Confissões: ‘Um erro decisivo’

MAIS UMA HISTÓRIA DE UM BRASILEIRO ANÔNIMO

Há erros em nossas vidas que não podemos admitir. Esta é a pequena história de um erro que meu pai cometeu. Ele é um policial militar desses afeitos ao perfeccionismo dentro do que lhe exige a profissão. Desde que me conheço por gente, vi meu pai procedendo do mesmo modo desde a hora em que acordava até quando se deitava. Raramente, dava um passo diferente.

Antes de sair para o trabalho, ele fazia a barba todos os dias. Vestia-se obedecendo ao mesmo rigor. Via o noticiário na mesma emissora de TV. Saía no mesmo horário. E acho até que dava todo dia o mesmo beijo de despedida na minha mãe. Mas a primeira coisa que ele fazia era limpar cuidadosamente sua arma. Essa era a parte que eu mais gostava.

Ele tinha um traquejo incrível para desarmar, tirar a munição, fazer a limpeza, preparar sua ferramenta de trabalho e por fim encaixá-la com classe à cintura. Na verdade, poucas vezes tive permissão para permanecer no quarto enquanto ele se preparava. Mas assim mesmo eu tentava todos os dias ficar por ali, como quem não quer nada, antes de ir para a escola.

Certo dia, no meio da manhã, ele foi surpreendido por dois marginais, que o dominaram num desses becos isolados de nossas grandes cidades. Pelo que meu pai pôde perceber, ambos estavam drogados. Tudo aconteceu ao acaso. Quando ele se deu conta, um dos rapazes saiu pelas costas detrás de um entulho qualquer e encostou um cano em sua nuca. Em seguida, o outro apareceu, olhos vidrados, dizendo coisas desconexas.

Bastante experiente, meu pai pediu calma e tentou convencê-los de que tudo poderia acabar bem. Mas eles não quiseram ouvir conversa alguma. Desajeitado, o bandido que estava por trás tirou a arma de meu pai e a jogou ao companheiro. Mandou que meu pai se ajoelhasse e pediu para que o outro fizesse uma brincadeira de roleta russa.

Naquele momento, meu pai entrou em desespero, mas qualquer movimento mais brusco poderia apressar sua morte. O rapaz, visivelmente descontrolado, nem se certificou sobre as balas, nem mesmo olhou o tambor. Foi logo metendo o revólver na cabeça do policial. Vai logo, dispara essa merda, gritava o marginal que estava pelas costas. Tremendo muito, o atirador apertou o gatilho. Mas não saiu nada. E nisso, vendo-se completamente em pânico, o bandido soltou o revólver e correu em disparada. O primeiro, aquele que chegou pelas costas, fez o mesmo. Talvez ele nem mesmo tivesse uma arma de verdade.

Meu pai esticou o braço e pegou o revólver. Não havia uma bala sequer no tambor. Um policial militar em serviço há tanto tempo e naquele dia, exatamente naquele dia, ele falhara. Ao limpar a arma, como fazia todas as manhãs, esqueceu-se de colocar a munição. Uma falha imperdoável deixar o revólver descarregado. Logo um soldado.

Vendedor, 29 anos, São Paulo

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One Response to “Confissões: ‘Um erro decisivo’”

  1. Ana Flores disse:

    Espetacular! O comentário final fecha com chave de ouro essa narrativa. Mais um gol seu, Marcio.
    Abraços