Aquela bala de hortelã (completo)

Capítulo 1

O verão de 1962 foi de derreter os miolos. Pelo menos era isso que costumávamos ouvir com freqüência nas conversas preguiçosas dos vizinhos e conhecidos quando andávamos pelas ruas logo após o almoço. Não, isso não quer dizer que não havia chuvas. Chovia constantemente. As enxurradas encarregavam-se de trazer muita terra das encostas e despejá-la nas calçadas. Quando o sol ressurgia e as nuvens desapareciam do céu, lá iam os moradores, especialmente os comerciantes, com suas enxadas em punho, raspar os ladrilhos barrentos. Mas esse trabalho pouco adiantava, porque dali a algumas horas ou no máximo em dois ou três dias, o aguaceiro despencava novamente e a lama cobria tudo outra vez. Para nós, estudantes do quarto ou quinto ano, tanto os dias de sol como os dias de chuva representavam ocasiões para aventuras, às vezes bem sucedidas, em outras...

Estudávamos de manhã, e as tardes, cumpridas as tarefas escolares, pareciam esperar-nos de braços abertos com sua brisa quente e a claridade intensa da época reservada ao calor. Lembro-me de que escovava os dentes, no piso superior de nosso pequeno sobrado, enquanto pelo vão da janela do banheiro observava ansioso se os outros garotos já estavam à minha espera lá embaixo, à beira do gramado limpo, com seus dois ou três pequenos canteiros de cravos e rosas, que separava a rua e a varanda de casa. Com nossas bicicletas, rodávamos boa parte dos arredores da diminuta cidade. Se nossos pais consentiam? Ah, sim! Você não pode imaginar como eram sossegados aqueles arredores naqueles tempos. Havia trechos em que sabíamos onde desviar de pontas de raízes ou de galhadas prontas a surpreender um forasteiro desavisado. Conhecíamos uma infinidade de rotas em meio à pequena selva da parte alta, pouco antes do início das construções que compunham a zona urbana. Ali, muito perto, havia o acesso para quem vinha da rodovia. Era asfaltado.

Dois quilômetros, talvez alguns metros a mais, separavam em grande declive a rodovia e a entrada da cidade. Em certos horários, o movimento de pedestres era maior nesse percurso do que em qualquer outro local. Isso porque as pessoas viajavam muito mais de ônibus. Para ir a cidades próximas, bastava dirigir-se à rodovia e sentar-se no banco do ponto dos interurbanos. Poucos entravam em Mirante Norte, mas muitos passavam à sua porta e alguns programavam paradas. Gostávamos de aproveitar essas horas para exibir nossas habilidades sobre duas rodas, disputávamos nosso grande prêmio.

Em seis ou sete privilegiados donos de boas máquinas, como fazíamos questão de chamá-las, pedalávamos com extrema dificuldade rumo ao topo da estrada de acesso. Nunca conheci outros dois quilômetros tão longos como aqueles, mas subir montados nas bicicletas compunha requisito básico para a disputa da corrida. Quem não suportasse a ladeira bravia, podia considerar-se desclassificado. O Joca, apelidado Joca Fangio por sua afeição ao automobilismo e por tratar-se de nossa singela homenagem ao grande campeão, controlava a pontuação. Nossas temporadas eram semestrais. A cada mês, cumpríamos no máximo dois grandes prêmios, em razão de motivos que ainda serão dispostos. Fangio anotava as colocações em sua prancheta e orgulhava-se de ser tratado por “senhor juiz”. Corpulento aos 11 anos, jamais conseguiria subir a ladeira, e se pudesse fazê-lo, talvez fosse muito pior. Onde daria uma bicicleta embalada ladeira abaixo por seus mais de cem quilos?

