Combate ao tráfico (conto escrito em 2008)

Os homens do batalhão de combate ao tráfico vasculharam o pequeno sobrado. O detetor inteligente percorreu cada canto da construção instalada num bairro da chamada neoclasse média, sem nada encontrar. Dentro de seus uniformes de fibra flexível de aço e munidos com as tradicionais pistolas a laser, os soldados apresentaram-se ao comando. A operação fracassara, ao menos até ali, com os métodos legalizados. O Capitão Assíria deu-lhes ordem para descansar, e eles sabiam dos procedimentos a serem adotados a partir daquele momento.

O comandante era um sujeito robusto, a pele da face rósea e profundamente sulcada, verdadeiras crateras abriam-se nas maçãs do rosto de barba bem feita. Encaixava-se, por assim dizer, na facção mais arbitrária do exército. Como ele mesmo dizia, às vezes era preciso resolver as coisas de seu jeito. Mas também dirigia sua bateria linha dura em outras direções, alheias à esfera militar.

O hábito secular de inversão de nomes masculinos e femininos, por exemplo, o incendiava nas discussões do Conselho Constituinte, do qual fazia parte há quase uma década. E outras resistências ao comportamento da neosociedade também compunham seu perfil combativo às transformações da nação.

Dois projetos de lei de sua autoria tramitavam no Conselho. Um deles concedia aos Capitães de Cinco Estrelas, como ele, total autoridade para usar a força no combate ao tráfico. O outro proibia terminantemente beijos ou qualquer carinho público entre pessoas do mesmo sexo. Ambos enfrentavam resistência por motivos semelhantes: e os homens e mulheres do exército, como ficariam? No sobrado, serviço pela metade, nada de tráfico ainda, Assíria pôs o quepe sobre a mesa e voltou-se ao Júlia, um engenheiro químico de meia-idade divorciado, dono da casa:

- Bem, meu caro, aqui estamos nós, exatamente no início, no mesmo ponto de partida. O senhor pôde ver o trabalho dos soldados e a ação frustrada do nosso detetor. Realmente, a tecnologia nunca será perfeita, não é? O homem, principalmente o homem que se julga esperto, como o senhor, sempre encontrará maneiras de driblar o poderio tecnológico para atingir seus objetivos escusos.

O capitão fez uma breve pausa, um silêncio rigorosamente treinado para suas missões de combate ao tráfico, como quem deseja transmitir ao interlocutor a gravidade da situação. Depois, continuou:

- O senhor tem, obviamente, um razoável grau de conhecimento. Pode imaginar as conseqüências de seus atos. Não quer mesmo facilitar as coisas para nós todos? O governo compreende certas fraquezas dos cidadãos e, com sabedoria, utiliza a disposição de colaborar demonstrada pelos criminosos. Na hora de julgá-los, esse espírito de colaboração serve como atenuante. O senhor não deve pensar nisso?

Júlia, mirrado e levemente calvo, separara-se da mulher, com quem tinha dois filhos, há quase um ano. O principal motivo do rompimento fora a militância política do engenheiro. Ele participava das ações de um dos partidos jogados na clandestinidade pelo neogoverno. As pressões e as ameaças cotidianas estraçalharam qualquer possibilidade de uma relação estável. Sentado, com as mãos algemadas à cadeira, Júlia, na verdade, gostaria de poder agradecer ao capitão por ele não ter vindo antes. Enfrentá-lo sozinho, com a família distante, certamente seria mais fácil.

Aliás, essa contenda, na visão de Júlia, acabaria muito rápido. Por uma questão ideológica, ele jamais se entregaria por vontade espontânea. Conhecia o procedimento comum em ocasiões assim: os soldados lhe aplicariam a injeção e ele contaria tudo – onde estava o produto do tráfico, como o conseguira e mais o que quisessem saber. Em razão de seus próprios conhecimentos científicos, não lhe era difícil constatar que ninguém seria capaz de lidar com aquela invenção diabólica. O composto químico penetrava na mente humana e a tornava refém de seu interlocutor. Vamos em frente, senhor capitão. Teve vontade de dizer-lhe algo assim, mas conteve-se a tempo. Qualquer palavra fora de hora poderia ser usada contra ele num eventual julgamento. Calou-se, portanto.

Diante dele, o impassível Assíria levantou-se e fez um sinal aos três soldados. Eles se aproximaram, enquanto o capitão, mais uma vez, dirigiu-se a Júlia:

- O senhor deve entender minha posição, mas não posso compactuar com certas atitudes.

Júlia viu quando os homens abriram a maleta e retiraram de lá as peças que passaram a acoplar. Assíria olhou-o de soslaio e, pela primeira vez nas duas horas em que estavam no sobrado, esboçou um vago sorriso, recompondo-se em seguida:

- Eu poderia pedir a um de meus homens que lhe injetasse o líquido, mas, o senhor sabe, é preciso economizar sempre que possível, e devo confessar também que prefiro os métodos dos antigos.

O engenheiro químico foi amordaçado e despido. Os homens, então, o penduraram no pau-de-arara. Assíria sentou-se bem atrás dele:

- O senhor é quem sabe, não é mesmo?

