Um velho caderno

Sabe aquela menina sobre quem já te falei algumas vezes? Aquela que talvez tenha sido uma paixão platônica na escola. É, essa aí. Hoje eu a vi novamente.

Pelo jeito deve morar aqui por perto ou trabalhar ou usar o mesmo metrô, não sei. Ah, vai começar? Você sabe muito bem do que se trata, vai. E daí que ela desenhava coraçõezinhos no meu caderno?

É isso mesmo, no intervalo. Não é como agora. Naquele tempo não dava pra ficar de papo durante as aulas. Aula era aula. Todo mundo tinha certo respeito, ou medo, do professor. Bom, deixa isso pra lá.

Não, to dizendo o lance do respeito na sala de aula.

Contar outra vez? Com essa sua reação de sempre? Eu não!

Tá legal.

Mas também contar o quê? Você já sabe quase tudo. Que eu acho que era apaixonado por ela. Que ela era linda. Que no intervalo eu fazia de tudo pra ficar perto dela.

Às vezes, eu sentava bem junto no banco de madeira onde a gente comia pipoca e tomava refrigerante. E qualquer que fosse o movimento, de um ou de outro, nossas coxas se resvalavam.

Bobagem, eu sei. Mas estou te contando, você não pediu?

Não, nunca a beijei. Eu era tímido. Verdade!

Acho que tem uma coisa que não te falei. Lembrei de repente. Não, não é isso. Ela nunca me viu e eu não tenho o menor interesse de falar com ela agora. Certas fatias do tempo não devem ser tocadas. Devem apenas ficar lá. Existir para sempre.

É que... bom, quando eu fui pra faculdade e deixei a casa da minha família, como é bastante comum nessas ocasiões, fiz uma boa faxina no meu quarto. Joguei todos os objetos que não serviam mais para nada. Sabe esse lixo que a gente vai juntando durante anos? Uma papelada e tanto, né?

Eu fui jogando, jogando, mas quando peguei o caderno em que ela tinha desenhado os coraçõezinhos... sei lá, travei. Fiquei um tempão olhando para a capa plastificada e ilustrada por um quadril feminino com um zíper aberto pela metade.

No canto superior direito, um dos coraçõezinhos estava meio que destroçado por uma “orelha” que quase rasgava parte da capa. Mas dentro havia mais deles. Todos muito parecidos: um coraçãozinho sem nada escrito em seu interior. Apenas o risco caprichado da caneta feito pela mão da garota. Nem uma flechinha sequer. Só o coraçãozinho.

Então, foi isso. Eu não consegui jogar fora o caderno. Eu o deixei ir ficando no meio das minhas coisas. Hoje eu não sei onde ele está. Se em algum canto das prateleiras com os livros. Se em alguma gaveta. Ou mesmo na casa dos meus pais. Mas eu sei que ele está em algum lugar. Eu sei que não joguei ele fora, sabe?

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