A chegada, aliás, constituía-se na nossa principal preocupação. Logo ao final da via de acesso, às margens da cidade, o asfalto simplesmente acabava, seguindo-se algo em torno de cem metros até o início da avenida principal de Mirante Norte, pavimentada com paralelepípedos. Descer em alta velocidade pelo asfalto e adentrar um trecho de terra, em que na estação das chuvas os buracos cresciam descaradamente, significava um grande risco de acidentes. Talvez para vingar-se de sua frustração por não poder participar das corridas, Fangio procurava posicionar-se, como juiz, sempre muito próximo ao fim do asfalto. Dali em diante, por mais que você tentasse frear, as dificuldades de parar a bicicleta eram imensas.

Estávamos posicionados para a largada, na cabeceira da pista. Aguardamos os passageiros descerem do ônibus e percorrerem alguns metros estrada abaixo e, então, ouvimos o apito do Pinóquio, um menino de nariz grande, auxiliar de Fangio, e cujo impedimento de participar conosco dos grandes prêmios não era físico, mas financeiro. Pinóquio, de família pobre, não tinha bicicleta. Ao menos não naquela época. Mais tarde, eu me recordo, ele teve uma, mas os pneus viviam na lona, a corrente mal encaixava-se aos dentes e o guidão quase nunca obedecia as manobras, o que sempre o deixava fora das competições.

Bem, mas quando soou o apito de Pinóquio, nós largamos. A estrada de acesso seguia, mais ou menos, as seguintes características: os primeiros duzentos metros eram retos, em declive manso que progredia sucessivamente daí em diante. Nesse trecho, costumávamos exibir-nos para aqueles que tinham descido do ônibus e a pé seguiam para a cidade. Fazia parte do ritual. Era como se quiséssemos nos apresentar a eles e chamar a atenção para uma eventual torcida. Fazia-nos bem fantasiar que alguém dispunha-se a torcer para um ou outro durante o trajeto. Ao atingir os primeiros duzentos metros, as bicicletas começavam a aumentar a velocidade, até chegar a meio quilômetro. A essa altura, já tinham ficado para trás duas curvas abertas e fáceis de manobrar.

Dos quinhentos metros até quase o primeiro quilômetro, o terreno exigia muito dos ciclistas, pois sua planície não possibilitava manter a velocidade obtida no forte declive anterior. Era preciso pedalar muito para não perder posições até o início do segundo e último quilômetro. Dificilmente alguém que liderasse a prova nessa altura conseguia perdê-la. Tudo começava com um arco à direita. A sensação ali não pode ser descrita para quem nunca cumpriu o percurso numa bicicleta. A descida tornava-se íngreme à medida que você contornava o arco. Na primeira vez, o mais correto seria confessar desespero, mas quem vivia esse desespero nunca deixaria de pensar em vivê-lo novamente. Cumprido o arco, o acesso seguia à esquerda em extensa curva leve, mas sempre em declive, até quase a quinhentos metros do final. E aí reuniam-se todos os perigos.

A ladeira parecia afundar-se num precipício. Os novatos, não poucas vezes, freavam desesperadamente suas máquinas e deixavam de cumprir esses últimos metros do percurso. A impressão comum era que você iria de cabeça e a bicicleta saltaria sobre suas costas, atingindo solitária o grande final. Por esses riscos é que disputávamos apenas uma ou duas corridas por mês. Se o fizéssemos de maneira mais regular, talvez nossos pais descobrissem os campeonatos e até mesmo vendessem nossas bicicletas. Não que as denúncias deixassem de chegar a um ou outro, mas com muito jeito desmentíamos tudo e cuidadosamente providenciávamos a suspensão temporária das competições até que o assunto esfriasse.

