Uma força estranha

Eu o encontrei outro dia, já nesta época de temperaturas além da conta etc. Fazia um bom tempo que não o via. Pra dizer a verdade, não é um amigo, amigo. É, digamos, um conhecido que eu respeito. Sempre me pareceu ser boa gente, além de carregar consigo uma enorme inteligência. Ao menos essa é minha impressão.

Na calçada, sob o solão pós-almoço, convidei-o para tomar um café. Mas sem um café por perto, resolvemos entrar num bar. Pedimos só água gelada. Não havia de minha parte o menor interesse num papo mais longo do que uma garrafinha de 500 ml. Foi quando eu fiz a pergunta inevitável como vai a vida?

E ele me disse.

“Olha, rapaz, nada é fácil, não é mesmo? Outro dia encontrei um amigo de longa data que eu não via fazia um bom tempo”, diz-me, “pra dizer a verdade, não é um amigo, amigo. É, digamos, um conhecido que eu respeito. Papo vai papo vem”, continua ele, “ele me diz que tudo estava muito complicado, nada estava dando muito certo na vida dele, essas coisas chatas de se ouvir. Até que dali a pouco a gente se despediu e eu vi que ele entrou num baita carrão, sabe?”, diz-me ele, “Aí fiquei me perguntando, porra, se ele tá mal, e eu então?”.

“Bom”, diz ele depois de rirmos um pouco, “a verdade é que pouca gente parece estar contente com a vida que leva, você está?”, pergunta-me, mas não me dá tempo de responder, “Não, acho que ninguém está”, diz ele, “acho que são poucos os que estão realmente felizes, mas isso é próprio do ser humano, isso não quer dizer que nunca estejam felizes”.

“Eu?”, ele bebe meia garrafinha de água depois que eu lhe pergunto você, ele, está? “Márcio, é uma questão complicada, sabe por quê?”, pergunta-me, mas só mesmo para continuar sua tese, “Porque eu poderia te contar um monte de coisas ruins que me aconteceram” e em seguida conta um monte de coisas ruins que lhe aconteceram.

E são coisas ruins, mesmo! Vários projetos profissionais não emplacam, está desempregado, cheio de dívidas, vive quase à custa de empréstimos, alguns bancários, outros familiares. Mas o curioso é que ao narrar tais meandros de sua vida nos últimos anos, ele parece não entregar os pontos, pelo menos não tanto como quando diz ter trabalhado desde cedo, “sempre tendo em vista a correção, a ética, o profissionalismo, enfim, sempre buscando dar o melhor que alguém pode dar. E pra quê?”, pergunta-me e continua, “Às vezes eu me pergunto pra quê?”.

Mas, depois de um momento de hesitação, ele diz algo que me chama ainda mais a atenção, digo ainda mais porque eu já me sentia solidário diante de suas dificuldades.

“Márcio”, diz ele um segundo após engolir o restinho de água de sua garrafa, “é incrível nossa capacidade de resistência, você não acha?”, pergunta-me só para ele mesmo responder. “Somos uns bichos resistentes. Veja minha situação, cheio de projetos fracassados, desempregado, sem dinheiro, com dívidas, e mesmo assim há dias em que eu sinto uma força interior tão intensa que fico impressionado. Claro”, diz ele, “eu gasto muitas horas com lamentações, com reflexões a respeito desses fracassos, com pessimismo, com uma ideia persistente de que nada mais vai dar certo na minha vida, mas vou te dizer uma coisa”, e ele me diz, “às vezes vem de algum lugar aqui dentro”, e toca o peito com uma das mãos, “essa força que eu te disse, não é que eu a chame ou mesmo à queira, porque quando a gente está depressivo parece que nada vale a pena, muito menos recorrer a um ânimo escondido em alguma parte de nosso corpo ou de nossa alma, mas assim mesmo essa força vem”, ele me encara, “assim mesmo ela vem, Márcio, não sei de onde, mas ela vem”.

Falamos mais algumas banalidades etc. Saímos à rua e nos despedimos. Na maioria dos dias saio a pé. Não sei se é bobagem, mas procuro evitar o uso constante do carro. Acho que é saudável. Para o corpo e para o meio ambiente. Comecei a caminhar pela calçada e na minha cabeça não havia a calçada. Havia o caminho do sítio onde nasci e vivi até os sete anos, havia as árvores e o pé de jasmim em frente à varanda da casa da minha avó, cheguei até a sentir seu aroma, havia a estrada que leva à cidade, a rodovia que liga a Bauru, as rodovias que ligam a São Paulo e a outras tantas cidades onde trabalhei, havia uma estrada desconhecida também. Talvez para me mostrar que ainda haja tempo de encontrar pelo caminho essa mesma força estranha da qual ele me falou.

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