Fragmento

– Ok, ok, você tem razão: sou rabugento. Mas só às vezes. Sou chato também, mas também só às vezes. O que você quer, afinal? Que eu saia pela rua rindo feito um idiota? Tá certo, tudo bem, se eu tivesse motivos até sairia. Faço o que bem entender. Foda-se. Mas o que há assim de tão espetacular para que eu não duvide disto tudo? Da possibilidade de alcançar o que todos procuram? Você se sente tão feliz ao ponto de distribuir sorrisos em cada esquina? Ah, é? Pois então vá em frente! Sorria! Aliás, provavelmente vão te filmar. Sorria! Sorria! Mas eu? Por que motivo eu devo sorrir como um robô programado para sorrir? Achar tudo lindo, considerar apenas os pontos positivos, ver o lado bom da vida, cair de joelhos diante deste dogma social, pai eterno da inconsciência, da negligência… Bobagens. Bobagens e mais bobagens. Tudo bem, concordo: o otimismo pode ajudar. Mas também não é preciso vestir uma máscara de falsa felicidade. Como é? Porra, mas não estou me referindo especificamente a você! A quem? Sei lá, não tenho uma pessoa em mente. Tenho apenas a ideia, um arquétipo, só isso. Olha, o fato é que, é que, bem, o fato ao menos para mim é que não dá para forçar a barra, sabe? Enxergar o dia azul, brilhante… um sol daqueles amarelinhos e sorridentes como nas páginas dos cadernos infantis. Não dá! Felicidade não se estupra… Ah, você sabe do que estou falando. Tá bem, porra! Nada se estupra! E a felicidade também não, ok? Dá pra negociar isso comigo? Olha, me desculpe, sim? Me desculpe se dou poucas chances ao sorriso barato, à alegria sem sentido... É que... bom, veja à sua volta. Será que estou exagerando? Estou? É? Tá bom, posso estar, por que não? Sou tão imperfeito quanto são os sorrisos baratos e as alegrias sem sentido. Portanto, admito a tese do exagero. Mas isso não muda nada pra mim, nada, nada. Minha angústia confusa, meu paladar turbulento, a visão brutal do cenário frágil cuja sustentação constitui-se apenas do sorriso barato e da alegria sem sentido, desprovidos do bom senso, da mínima dose de lógica, essa névoa apenas se adensa adiante. É, eu sei. Mas essa é a sensação opressora que me persegue, compreende? Compreende? Vem cá, me dá sua mão? Vem... Você sabe que só assim posso entreabrir essa porta pesada, só assim consigo espiar aí fora. E até sorrir contigo. Sabe como é? Assim, bem assim...

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