Mas deixe-me voltar ao apito do Pinóquio e ao grande prêmio daquela tarde de verão, em fevereiro de 1962. Saímos em sete. A largada obedecia à colocação da prova anterior. Como eu havia vencido a única corrida que pudemos realizar em janeiro, posicionei-me à frente. Por assim dizer, tinha a pole garantida. À minha esquerda, na segunda posição, vinha o filho do doutor Alcebíades, médico de Mirante Norte, um bom sujeito, mas um tanto exibido demais para nosso gosto. Em terceiro, posicionava-se o Arthur, que pelo fato de nunca ter vencido uma prova ganhara a alcunha de Palerma. Depois, vinham o Neco Onça, meu melhor amigo daquela época, cujo apelido originava-se nas inúmeras pintas que desenhavam todo seu corpo; o Sete e Meio, imbatível nesse jogo de cartas e que todos nós tínhamos como perfeito ladrão, porque era certo que roubava, mas ninguém conseguia flagrá-lo; e os gêmeos Sílvio e Sálvio, de aparências tão semelhantes que seus adversários de grandes prêmios, incluindo-me, desconfiavam de uma séria trapaça no ano anterior, quando Sílvio precisava vencer a última prova para conquistar o título. Se isso não ocorresse, a vitória seria do Palerma, que sempre chegava em segundo e por isso somava muitos pontos. Assim, quando todos achavam que estaria quebrado o jejum do Palerma, pois Sálvio havia cruzado a linha final, bem diante do Fangio, eis que o vencedor se apresenta como Sílvio, para espanto geral. Mas como desmentir? A partir desse episódio, Fangio determinou que os gêmeos deveriam apresentar-se sempre com roupas distintas durante as provas, o que acabou com qualquer suspeita futura, mas para o azarado do Palerma, o estrago já estava feito.

Bem, o Pinóquio apitou e nós largamos. Ao contrário do que vivíamos fazendo, ou seja, desperdiçando tempo em acrobacias e cumprimentos aos passantes, minha estratégia era enfiar todas as minhas forças nos primeiros cem metros, abrir uma boa vantagem, já que havia largado na frente, e depois apenas administrar bem os meandros do percurso para alcançar a segunda vitória da temporada. E assim o fiz. Quando iniciamos o primeiro declive, percebi que os demais só agora começavam a perceber minha boa dianteira. Então, conforme a descida aumentava progressivamente, pedalei ainda mais forte, até não poder mais. Minha velocidade foi estupenda.

Ao concluir a segunda curva que levava aos primeiros quinhentos metros, olhei para trás e não vi qualquer outro competidor ao meu encalço. Percebi também, de relance, que subiam a ladeira a senhora Wander, como apreciava que a chamassem, por tratar-se do sobrenome de seu segundo marido, e seu filho Homero, de cinco ou seis anos, cujo pai, o primeiro esposo da senhora Wander, havia falecido há dois anos. Esse garoto, coitado, sempre fora esquisito. Eles eram nossos vizinhos de rua e dizia-se que às vezes até mesmo a mãe, o padrasto e a irmã mais velha assustavam-se com suas reações inusitadas. Ao passar pelos dois, que decerto tomariam o próximo ônibus lá em cima, ouvi o Homero dizer algumas palavras, o que também era muito raro, e voltar-se com o rosto coberto pelas mãos para o lado da mãe. Em minha concentração na corrida, levei algum tempo para decodificar os signos pronunciados naquela mensagem. E ao fazê-lo, não houve tempo para mais nada. A senhora Wander e o Homero ficaram para trás e minhas pedaladas, como era necessário naquele trecho, fizeram com que a corrente bradasse forte no eixo traseiro, mas meus pensamentos viajaram para o semblante inquieto do garoto e também para suas poucas palavras ditas à margem da estrada. Era tão raro ouvi-lo falar... Nisso, detive-me à sua frase, compreendi, mesmo com retardo, o que ele havia dito, e nada mais era do que isto:

- Pobrezinho, mamãe. Que tombo feio!

Ao sabê-lo, uma reação estranha e automática incumbiu-me de tentar frear a bicicleta. Apertei como pude a haste esquerda sob o guidão. Antes de qualquer efeito, contudo, o pneu dianteiro chocou-se contra uma pedra, estourou e atirou-me, em meio a horrendas cambalhotas, a cinco ou seis metros abaixo. Tudo escureceu à minha volta e eu permaneci em coma por uma semana. Foi a primeira vez que eu soube por que de vez em quando a família de Homero assustava-se com ele.

