Beijo de moça

Na primeira vez, ela desceu os dois lances de escadas vestindo jeans e blusa branca colada à pele, um fio moreno claro de cintura à mostra. Nos pés, um salto médio. Pendurava bolsa a tiracolo. Abriu o portão, foi para a rua. Até dobrar a esquina, trinta e cinco passos, contados. Esperei.

Voltou eram seis e pouco, dia claro ainda. Subiu os degraus, a calça justa contornando os glúteos bem desenhados. – “Que pedaço!”, testemunhou o Córdoba. Ficamos olhando até ela fechar a porta. O argentino me fitou com cara de tarado. – “Sai pra lá”, empurrei meu colega de república e fui tomar banho. Demorei.

No dia seguinte, logo ao acordar, consultei minhas finanças. Restavam uns trocados, suficientes para comprar um binóculo de camelô. Levantei, me vesti e vi que o Córdoba já havia saído. Não sei por que, mas foi um alívio, como se ele pudesse descobrir minhas intenções secretas. Saí.

Às seis e pouco, ainda sozinho em casa, fui para a vidraça, ajoelhei no sofá e afastei um pouco a cortina. Para um binóculo de camelô, até que aquele não era mau. Na varanda da casa dela, um tapete com detalhes aparentemente egípcios cobria um retângulo de ladrilhos lisos antes da porta. Sorri.

Dali a pouco, em frente à casa, ela desceu do carro de outra garota. Disse qualquer coisa, sorriu e ficou dando tchau. A minissaia era branca, a camiseta, de uma banda de rock qualquer, preta. Uma presilha erguia o cabelo e revelava o pescoço perfeito, sem ser longo nem curto, correspondente à sua estatura média. Apertei os dentes de cima contra o lábio inferior. Sangrei.

Não posso afirmar com certeza, mas quando ela passou pelo portão, antes de escalar os dois lances de degraus, tive a impressão de vê-la se voltar na direção da minha janela. Levei um susto. Sem querer, afrouxei a mão e o binóculo caiu sobre o sofá. Deixei a cortina se fechar inteiramente. Suei.

Muito rápido, voltei à minha posição anterior, de joelhos sobre o estofado, binóculo em punho, mas agora no outro extremo da vidraça. Ela ainda estava lá fora, mexendo com algo atrás da mureta da varanda. Um gato rajado, meio amarelo meio branco. Logo imaginei que aquela cena deveria ser maravilhosa se vista do pé da escada. Excitei-me.

Tão logo ela entrou, o que não demorou muito, desabei sobre o sofá, exausto, como se tivesse acabado de cumprir uma pesada atividade física. Nisso, bem ao lado, o Córdoba afagou meu ombro, sorrindo: – “É sério, hein?” Alguém pode me dizer de onde esse cara aparece nas piores horas? Dormi.

Tarde da noite, o argentino decerto nas baladas, eu acordei todo molhado de suor. Por vias de dúvida, abri devagar a cortina e olhei a casa dela. Estava fechada, a luz da frente, acesa. Liguei a TV e fiquei zapeando. Lá pelas duas, o mesmo carro da tarde estacionou. Ela desceu e logo entrou. O Gol se afastou. Sonhei.

Voltei da aula, o Córdoba sempre saía à tarde. Outra vez, fiquei sozinho em casa. Decidi ser mais ousado, se é que algo assim pode ser considerado uma ousadia. Esperei por ela. Quando a vi dobrando a esquina, adiantei-me, muito ágil, a porta já aberta, e atravessei a rua. – “Oi, estou morando aí em frente. Será que você tem açúcar?”. Admirei.

Ela não se assustou, mas foi pega de surpresa. Sabe quando a garota dá aquele suspiro antes do cumprimento? Pois foi assim que ela fez. Nisso, virou a cabeça aos poucos sobre meu ombro. Acompanhei o movimento, até ver, seguindo a sutil indicação de seus olhos verdes, a loja de conveniência escancarada para clientes como eu. Corei.

