de onde tirava a caderneta para anotar os pedidos dos clientes ou o lenço para enxugar a testa nos dias mais quentes. Era lá também que guardava o dinheiro do dia.

- Era isso que todos nós sabíamos – diz o Velho Teotônio Três Marias, derrubando na garganta o derradeiro golinho de seu copo.

5

Como era muito devoto de Nossa Senhora da Assunção, e a procissão sairia às três, Papai deixou o bar por um tempo para beijar os pés da santa ainda dentro da igreja. Duas e cinco. Foi quando Carmencita teve o que anotar em seu caderninho: ele levantou.

- Bem atrás de você – disse Dona Carmem Vermelha a Chicharito Gomez.

Chicharito Gomez limpou os lábios aparentando certo desdém e, como se fosse a contragosto, olhou para trás e viu o balcão com Maria Curvelo esfregando um pano encardido sobre a pedra. Dona Carmem Vermelha já havia narrado toda a cena. Guillermo Jesus já tinha se dirigido lentamente ao balcão, onde Mamãe ocupava o lugar que agora era de Maria Curvelo. Mais uma, ele disse a Mamãe, e Mamãe serviu-lhe mais uma dose. Então, quando Mamãe começava a se virar com a garrafa, Guillermo Jesus a segurou pelo braço.

- Dona Carmem Vermelha – diz o Velho Teotônio Três Marias – ergueu o punho e o puxou de volta num tranco diante do nariz do Chicharito Gomez.

O Velho Teotônio Três Marias gargalha porque se lembra do sobressalto de Chicharito Gomez.

- Ele se jogou para trás e quase caiu da cadeira – continua a mostrar as gengivas cor de rosa. – E acho que foi bem aí – de repente o Velho Teotônio Três Marias freia todo o ímpeto do sorriso, e seus olhos se tornam frios.

- O que é que foi bem aí, Seu Teotônio? – Bento Pirama seca o copinho.

- Eu acho – diz o Velho Teotônio Três Marias – que bem aí ela percebeu que dava pra ir adiante.
Bento Pirama segura a garrafa e devagar tomba uma dose para ele e outra para o Velho Teotônio Três Marias, neste momento absorto em sua memória, as gengivas inteiramente expostas, as pupilas vigilantes, as sobrancelhas erguidas, as mãos entrelaçadas e trêmulas sobre a mesa, a gola da camisa saltando sutilmente no lado esquerdo do peito.

6

Segundo o caderninho de Carmencita, às duas e dez não havia ninguém no balcão. Nem Papai nem Mamãe. Ele também não estava mais na mesa 7. Ou em lugar algum do bar. Só um empregado corria para servir e cobrar. Crianças. Como se vagasse até duas décadas atrás, Dona Carmem Vermelha despejou essa palavra sobre a mesa, onde a garrafa de cerveja estava pela metade e o sanduíche tinha sido mordido apenas duas ou três vezes pelo freguês. Crianças, repetiu ela, às vezes passam pelo tempo como se ele não existisse. Ou, agora olhou firmemente para Chicharito Gomez, talvez seja o tempo que passa por elas como se elas não existissem.

- Eu estava bem ali – o Velho Teotônio Três Marias se vira outra vez com dificuldade para indicar a porta que, ao lado do banheiro, dá para o depósito dos fundos.

- Mas ela contava essas coisas ao Chicharito por quê? – Bento Pirama interrompe o Velho Teotônio Três Marias, talvez apenas para sorver com sossego mais uma dose.

- Chicharito Gomez – o Velho Teotônio Três Marias parece acordar de um sono antigo – não era flor que se cheirasse, filho. Não era, não!

Como apenas mais um curioso de outras bandas que estivesse passando por ali, Chicharito Gomez cutucava Dona Carmem Vermelha sobre o caso de 1926. O que aconteceu de verdade? A senhora estava lá realmente? É mesmo a filha? Foi mesmo assim assado? Sim, foi assim assado, Dona Carmem Vermelha ia desfiando a história, feito uma procissão que vai passando com vagar, como se houvesse um bom motivo para acompanhá-la.

- Não é à toa que tinha um bar – o Velho Teotônio Três Marias se ergue, põe as mãos nas costas e se estica todo, um segundo depois está sentado novamente, pega a garrafa pelo gargalo e despeja mais uísque nos dois copinhos. A televisão pendurada na parede, bem acima do velho baleiro, no lugar do relógio, diz que são mais de não sei quantos mortos em Paris. – Mortos, mortos, mortos – repete o Velho Teotônio Três Marias. – Não interessa o número – balbucia. – É como a boiada quando estoura, pode ser uma rês e depois outra e depois mais outra, ou meia dúzia de uma só vez, ou duzentas, o fato é que a boiada estourou. É como o bife na Sexta Feira Santa, pode ser um, dois ou duzentos, o fato, meu filho, é que você comeu a carne.

7

Faltando vinte para as três, Papai voltou. Já tinha pouca gente. Perguntou ao empregado onde estava mamãe. O empregado não sabia. Carmencita menos ainda. O tempo havia passado por ela como se ela não existisse. Papai fez alguns cálculos já com o lápis atrás da orelha e então... Dona Carmem Vermelha hesitou por um instante enquanto olhava dentro dos olhos apertados de Chicharito Gomez.