Capítulo 2

Ao recuperar a consciência, na santa casa de uma cidade vizinha, para onde fui levado na mesma hora em que me socorreram durante o grande prêmio, o calor oprimia-me de tal maneira que tive a nítida impressão de estar sendo cozido para o jantar. Minha mãe vigiava-me e não pôde conter as lágrimas quando abri os olhos e sob a mais frágil das vozes disse aquela frase:

- Preciso chupar uma bala de hortelã...

Era curioso, mas sempre fui assim: enquanto nos dias de muito calor os outros costumavam banhar-se na pequena cachoeira do regato que descia da mata, para mim bastava tirar do bolso uma bala verde de hortelã e colocá-la na boca. Pronto. Uma sensação refrescante ocupava-me e eu ficava ali, debaixo dos galhos apenas observando a algazarra deles dentro da água. Sim, eu também apreciava a água, mas decididamente o paladar já significava uma espécie de condutor de minhas sensações. Minha mãe não carregava consigo nenhuma bala de hortelã no hospital, e mesmo que a tivesse, certamente não me teria dado antes de fazer o que fez: enfiar o dedo naquela campainha que liga o quarto do paciente à enfermaria. Além do mais, ela foi tomada por uma grande surpresa ao constatar um quase-milagre: mais tarde, muito mais tarde, pude saber que as esperanças quanto à minha recuperação eram mínimas.

Deixei o hospital duas semanas depois de cumprir uma via crucis de exames e de ficar na famosa observação, em que a última coisa que há é qualquer observação, a não ser dos seus parentes e amigos que vão visitá-lo. Claro, o médico autorizou que eu chupasse quantas balas de hortelã fossem-me possíveis. Quando a cidadezinha de Mirante Norte soube de meu retorno, não houve dúvidas: o “quase” foi extirpado do termo que usei há pouco, permanecendo soberano e indiscutível o “milagre”. Por algumas semanas, até que a poeira baixasse, tornei-me uma certa celebridade. E foi até engraçado, pois muita gente levou ao pé da letra os comentários sobre a recuperação miraculosa e, talvez obedecendo inconscientemente a uma marca própria daqueles anos sessenta, alguns moradores, não apenas crianças, mas também adultos, passaram a seguir-me em alguns hábitos. Por exemplo, quando souberam que meu primeiro desejo ao acordar foi chupar uma bala de hortelã, correram ao bar para estocar o produto que deveriam consumir em nome de uma boa sorte. Se eu usava um boné cor de abóbora, as ruas tingiam-se desse tom por um certo tempo. Na escola, eu podia mesmo receitar que tipo de caneta ou caderno meus colegas deveriam usar no decorrer daquele ano.

E quanto a essa parte da história, aconteceu algo inusitado. Num certo dia, fui comprar balas de hortelã no bar mais próximo de minha casa e elas tinham acabado. Só no mês que vem, quando chegar a próxima remessa, disse-me o seu Argeu. Tudo bem, havia outros bares e também dois armazéns. Percorri toda Mirante Norte, e nada. Os estoques de balas de hortelã estavam esgotados. Desse modo, parei de chupá-las, e percebi que meus colegas e todos os outros assim também agiram. Não sei que fim tiveram tantas balas nos estoques caseiros, mas depois, quando chegou a nova remessa, o verão já acabara e o friozinho do outono requeria uma boa bala de canela.

De pouco em pouco, deixei de ser o dono das atenções. A cidade esqueceu-se do milagre e voltou-se ao seu sossegado cotidiano. E nós aproveitamos para retomar nossos grandes prêmios. Mas, na minha cabeça, além de uma razoável cicatriz e de umas dores que, embora decadentes, ainda incomodavam-me às vezes, uma inquietação tomava corpo: a lembrança de Homero e de sua mãe, o menino com as mãos cobrindo o rosto, aquelas palavras: pobrezinho, mamãe, que tombo feio!

