Quando eu era criança no Dia de Finados

Uns dias antes, iam limpar os túmulos e as capelinhas, ritual que se repetia ano após ano. Velhas flores de plástico eram retiradas dos vasos e jogadas ao lixo. Trocavam as toalhas brancas que cobriam o bloco de gavetas mortuárias, sobre as quais pousavam retratos dos bisavós, avós, tios-avós e, coisa assustadora, até gente que nós mesmos crianças havíamos conhecido!

Às vezes, a pé, percorríamos os três quilômetros com aquela ansiedade pulsando aqui dentro. Ir ao cemitério!

E na data propriamente dita, no Dia de Finados, lá voltávamos.

As mulheres rezavam e conversavam muito. Às portas das capelas, ao lado dos túmulos, nas pequenas ruas que levavam a lugar nenhum.

Os homens adultos davam aquela olhada e logo se afastavam para fumar, bater papo com velhos conhecidos que se reencontravam por ali.

O largo em frente ao cemitério transformava-se numa grande feira. Frutas, sorvetes, salgados, bebidas.

Nós mesmos crianças circulávamos livremente no interior daquele conjunto de últimas moradas. Ali estávamos seguros.

Brincávamos de esconde-esconde, brigávamos com a tentação de roubar as frutas deixadas pelos japoneses em seus túmulos, pisávamos nas tampas dos túmulos da capela das freiras, tentando descobrir algo lá embaixo entre as pequenas frestas.

Tomávamos sorvete, corríamos pra lá e pra cá em torno de sepulturas, de cruzes, de mulheres de preto chorando dobradas sobre fotografias e lápides.

E, em meio a todos aqueles símbolos, sinais e rituais, a última coisa na qual pensávamos era a morte.

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One Response to “Quando eu era criança no Dia de Finados”

  1. Rosana Carrasco Cava disse:

    Márcio, até deu vontade de chorar…por instantes voltei no tempo…