Dona Deusinha

A fumaça entope o ar. Na plataforma 12, encosta a primeira linha do litoral. A tampa do bagageiro range até travar com o solavanco do Borges. O cobrador já manda as malas ao chão. No acesso pela avenida, aponta o carro que desce de Belo Horizonte, enquanto os passageiros que vieram da praia seguem em fila nervosa que se estende até às bagagens. Bem ao lado, o bêbado dá a última cusparada antes de voltar ao sono inquieto, resmungando o que nunca se entende. O de Minas encosta. Desce o Mathias com h. Este é mais cuidadoso: espera pelos viajantes antes de distribuir os pertences. Ao contrário do Borges, acena e até canta um bom-dia sincero. Ela responde. Ela sempre responde a todos eles. Enquanto o Mathias entrega, uma a uma, de mão em mão, as malas que vieram de Belo Horizonte, deixe-me confiar aos bons cuidados do leitor quem é ela, a mulher que aos sábados de manhã segue para a rodoviária, onde espera pelo filho operário.

Todos a conhecem ali, em meio à agitação crescente das primeiras horas, como a velhinha do lenço preto. Mas vou contar em breves linhas seu nome e seu caráter. Dona Deusinha – veja que nome! – é mãe de filho único, o Miguel, de São Miguel, ou, como ela diz, o Miguezinho, que se lê com o “e” aberto, sendo então o Migu(é)zinho, mas apenas por efeito sonoro da letra “e” e não para marcar sílaba tônica. Este aí, vindo de escola onde pouco aprendeu, precisou sujeitar-se ao que lhe sobrou fazer na hora de buscar o sustento dele e da mãe. Pouco tempo depois de ter-lhe morrido o pai, deixou pelo meio o aprendizado das letras e foi enfiar-se nas construções. Sabe-se como é isso. Um dia cá, outro acolá. Na São Paulo ou na Bahia, o dinheiro é que vale para a vez da compra, diz a mãe em conformidade com a digna escolha do filho.

Dona Deusinha é daquelas que não tendem ao desalento. Veio de longe, enfrentou doenças de família, perdeu vidas em partos, o marido foi-se mais cedo do que se supunha, mas ela não desanima. O Miguézinho dá jeito. Enquanto o filho emprega-se nas redondezas, não se deixa enganar: vai ela própria, de ônibus ou de trem, com a marmita para o almoço. Quando viaja distante, ela manda-lhe as recomendações. Levanta às cinco, lava roupa para fora, limpa as casas das patroas e faz as comidas que vende de porta em porta. Divide-se em dez para ajudar com as despesas e, vai ver, mais pra frente comprar uma casa deles mesmos.

Em parte, vai assim no dia após dia a Dona Deusinha. O filho sai em viagem e quando volta há um sobressalto nos três comodozinhos com banheiro anexado. O sábado e o meio domingo, antes que ele se vá de novo, têm muito valor. Faz do bom e do melhor para ele, chama uns amigos para a conversa da tarde, avisa as duas ou três pretendentes para os passeios da noite, guarda na geladeira o almoço e a janta que começou a cozinhar na véspera. A tudo isso ela prende-se com o coração cheio de amores. E o Miguézinho a tem nas melhores contas. Diz a um e a outro, do fundo da alma, que sem a mãe não sabe o que seria, se um andarilho ou um bandido. Nos dias em que fica, seus abraços e seus beijos seguem-se num intermitente ritual que comove os que vieram para as conversas de beira mesa.

Na noite da véspera da chegada, Dona Deusinha mal pode dormir. De madrugada, acorda de quinze em quinze para ver no relógio o adiantado das horas. Às seis, olha ela já pronta com o vestido de discretas estampas, o sapato preto, o lenço preto e a bolsinha que carrega desde os tempos em que não era viúva. Toma a condução a cinco quadras de casa e segue até a rodoviária num trajeto de hora. O ônibus do filho vem às nove, às vezes atrasa um pouco. Ela sempre está lá, como agora. O Mathias já quase acaba de pôr as malas nas mãos dos passageiros. Dona Deusinha o conhece faz muito tempo. Em dias que o Miguézinho não vem por causa das horas extras, manda por ele o dinheiro à mãe. É de confiança. A boa índole nem mesmo permite o recebimento da gorjeta que a mulher lhe dispensa em pagamento à atenção. Não, isso não é com ele. Tome lá, Dona Deusinha. O dinheiro é mesmo dela e só.

O Mathias entrega agora a última bagagem. Quando o ônibus entrou na rodoviária, de dentro da cabine o Mathias avistou a Dona Deusinha sentada no banco de sempre, o da plataforma 11. Como sempre faz, ela levantou-se com o sorriso pregado. O ônibus encostou e o Mathias desceu. Quando passou por ela, cantou aquele bom-dia. Dali em diante, no coração dele correu um sangue triste, compadecido. O caso é que ele sabe que nunca mais Dona Deusinha verá o filho. Em Belo Horizonte, os polícias de baixo soldo já fizeram o comentário: o Miguézinho entrou na barra pesada e de lá não pôde mais sair. Vai ser um desses desaparecidos políticos, dizem. E eles sabem que também é morto de nunca mais haver mesmo o corpo. Tudo isso já disseram a Dona Deusinha umas pessoas de confiança. Mas assim mesmo, a mãe ansiosa vem ali todo santo sábado. Acorda às seis, veste o vestido de discretas estampas, calça o sapato preto, amarra o lenço preto, pendura a bolsinha do tempo em que não era viúva e toma a condução para a rodoviária. Quando o ônibus entra, ela levanta-se e sorri à espera do Miguézinho que não vem mais. O Mathias, com o coração angustiado, já foi dizer a ela que não volte, que se um dia o Miguézinho aparecer, ele mesmo, o cobrador, corre para avisá-la. Mas que o quê? Dona Deusinha não quer assim. Ela conta nos dedos os dias da semana para que o sábado chegue logo, para que ao menos naquela horinha, da casa à estação, ainda possa lembrar-se daquele sentimento de esperança, lembrar-se de um pedaço que seja de sua única felicidade.

(Imagem que ilustra o conto está publicada no endereço:
http://wordsimages.blogspot.com/2007/07/tela-me.html)

Tags:

Comments are closed.