- Eu estava bem ali – diz o Velho Teotônio Três Marias, e novamente gira o tronco com dificuldade para indicar a porta que, ao lado do banheiro, dá para o depósito dos fundos. – Bem ali – sorri com suas gengivas tristes na direção de Bento Pirama. – No dia do fim da guerra, bem nesse dia, mas a gente bem sabe que as guerras nunca acabam.

Por que o senhor me faz tantas perguntas, Dona Carmem Vermelha estava mais vermelha do que nunca, momentaneamente parecia fora de si, embora isso fosse improvável.

- Era uma mulher formidável – relembra o Velho Teotônio Três Marias, tomado por uma nostalgia que salta aos olhos. – Ninguém jamais podia derrubar aquela mulher, garoto – estica o indicador até bem perto de Bento Pirama. – Ninguém!

Chicharito Gomez enxugou a boca e depois se ajeitou na cadeira com certa fleuma. Estava, afinal, diante de uma mulher. Uma pobre mulher cujo vestido fedia a óleo queimado e cujas mãos de velha tinham a pele judiada pela água e pelo sabão, os dedos com pequenos talhos feitos com a faca de cortar carne, as unhas brancas e sem vida como peixes mortos. Mas, enfim, disse Chicharito Gomez, é a senhora, é a filha...

8

O bar já estava fechado quando uma garrafa caiu lá nos fundos, e Papai tirou os olhos dos papéis sobre o balcão, e Carmencita não soube que horas eram. Encolheu-se no cantinho onde fazia suas anotações e de onde podia avistar o relógio. Mas àquela altura, a única coisa que via eram as pernas do Papai se moverem em direção aos fundos, e ela fez das pernas do Papai as suas pernas, agarrando-se imaginariamente a ele e, como se uma força a levasse adiante, era atrás do Papai que Carmencita ia. Ela entendeu muito pouco quando, depois do corredor que levava ao depósito, Papai parou subitamente, e sua cabecinha, sem que ela tivesse qualquer controle, meteu-se por entre as pernas das calças dele.

Carmencita viu Mamãe deitada sobre as caixas, o vestido aberto, sua respiração era como a de um passarinho que se bate contra a parede e cai em seguida. Aquele homem que tinha entrado no bar às dez e quinze sorria, entre amargo e orgulhoso, para o lado de Papai ao mesmo tempo em que abotoava a braguilha. É isto, disse Guillermo Jesus a Papai, você sabe como são as coisas do coração, homem! É mais forte do que a gente! E levou o punho ao peito. Mamãe recuperou o fôlego, ergueu-se a meio corpo, abotoou o vestido com pressa. Ela não viu Carmencita, que havia sido empurrada pelo Papai como um pedaço de algodão para trás das caixas. É mais forte do que a gente, Mamãe repetiu ao Papai, e por uma pequena fresta Carmencita viu seu olhar inflexível.

No momento em que Papai enfiou a mão por trás da cintura, Guillermo Jesus deu um salto na direção do paletó, pendurado num lugar qualquer ao seu lado. Carmencita acompanhou o risco que os olhos verdíssimos do homem deixaram no lugar sombrio. Antes que Guillermo Jesus pudesse chegar ao seu objetivo, Papai atirou.

- Eu estava bem ali – diz o Velho Teotônio Três Marias, mas agora, em vez de se virar, apenas faz um vago movimento com a mão por trás do pescoço indicando a porta do depósito dos fundos. – Ela contou tudo a Chicharito Gomez desse modo, sem tirar nem pôr, sua voz era de uma firmeza absoluta e ao mesmo tempo eu sentia que ela podia chorar a qualquer instante, você entende, Bentinho? – o Velho Teotônio Três Marias também demonstra firmeza absoluta, e ao mesmo tempo Bento Pirama sente que ele pode chorar a qualquer instante.

9

Então é a verdade, disse Chicharito Gomez, com um sorriso frio e medonho enfiado na cara. A senhora sabe, ele perguntou a Dona Carmem Vermelha, quanto tempo eu levei para me decidir a isto? Pelas minhas contas, respondeu Dona Carmem Vermelha, deve ter levado quase vinte anos, não foi? Dona Carmem Vermelha esticou o braço e despejou o resto da cerveja no copo de Chicharito Gomez. Chicharito Gomez a encarava de braços cruzados e quando se decidiu a pegar o copo, Dona Carmem Vermelha se adiantou e ela mesma, de uma só vez, virou a bebida em duas goladas. Em Cafelândia, disse a ele, não gostamos de homens lerdos.

- Essa não foi supimpa? – o Velho Teotônio Três Marias solta sua gargalhada, que atravessa a geleia rosa de suas gengivas e irrompe pela boca afora cheia de microborbulhas de saliva, misturada a um arroto inverosímel que faz Bento Pirama levar um pequeno susto ao imaginar seu entrevistado sendo vítima de um ataque qualquer vindo lá de dentro de um desses estranhos, inexplicáveis e surpreendentes órgãos humanos.