Júlia fitava-o, de ponta-cabeça, com resignação. Decidiu encará-lo o quanto pudesse. Achava que assim constrangeria o portentoso capitão. Mas, não. Logo foi-lhe perceptível a fisionomia nostálgica do militar. Assíria observava o aparelho com olhos enamorados:

- Quem diria? Quem diria que o velho pau-de-arara voltaria a ser eficaz em pleno século XXII, concorrendo com tantos instrumentos de avançada tecnologia? Meu caro engenheiro, o senhor é um cientista. Saiba que, com toda nossa tecnologia, não somos nada perto dos antigos. Quanto mais avança nossa tecnologia, mais demonstramos a capacidade dos antigos. Com muito pouco, eles faziam tanto.

Quando acabou sua breve filosofia, mandou os homens trabalharem. Júlia suportou bravamente as atrocidades durante meia hora. Para sua compleição, a resistência surpreendeu mesmo a Assíria, que a cada golpe ou choque, mais admirava seu oponente. Devemos respeitar o adversário, costumava dizer o capitão a seus soldados. O engenheiro deu-se por vencido quando sentiu no ânus exposto o bico de um funil. Piscou fortemente duas vezes, como lhe orientara Assíria, caso desejasse falar. Um dos soldados, então, retirou-lhe a mordaça. Estava sem fôlego, esforçando-se para não chorar de dor e de medo. Aos poucos, respirou e os militares ouviram sua voz aguda:

- Se isso fosse uma diversão, eu diria que vocês são investigadores incompetentes.

Assíria gargalhou, como se estivesse realizado, levantando-se e aproximando-se do pau-de-arara:

- O senhor está duas vezes equivocado, meu caro engenheiro. Duas vezes...

Ao dizer “duas vezes”, curvou-se um pouco sobre a cabeça de Júlia, mostrando-lhe dois dedos, quase mesmo roçando-lhe os pêlos pretos nos olhos, para afastar-se rapidamente dois ou três passos:

- Vou dizer ao senhor por que duas vezes...

E nisso, novamente esteve bem perto do pau-de-arara, com os dedos das mãos estirados perto da face de Júlia, pronunciando com sarcasmo “duas vezes”, irritando o torturado:

- Uma: isto é uma diversão. Ao menos para mim, assim o é. Gosto do meu trabalho. Você nunca leu algo assim naqueles livros idiotas de motivação do século passado? Lá, eles dizem que você deve cumprir sua jornada como se fosse uma ótima diversão. É o que eu estou fazendo, compreende?

Enquanto explicou a Júlia o primeiro equívoco, o capitão manteve apenas o indicador em riste. Depois, ergueu outro:

- Duas: nós não somos investigadores. Somos opressores. Não viemos investigar. Viemos oprimir. A opressão, em casos como o do senhor, proporciona um excelente resultado. Por exemplo, agora mesmo o senhor vai dizer a estes incompetentes onde está o produto traficado.

Antes que Júlia tomasse fôlego, o capitão ainda teve tempo de sorrir com ironia e balançar o funil em sua direção:

- Ou o senhor prefere conhecer nossas reais competências?

A cabeça de Júlia retinha boa parte do sangue de seu corpo. Somado à tensão e agora ao ódio, um estado de torpor invadiu-lhe por completo. Diante de si, a visão tornou-se embaçada. Apenas os dentes grandes do capitão eram-lhe perceptíveis, os dentes grandes dispostos num sorriso maquiavélico, a supremacia covarde de seu opositor. Quando ia abrir a boca para dizer o paradeiro do tráfico, fechou-a. Perdeu os sentidos e só recuperou-os depois de ser retirado do pau-de-arara e deitado ao chão.

Quando abriu os olhos, lá estavam bem diante dele as maçãs róseas esburacadas de Assíria, novamente com o funil à mão, com olhos de quem mostrava-se disposto a tudo. Com dificuldade, Júlia procurou sentar-se, encostando-se a um armário. Os cinco estavam no andar térreo do sobrado, sob a escada reta que levava ao piso superior. O capitão, num tique de impaciência, batia levemente o funil no corrimão. Batia levemente e em seguida, mais forte, apercebendo-se de algo, algo que regelou o resto de sangue nas veias de Júlia. Enfim, Assíria descobrira. O corrimão fora construído com canos de razoável diâmetro. Os canos ocos e blindados para impedir a ação dos detetores inteligentes serviam de recipientes ao tráfico. O capitão olhou Júlia e abriu um sorriso, desta vez apenas satisfeito:

- Você poderia ter facilitado, meu caro. Veja no que deu. Você perde tudo: seu tráfico e sua liberdade.

Vestindo outra vez o quepe, ordenou aos soldados a remoção dos canos. Eram vários, um interligado ao outro. E realmente lá estava o produto do tráfico, mas Assíria surpreendeu-se:

- Não posso acreditar! Só isso, senhores?

Os informantes dos militares tinham garantido “coisa grande”, mas como havia pouco! Certamente, apenas para consumo próprio, constatou Assíria:

- Não posso negar que estou decepcionado, meu caro engenheiro, não posso negar. Bem, como dizem por aí, nem tudo pode ser perfeito.

Sem qualquer cerimônia, diante de Júlia e dos três soldados, o Capitão de Cinco Estrelas Assíria Antares Filho sentou-se à mesa de vidro, no centro da sala, e simplesmente consumiu o produto do tráfico: uma garrafa de água mineral de quinhentos mililitros. Abandonou ainda um fundo para seus homens dividirem em dois ou três goles cada. Depois disso, juntaram os aparelhos e foram embora, deixando Júlia a lamber seus lábios molhados de sangue, líquido que, ao contrário da água limpa, brota abundante das ruas bravias deste neotempo.

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