Capítulo 3

Elisa. Esse é o nome da irmã mais velha de Homero. Naquele ano que se iniciava, estudaríamos na mesma classe de primeira série ginasial. Engraçado recordar-me disto, mas eu jamais havia reparado nela. Seria a idade? Naquela época, estávamos mais preocupados com muitas outras coisas antes de pensarmos em garotas. Seria a roupa de ginasiana: saia um pouco acima dos joelhos, com pregas que encorpavam quem a vestisse, além de uma blusa branca que, fofa, emprestava às meninas uma conotação de quase-mulher? Não sei dizer o que seria, mas quando a vi sentada no pátio à espera da aula, chupei seguidamente um pacote inteiro de balas de hortelã.

Minhas pernas tremeram no jantar daquela noite quando, à mesa, eu disse a mamãe e papai que Elisa estudava na minha classe. Eles entreolharam-se de maneira estranha e depois, em silêncio, não conseguiram disfarçar certo incômodo. Ao meu lado, minha irmã Helga fez, em meio às garfadas, um comentário cujas conseqüências só serviram para piorar as coisas:

- Ela está muito sozinha este ano...

Helga é dois anos mais velha do que eu e a maneira como se expressou sobre Elisa foi sintomática, cravando no ar um olhar de comiseração. Eu sabia que havia algo errado, mas não podia interpelar minha irmã ali, na frente de meus pais, cujas reações suscitadas pela simples menção ao nome de Elisa apresentaram um ar de tamanho desconforto. Até o fim do jantar, não se falou mais sobre o assunto. Tão logo Helga subiu para o quarto, eu pude então pedir-lhe algumas explicações.

Minha irmã sempre foi muito discreta. Naquela época, ela contava catorze anos, mas já parecia ser uma moça de dezoito por seu comportamento sóbrio e não afeito a criancices. Embora de início ela tenha me cutucado sobre o repentino interesse por Elisa, já suspeitando de meus sentimentos, colaborou conforme minhas intenções. Explicou-me que desde o casamento da senhora Madalena com o representante comercial Damião Fausto, o que a tornou senhora Wander, em razão do sobrenome dele, os moradores de Mirante Norte passaram a afastar-se aos poucos de sua convivência. Na cabeça de minha irmã, a razão para isso era que a senhora Wander esperara muito pouco tempo para abandonar a viuvez e casar-se novamente.

Havia, contudo, outro motivo, este sim decisivo para que o isolamento da senhora Wander crescesse a cada dia: o tal Damião Fausto era visto com reservas pela sociedade mirantina. Ninguém sabia ao certo o que ele vendia e para qual empresa trabalhava. Além disso, para alargar ainda mais a antipatia geral, Damião Fausto tinha sido, há coisa de seis ou sete meses, responsável direto pela morte do jovem professor Hildebrando, filho do fazendeiro Tonico Fortes, um dos homens mais ricos de Mirante Norte. Resumidamente, o acidente deu-se assim: numa madrugada, Hildebrando deixava o clube social, cuja sede localizava-se bem na entrada da cidade, quando Damião Fausto apontou com seu automóvel em alta velocidade para os padrões da época. A rua estava deserta e chovia muito. Damião Fausto não parou e o professor morreu ali mesmo, com a boca vazando sangue nos paralelepípedos. No outro dia, Damião Fausto alegou não ter percebido o atropelamento em meio ao aguaceiro, mesmo que o pára-choque de seu carro estivesse todo amassado. Bem, o fato é que misteriosamente ele foi julgado e considerado inocente. Com isso, a cidade, incluindo é claro o fazendeiro Tonico Fortes, nunca se conformou.

Essas informações eu as obtive com minha mãe. Lógico que os detalhes só chegaram ao meu conhecimento muito mais tarde, mas grosso modo dava para compreender por que sempre viravam a cara para a pobre senhora Wander e, de quebra, para seus filhos, Homero e Elisa.