Voltei a encará-la. Ela ria um pouco. Então, ri mais ainda. Ela se apresentou, a Joana. Muito simpática. E linda, linda mesmo. Eu lhe disse meu nome, Miguel. – “Você quer açúcar?”. Constrangido, eu dei uma desculpa qualquer, que havia me esquecido da loja bem ao lado de casa, coisas assim, e fui saindo. Voltei.

Quando fechei a porta atrás de mim, meu coração começou a acelerar, cada vez mais forte. Dava medo a velocidade com que batia. Permaneci estático, os olhos fechados, não sei por quanto tempo. Na minha cabeça, só havia o sorriso da Joana. –“Está apaixonado mesmo, cara?” O Córdoba já tinha chegado. Estou.

Eu fazia computação, o argentino, arquitetura. Ele me disse: – “Você quer arquitetar um plano ou ir direto ao programa?” Meu colega era sempre bem-humorado, embora eu não estivesse a fim dessas tiradas tolas. Eu só queria alguém que me dissesse o que fazer, nada mais. – “Cara, não perca tempo, não perca tempo!” Perdi.

Fiquei dois dias nesse chove-não-molha, numa hora com o binóculo estrategicamente instalado em meio à cortina, noutra, dizendo oi ou tchau, apesar de meu desejo ser um só: segurar a Joana pela cintura e beijar sua boca, beijar como nunca ninguém a beijou, como jamais eu beijei alguém. Tremi.

À noite, estacionaram em frente, a porta da casa se abriu, vi quando ela beijou a mãe e desceu. Entrou num carro esporte, desses badalados, chegou muito perto do cara que estava ao volante e encostou a boca na dele. O namorado ou sei lá quem acelerou e os dois se foram. Atirei o binóculo ao chão. Pisei.

O Córdoba ouviu, mais tarde, meu lamento. “Você demorou, cara. Eu te disse, não te disse?” Ele havia dito. Entreguei-me ao desalento. Eu só queria poder beijar a Joana. Não dizem que um beijo é capaz de revelar todo o seu amor? Sei lá se dizem isso, mas eu acredito. Chorei.

Foram duas semanas infelizes. Quase sempre, lá estava o namorado para buscar a Joana. A mim, restava imaginar para onde eles iam todos os dias, o que faziam, se estavam se dando bem. Confesso que eu não pensava em outra coisa, em casa, na faculdade ou onde estivesse. Pirei.

Ao final de duas semanas, nem um dia a mais, o sujeito não veio. Quem a pegou foi a amiga, aquela do Gol. Chegou à noitinha, como sempre, e saíram juntas. Acho que cursavam inglês ou algo assim, já que a faculdade a Joana fazia de manhã. No dia seguinte, foi o mesmo, e no terceiro dia, e no quarto. Eles terminaram. Decretei.

Tinha de ser agora. A Joana sem ninguém, eu completamente apaixonado. Resolvi cercá-la outra vez. Ela foi supersimpática, um doce. Se eu tivesse um pouco mais de coragem, teria abraçado aquela cintura de umbigo perfeito e me arriscado. Tudo ou nada. Tome meu beijo e veja se gosta. Falhei.

Quando minha insuportável timidez me permitiu, tive a brilhante idéia de convidá-la para sair. Puxa, como eu não havia pensado nisso antes? E assim foi. Nós saímos, só que com todo o pessoal dela, amigos, amigas, cachorros, papagaios, enfim, voltamos sem qualquer chance para mim, embora tivéssemos trocado olhares cúmplices. Quer saber? As coisas estavam andando, afinal. Sosseguei.

O dia em que eu, finalmente, a beijei foi assim: saí de casa decidido que o faria, me arrumei o melhor que pude, vesti paletó e gravata, cheguei próximo a ela, havia um cheiro doce de flores no ar, acariciei sem constrangimento suas mãos, dobrei-me sobre seu rosto e, ambos de olhos fechados, colei meus lábios aos dela. Mais tarde, fecharam o caixão e a levaram. Morri.

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