Paixão na janela

A rua de mão única, estreita, com placas de é proibido estacionar, com lojinhas de tudo quanto é tipo, com velhos comerciantes debruçados sobre o balcão, com gatos estilosos deslizando nos telhados mais baixos, com paralelepípedos de cujas fendas apontam teimosos capins, com a montanha ao fundo feito uma gravura de principiante, com o entardecer melancólico dos corações judiados, com tanta coisa aquela rua, e no terceiro andar do prédio mais alto de três andares, por entre o tecido tremulante da cortina, a silhueta contornada pelos últimos raios do sol que penetram pelo lado oposto, os cabelos ondulando de leve, a face imóvel dirigida aos meus movimentos aqui embaixo, na calçada de ladrilhos quadrados, olhando lá pra cima enquanto passo na volta para onde mesmo?

Viro à direita, deixo para trás o pequeno recorte de fábulas enfiado num canto qualquer esquecido da nova civilização.

É uma mulher solitária, penso já diante da tela do computador. É uma mulher sonhando. Sonhando como se ela própria fosse o sonho. Um sonho aberto a quem quiser entrar. É uma mulher com o coração cheio de vazio. A varredura entre os mil e poucos amigos do facebook é inútil. Que bobagem. Haverá uma nova tecnologia naquele quadrilátero de um tempo suspenso? Onde o lápis passeia deflorando folhas virgens? Onde aquele homem encostado à vitrine sorri durante uma conversa banal com a vizinha do lado direito? Onde fui entrar por um desses acasos que nos desviam do caminho habitual?

Amanhã. Ela está lá de novo, meu rosto esquenta na tardezinha quase fria. Não, meu coração não bate mais forte. Nem pensar! É nada mais do que uma simples curiosidade. É um carro raro atrás da porta semiaberta de uma garagem. É o som cuja imagem não podemos distinguir. Nada mais. Nada mais! Viro à direita.

E à direita outra vez. E de novo. Ando em círculos. Faço duas voltas. E na terceira, ela já fechou a janela de duas folhas que se abrem para a rua. Embaixo, há uma relojoaria. À esquerda, uma porta de vidro que certamente esconde uma escada que certamente leva aos pisos superiores. Não, não sinto as pernas tremerem, nem esta pressão nas têmporas pode ser relacionada a um desejo cuja essência é impenetrável.

Depois de amanhã. Não me desvio. Corto o mal pela raiz.

E no dia seguinte lá estou de novo. No fim da rua, a sombra da montanha escurece toda a vegetação de sua encosta. Há uma penumbra que se adianta ao meu encontro à medida que o sol mergulha por trás das construções. A meia quadra do lugar, vejo um pequeno caminhão-baú estacionado. Suas portas traseiras, abertas, revelam objetos de uma mudança, talvez. Caixas e bugigangas irreconhecíveis estão empilhadas. Dou mais dois ou três passos. Um frio súbito me faz parar de repente, imobilizado. Não, meu coração não galopa. Meu peito não arfa. Minhas pernas não hesitam. Não, não há caixas, não há bugigangas.

Não há um carregador jogando por último, sobre toda a tralha que se avolumou dentro do baú, sobre todos aqueles objetos sem vida, não há um carregador jogando um manequim. Que cai sem jeito e constrangido olhando, como sempre, para mim. Sonhando, como sempre, comigo.

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