As semanas daquele novo ano correram feito loucas e, com o tempo e a ajuda de Helga, pude fazer amizade com Elisa. No intervalo das aulas, sempre chupávamos muitas balas de hortelã. Meu Deus, eu nem me lembrava mais das histórias a respeito do Damião Fausto, tal era o meu desejo de permanecer ao lado dela. Um dia, tomei coragem e pedi à minha mãe para que me autorizasse a fazer a lição de casa com ela, mas a resposta foi negativa. Lógico, fui assim mesmo. A senhora Wander, que quase sempre encontrava-se sozinha com Homero e a filha, pois o marido viajava constantemente, passou a considerar-me muito. Pobrezinha, em todas as vezes que lá estive naqueles outono, inverno e começo de primavera de 1962, acho que presenciei apenas a visita de uma ou duas pessoas, assim mesmo uma sendo sua parente de outra cidade.

Assim, enquanto meus amigos achavam que eu estava em casa estudando, e minha mãe pensava que eu havia saído com meus amigos, um ou dois dias por semana eu sempre dava um jeito de ir ver Elisa. Com essa freqüência, foi impossível não perceber algumas situações estranhas provocadas pelo soturno Homero. Embora eu não pudesse compreender exatamente o que se passava, porque eu e Elisa estudávamos longe dele, era algo perceptível o esforço da senhora Wander para disfarçar certas reações do filho, procurando desfazer até mesmo o constrangimento que eu descobria nos olhos de minha amiga.

Numa ocasião, estávamos com os livros abertos no escritório de Damião Fausto, quando ouvimos o choro copioso de Homero em seu quarto. Elisa correu para lá, enquanto eu, talvez por respeito a algo que imaginava constrangedor para a família, permaneci ali, quieto, apenas ouvindo o menino lamentar:

- Pobrezinha da vovó, pobrezinha da vovó...

Demorei somente alguns segundos para entender que Homero possuía uma espécie de sexto sentido. Dali a pouco, enquanto a senhora Wander consolava o filho, o telefone preto tocou na sala. Do outro lado da linha, comunicaram a morte da avó de Elisa. Enfarte.

Capítulo 4

Quando eles voltaram da viagem ao enterro, retomamos nossos encontros, sempre à tarde. Para ser discreto, em vez de ir pela rua, eu saía pelos fundos de minha casa, atravessava um pomar e tomava o caminho de terra à beira do regato que escorria da mata e seguia seu curso por uma vasta planície até desaparecer lá longe. Nos fundos da casa de Elisa, eu escondia minha bicicleta em meio à vegetação e, cuidando de modo a não ser flagrado, voltava à rua para entrar na residência de acordo com a boa educação. Talvez me tivessem visto uma ou outra vez, mas acredito que nunca disseram nada à minha mãe. E se disseram, ela manteve a elegância de não me acusar por algo que, aliás, estava longe de ser um crime.

Elisa manteve-se entristecida por um bom período. Lembro-me que já chegavam os dias mais frios e isso parecia colaborar para mantê-la enclausurada em sua melancolia. Então, num momento de coragem, perguntei-lhe sobre Homero. Como ele pôde saber da morte da avó antes do telefonema? Elisa procurou afastar a nuvem cinzenta que pairava sobre sua cabeça e, como sempre o fazia ao dirigir-se a mim, pôs no rosto ebúrneo uma luminosidade que contrastou de maneira extraordinária com seus olhos negros. Tomou-me pela mão, disse à mãe que me mostraria algo no “quartinho” e puxou-me com avidez aos fundos do quintal.

Nosso diálogo lá foi mais ou menos o seguinte:

- Você é meu amigo de verdade, Rômulo. Eu sei que é...

- Sim, claro que sou.

Verdadeiramente, confesso, eu pretendia ser bem mais do que um amigo de Elisa, mesmo aos doze anos. Eu queria ser seu namorado, seu noivo, seu marido, o pai de seus filhos, a avô de seus netos, o companheiro dela no quadro que os descendentes costumavam fixar na parede retratando seus antepassados.