Melena está rindo atrás do balcão, Bento Pirama se recupera do sobressalto e o Velho Teotônio Três Marias se lembra exatamente do instante em que viu Dona Carmem Vermelha apoiar as duas mãos sobre a mesa, lembra-se também que Chicharito Gomez descruzou os braços como quem vai dar um abraço numa criança que se aproxima, tão pouco caso fazia de habilidades desconhecidas em sua antagonista.

- O caso – diz o Velho Teotônio Três Marias – é que até o fim Dona Carmem Vermelha nunca soube se era o tempo que passava por ela ou se era ela quem passava pelo tempo.

Encostado bem ali, no batente da porta que dá para o depósito dos fundos, o Velho Teotônio Três Marias, que ainda não era Velho nem nada, só teve tempo de ver que Dona Carmem Vermelha já tinha se erguido, e enquanto se erguia metia as mãos nos largos bolsos, e de lá, de um dos largos bolsos, sacava uma garrucha de dois canos para encher de chumbo Chicharito Gomez, cuja mão direita mal chegou perto da cinta onde prendia seu velho Colt de estimação.

10

Em meio ao ronco dos fogos que anunciavam a saída da procissão, Papai atirou em si mesmo. Carmencita segurava nas mãos o caderninho com todas as horas e acontecimentos dos últimos dias. Mas exatamente aquele, que seria o episódio crucial de sua vida, ficou sem registro. A não ser pelas gotas de sangue que espirraram no papel depois de viajarem pelo espesso ar intraduzível do depósito dos fundos. Guillermo Jesus, estupefato, estava caído sobre o paletó, ainda sem tocar na arma, os olhos verdes esbugalhados. Ouvia-se um grito surdo de Mamãe penetrar por todos os poros das caixas de madeira que guardavam garrafas, latas e mercadorias. Aos poucos, Guillermo Jesus se levantou e, parecendo ainda não acreditar na cabeça despedaçada à sua frente, olhou para Mamãe feito um daqueles pedintes que víamos na porta do nosso bar.

- Tudo isso bem aqui – o Velho Teotônio Três Marias vira o último gole do uísque e gira o corpo na direção da porta do depósito dos fundos. Sua voz agora não tem mais a firmeza de antes. É apenas um ruído incerto, pode ser o coaxar de um sapinho jovem ou o pio de uma jaracuçu antiga.

Depois de um tempo que Carmencita não soube calcular, Mamãe conseguiu dar cinco passos até o corpo de Papai. Guillermo Jesus tomou a mesma atitude, indo ao encontro dos ombros de Mamãe. O que vamos fazer agora, Carmencita lembra de Mamãe perguntando a Guillermo Jesus, o que vamos fazer? Mas Guillermo Jesus apenas balançava a cabeça sem saber o que dizer.

Alguns segundos transcorreram antes que Guillermo Jesus dissesse a Mamãe que vamos embora de Cafelândia para sempre, saímos enquanto corre a procissão, todos ficarão bêbados até amanhã, e a essa altura já estaremos longe daqui, você sabe que sou outro homem, por sua causa eu mudei de vida, também tenho um filho para tratar: Chicharito. Mas restava a Mamãe uma pergunta: e Carmencita? Carmencita, empunhando com as duas mãos o próprio revólver de Guillermo Jesus Gomez, estava bem atrás deles.

- Preciso dizer alguma coisa mais? – o Velho Teotônio Três Marias, por sua vez, empunha o copinho de Jack Daniel’s e o vira de uma talagada só. Levanta-se e vai até a porta. – Veja esta cidade, garoto, veja estas pessoas correndo para comprar bobagens sem entender que o que realmente interessa não se pode comprar.

- Me diz uma coisa – Bento Pirama se espreguiça antes de encher o copo com o restinho da garrafa: – a Carmencita, bom, a Dona Carmem Vermelha, se é que o senhor me entende, o senhor e ela...

- Não, não – o Velho Teotônio Três Marias solta mais uma de suas gargalhadas gengivescas –, nada disso. Infelizmente, nada disso – senta com os braços cruzados diante do jornalista, olhando para um ponto qualquer através da garrafa vazia.

- Mas ela não... – Bento Pirama martela os cinco dedos no ar. – Ela morreu virgem?

- Bom, garoto, acho melhor que você faça essa pergunta a ela – o Velho Teotônio Três Marias ergue o queixo na direção da parede atrás da redoma de vidro que circunda o caixa com chicletes, chocolates e as imagens bisonhas dos maços de cigarros.

Subitamente assombrado, Bento Pirama sente que agora é a gola da própria camisa que treme acompanhando as batidas aceleradas do coração, quase pergunta ingenuamente se Dona Carmem Vermelha ainda está viva, mas num último esforço vira a cabeça para o rumo indicado pelo Velho Teotônio Três Marias. Ao lado do quadro de Nossa Senhora da Assunção, avista, feito um troféu ou a fotografia do presidente da república, a moldura envidraçada que sustenta a famosa e respeitada garrucha de dois canos.

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