Uma velha Kombi azul

A velha Kombi azul em foto em preto e branco de data incerta, entre fim da década de 1960 e começo da de 1970, com vários moleques, entre os quais eu (o segundo da esquerda para a direita)

A velha Kombi azul em foto em preto e branco de data incerta, entre fim da década de 1960 e começo da de 1970, com vários moleques, entre os quais eu (o segundo da esquerda para a direita)

No meio da década de 1960, meu avô, um sitiante que morava na zona rural ao lado da mulher, filhos, netos etc, comprou uma Kombi. Azul claro. Calotas brancas. Bancos cuidadosamente revestidos por umas capas de um tecido macio como o de certos tapetes. Cortininhas azuis escuras em cada uma das janelas. Na época, foi uma grande novidade. Imagine então para as crianças.

Eu era ainda um bebê, mas a Kombi fez parte da família por longos anos. Era dentro dela que íamos à cidade aos sábados. Meu pai, que a dirigia, abria as portas para que ali entrassem nove ou dez pessoas. Depois, com todos devidamente acomodados, fechava-as com jeito, sem bater, com carinho.

Quando podíamos, eu e meus primos disputávamos as janelinhas no tapa. No tapa, mesmo. Era preciso que os pais e tios interferissem. Ao visitarmos parentes em outras cidades, quando obrigatoriamente adentrávamos rodovias asfaltadas, nossa adrenalina subia a níveis estratosféricos, apesar da velocidade... a Kombi atingia 80, às vezes 90 Km/h nas descidas, e não passava dos 40 ou 50 em subidas.

Mesmo assim não desanimávamos. Era o máximo quando meu pai pisava até o fim para ultrapassarmos um pesado caminhão carregado, cuja velocidade atingia parâmetros ainda menores.

A velha Kombi azul nos levou ao futebol, ao circo e ao carnaval. Aos casamentos e às festas. Também às missas e aos velórios. Transportou felicidade e tristeza. Farra e dor. Foi em seu banco que me deitei com a perna quebrada para viajar cinco intermináveis quilômetros em estrada de terra até o hospital.

Outro dia, um primo da Grande São Paulo nos perguntou se sabíamos por onde andava a velha Kombi, se é que ela ainda existe. Não soubemos responder. E isso me cortou o coração.

A memória da velha Kombi azul guarda um tempo em que ainda existiam os avós, todos os pais e todos os tios, a alegria boba, o prazer ingênuo e a força selvagem do moleque do mato.

Penso em seus faróis como dois grandes olhos dispostos a iluminar nosso caminho (veja uma Kombi pela frente e me responda: seus faróis não parecem os olhos de um cachorro amigo?). Penso também em seu interior, e ali está um coração de mãe que aloja quantos precisem entrar.

Por essas e outras, eu deveria conhecer o destino de nossa velha Kombi azul. Porque lá, em seus bancos costurados em largas faixas claras, em seu assoalho de tapetes pretos, em seus vidros empoeirados, em sua lataria impecável e em seu motorzinho frouxo, lá, naquela velha Kombi azul, ficou um pouco de mim.

(Clique aqui para ver o vídeo de despedida da Kombi feito pela VW)

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