Memória da saudade


Vídeo com “Canção da América” e cenas do enterro de Elis Regina, em 1982. É com esta música e essa voz extraordinária que homenageio meus amigos mortos

Eu respeito muito as crenças e os rituais. Desde, claro, que não sejam absurdos. E como há crenças e rituais absurdos! Mas isso fica para outra hora. O fato é que eu respeito muito as crenças e os rituais. Porque, afinal de contas, nós sabemos tão pouco, quase nada. Como teria dito Sócrates, o filósofo, só sei que nada sei. E eis o que sei: respeito, recuso-me a duvidar do que não sei, e como nada sei, de nada duvido.

Quando eu era garoto, garoto mesmo, de 4 ou 5 anos, um dos dias mais divertidos para mim era Finados. Naquelas tardes empoeiradas de calor, chupávamos sorvete de groselha na porta do cemitério. Eram picolés que os sorveteiros levavam para o local em caixas de isopor. Saíam de lá meio derretidos pelas altas temperaturas da época, mas assim mesmo eram deliciosos.

Finados era uma festa para nós, crianças do sítio com poucas diversões. O ritual, aliás, começava dias antes. Minhas tias, como aquelas espanholas dos filmes de Amodóvar, dirigiam-se com antecedência aos túmulos e capelas. Tudo precisava estar muito bem limpo e arrumado para o dia das visitas. E lá ia eu também. Olhar para aquelas construções melancólicas, cruzes assustadoras, retratos de velhos estranhos.

O tempo passou e minhas crenças descolaram-se dos rituais. Dificilmente vou a cemitérios. Acho que é realmente preciso cuidar bem do local, mas apenas por uma questão de saúde pública. E, em muitos casos, por respeito à arte. Porque, no que se refere aos nossos mortos, lá não existe absolutamente nada que mereça nossa atenção. Mas, como eu disse no início, respeito e admiro aqueles que se dedicam a visitar, levar flores, ajoelhar e até acreditar que ali são ouvidos pelas pessoas queridas que se foram.

Na minha cabeça, acho mais provável que nossos mortos queridos estejam teclando numa rede virtual do além do que perdendo tempo debaixo da terra, enclausurados em ridículas caixas, à espera das visitas dos dias de Finados. Sim, sim, eu sei. É apenas um ritual. E, como eu disse, aqui está de novo meu respeito.

Mas o caso é que hoje, véspera de Finados, eu quero acreditar que é mais fácil nossos mortos lerem uma mensagem via web do que ouvir nossas orações sobre seus túmulos. E assim, arrisco-me aqui a lembrá-los.

Em vários espaços, os veículos de comunicação costumam nesta época recordar os mortos famosos. Estimulam no público a lembrança daqueles que fizeram história do país, do mundo. Mas, não sei não, acho que a verdadeira saudade vem mesmo apenas daqueles com quem vivemos em certas épocas de nossas vidas. Gente da família ou amigos ou colegas ou namorados. Meu pai, meus tios, minhas tias, minha avó (a única que conheci), minha cunhada. A família é sempre um rosário de mortes e saudades.

Amigos longínquos, como o Lu (Luciano). Morreu aos 14 ou 15 anos. Morreu com toda a família num terrível acidente do qual apenas um irmão sobreviveu. Tenho saudades de você, Lu, garoto saudável, bonito, inteligentíssimo, bacana. Não sei se você está lembrado daquele dia no campinho. Jogávamos futebol e, num lance em que eu já havia passado a bola, você chegou por trás de mim e encostou tudo o que podia (era o que chamávamos de “encoxada” e fazíamos para sacanear mesmo). Porra, eu fiquei muito puto e caí de porrada em cima de você. Me desculpe, cara.

O Izidoro, que também morreu num acidente. Você, Izidoro, era tão divertido que até na hora de morrer tirou onda com a cara de todo mundo: tomou umas a mais e andou simplesmente vinte e poucos quilômetros de rodovia na contramão. Sim, é verdade, meu caro. Você fez isso! Lembra quando na época dos televizinhos você ia em casa, ficava vendo TV até tarde e, porque nós já tínhamos ido dormir, você fechava a casa e jogava a chave por debaixo da porta?

Graneiro, que jogava truco de um modo sui generis: conseguia perder de casal preto no pé. E ainda reclamava dos parceiros. Seu filho da puta, que sinal você queria que nós déssemos a você se todas as manilhas estavam contigo? Na verdade, não sei direito do que você morreu. Também, para quê? Como você costumava brincar, “antes ele do que eu”. Ou seja, “antes você do que eu” (Ah! Ah! Ah!)

