O enterro (de João Marcos Blanco Dias)

Foi meu irmão quem inventou o plano: “vamos dispensar o carrinho de rodas e levar o Marcos no braço”. Da sala de velório ao túmulo, uns duzentos metros, dos quais a metade em subida íngreme. Depois de consultarmos um quórum mínimo de seis, mais dois ou três para o revezamento, tudo aprovado.

Duas da tarde, muito sol em São Paulo. Sob forte emoção, saímos com o caixão. Quando você pega uma geladeira, um armário ou uma caixa pesada, sua força condensa-se num objetivo único: carregar. Quando você pega a alça de um caixão e dentro vai alguém que você ama, sua força, ao invés de condensar-se, esparrama-se: na comoção, na tristeza, nas lembranças, no aperto de seu coração destroçado.

Sua força hesita, oscila e por fim vacila. Mas é preciso levar o plano até o fim. Você então reconstitui a força combalida. Estamos iniciando a subida íngreme. A maioria com a parte física despreparada funga disfarçadamente.

Logo atrás vem o som de pés que se arrastam, que sustentam corpos debilitados pelo sofrimento da perda, almas angustiadas que se enchem de perguntas sem respostas. Mas é preciso levar o plano até o fim, até o fim!

O pelotão respira penosamente, as mãos suadas escorregam nas alças lisas, os passos tornam-se pesados, faltam poucos metros, nós queremos chegar, estamos na reta final de uma homenagem que quisemos prestar, nossos corações agora batem a toda, o jazigo aberto está logo ali, as flores brilhando ao sol, a terra aguardando para sua emboscada final, uma leve brisa passando pelas folhas das árvores e lambendo nossos rostos resolutos.

Vamos até lá, até o vazio escuro, vamos até onde for preciso porque em nosso íntimo rebenta a impotência inexorável sobre o juízo da vida e, inconformados com isso, queremos ao menos mostrar que com aquele carrinho filho da puta nós podemos.

Não, carrinho! Nós é que vamos carregar o Marcos para seu sono eterno, para sua outra vida ou para o desconhecido. Porque você, carrinho, é só um monte de ferros e plásticos. E nós somos de carne e osso. De sangue e sentimento. De corpo e alma. E nossa frágil humanidade é o que nos faz querer essa pequena vingança sobre você. Nós o escolhemos, nós o desafiamos.

Chegamos! E um cochicho uníssono em nossos pensamentos perpassa o gramado verde do cemitério e nos traz de volta o domínio da situação: porque nós o embalamos, Marcos. E isso nos basta.

Nem quase olhamos mais para o carrinho, a essa altura só uma estrutura boba que acabamos de derrotar com nosso amor.

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