Dona Maria, que numa noite de domingo, depois de uma churrascada de doze horas, fritou vinte ovos para comermos com arroz. Você morreu de câncer, Maria. Mas foi brava! Deu lições, chegou a humilhar essa doença de merda: lembra quando, à beira da morte, você levantava de madrugada e nos recebia para jogar um belo carteado? O maior barato era vê-la se preparar para o jogo: você ia para seu quarto e se sentava diante da penteadeira. Ali, passava batom e retocava a maquiagem. Lembra disso?

Fred Calmon, que com aquela voz avassaladora e aquele jeitão de galã de Hollywood dos velhos tempos contava suas histórias magníficas de amor e sacanagem. Copo numa mão e cigarro na outra, à mesa do bar, você era a atração para nós, jovens jornalistas que gostávamos de ouvi-lo. Se não me engano, você morreu num sábado. Sua Virgininha (Virgínia) estava triste de dar pena. Lembra-se do medo que você tinha dela? (Ah! Ah! Ah!)

Pedrassinha, que nós levávamos para as noitadas e que nos contava sempre as mesmas histórias. E nós sempre as ouvíamos porque era você, Pedrassinha, quem as contava. No seu velório, alguém deve ter comentado sobre o dia em que você quase perdeu uma orelha. Foi depois de uma final de campeonato que o seu São Paulo ganhou. Todo mundo estava naquele estado. Você foi ao banheiro, tropeçou e, ao apoiar-se nos azulejos, deslizou parede abaixo. O problema é que sua orelha engatou numa torneira e você ficou pendurado. Mas, no fim das contas, aquele orelhão de dumbo foi consertado no hospital.

Seu Álvaro, meu sogro, a quem devo meu primeiro romance: “Parabala”. Ele era todo certinho, mas também aprontava das suas. Aconselhado pelos médicos (e pela mulher) a não beber mais do que uma ou duas taças de vinho, driblava, com a minha ajuda, a vigilância durante nossos almoços para que ele pudesse chegar à terceira ou quem sabe à quarta. Lembra-se daquela maravilhosa história do cachorro que se desintegrou diante do senhor? E de tantas outras? E do dia de nosso acidente, quando o senhor foi paparicado por umas mulheres? Lembra-se delas fazendo com que o senhor se sentasse numa cadeira à sombra, dando-lhe água e abanando-lhe a face debaixo de um toldo como se o senhor fosse o rei da Pérsia?

Gisele, que eu namorei na minha juventude e com quem travei tantas aventuras. Ela era um pouco mais velha do que eu. Eu a via, linda e cobiçada por tantos homens, e desistia antes da hora. Não era para meu bico. Então aconteceu. Sem que eu soubesse como, aconteceu. E ficamos juntos por um tempo. Lembra-se quando você foi para a cidade onde eu trabalhava e, para que você pudesse ficar no apartamento da empresa onde eu morava, inventamos que você era minha irmã?

Du, meu amigo que começou a fazer jornalismo e depois de um tempo parou. Parou com tudo. Com a vida também. Você era um cara legal, embora sua introspecção o afastasse de quase todo mundo. Mas não de mim. Você era mais velho do que eu. Era quase um filósofo. Dono de uma incrível capacidade intelectual. E ao mesmo tempo, de uma sensibilidade extraordinária. Lembra-se quando você, num ato de generosidade, arrumou para mim uma foto daquela garota por quem eu era apaixonado?

Flávio, o sujeito mais generoso que eu já conheci. No trabalho, fazia chover balas e bombons sobre os funcionários. Mas não era essa sua verdadeira generosidade. Claro que não. Sua generosidade não era material, fazia parte de sua alma. Você se lembra de como nos conhecemos? Se contar ninguém acredita. Eu liguei para você e disse assim: “Você quer ser meu chefe?” (Ah! Ah! Ah!). Nunca me arrependi do convite. Espero que a recíproca tenha sido verdadeira.

Há mais, claro. Um homem de 46 anos já perdeu vários outros familiares, amigos, colegas etc. Mas para quê? Se o objetivo é apenas um? Dizer: finado é cada um de vocês, mas também parte de mim. Porque, a cada morte de vocês, um pouco de mim também morreu.

Anexo

Também sinto saudades dos nossos cachorros que se foram. E para homenageá-los publico aqui a foto do último, morto no início deste ano: nosso incrível Ronaldinho, que só não falou porque Deus não quis.

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