- É que mamãe me pede todos os dias para que ninguém saiba sobre Homero.

- Mas em mim você sabe que pode confiar.

- Eu sei, em você eu confio.

- Então?

- Homero está dois minutos adiantado...

Ao ouvir isso, minha primeira reação foi observar lá fora do quartinho, na direção do quintal, onde se perdiam naquele exato momento os olhos negros de Elisa. Por um lapso, pensei que veria Homero fazendo algo que ele deveria fazer somente dali a dois minutos. Mas logo, e principalmente quando me dei conta de que não havia ninguém lá fora, muito menos o garoto, uma sensação de medo percorreu-me o sangue. Mesmo com o frio, precisei sacar duas balas de hortelã e chupá-las impulsivamente.

No quartinho dos fundos da casa de Elisa, eu soube que o irmãozinho dela vivia um tempo que não era o nosso. Ele sempre estava à frente, vivendo tudo antes de todos. Era isso que acontecia com ele e que a senhora Wander não gostaria de revelar aos outros. Depois do golpe inicial, cujas conseqüências puseram-me a imaginar mil coisas sobrenaturais sobre Homero, acalmei-me e muito depressa passei a achar aquilo engraçado. Eu já ouvira falar de pessoas que tinham visões, mas de alguém que estivesse adiantado no tempo, jamais. Absurdo. Impossível. Foi o que me veio à cabeça, mas não juntei coragem suficiente para expor essa opinião, o que poderia resultar até mesmo em ofensa. Por outro lado, que diferença fazia? O fato era que Homero sabia de certas coisas com desesperadora antecedência. Deixei que Elisa mantivesse sua interpretação, bastante original que se diga, sobre o fenômeno vivido esporadicamente pelo irmão.

Aqui, abro parêntese para uma constatação. Quando a senhora Wander aceitava o desprezo das pessoas de Mirante Norte, essa atitude parecia-me um tanto covarde. Em todos aqueles dias junto de Elisa, eu procurava, acho que involuntariamente, desconsiderar esse aspecto do comportamento da mãe de minha amiga, que no mais mostrava-se uma pessoa carinhosa e de ótimo relacionamento. Contudo, ao tomar conhecimento dessa faceta inusitada de Homero, uma vergonha tingiu minha alma. Quanto não sofreria aquela mulher em seu isolamento? Sofria e mesmo assim deveria desejar a continuidade de seu sofrimento, pois, em tais circunstâncias, quanto maior fosse o grau de seu isolamento, mais seguro estaria seu segredo. Então, passei a admirá-la completamente, agora também por sua dolorosa dedicação como mãe. Fecho o parêntese.

Mas a respeito de Homero, contou-me Elisa que a mãe encontrara na capital um psiquiatra disposto a estudar a fundo o caso do filho. Mas o padrasto, que, me dizia ela, nem de longe mostrava-se má pessoa, dera opinião contrária. Para Damião Fausto, caso esse contato fosse feito concretamente, eles perderiam o controle da situação. Temia a curiosidade das pessoas, a medicina, que poderia tornar o garoto uma espécie de cobaia, a imprensa sempre ávida por notícias sensacionais e, por fim, a própria sociedade de Mirante Norte, que poderia ampliar ainda mais seu desgosto com aquela família.

E desse modo outros dias correram, até que numa de minhas visitas, ao chegar à casa de Elisa, apressado em razão da intermitente chuva de inverno, avistei Homero entrando sozinho no quartinho dos fundos. Não sei o que me levou a bisbilhotar assim a vida alheia, mas saltei a cerca do quintal e, cuidadoso, aproximei-me da janela do cômodo isolado. Lá dentro estava o Damião Fausto. Com carinho, ele mostrava alguns números a Homero e pedia para que o menino apontasse quais seriam os sorteados na loteria ou no jogo do bicho, sabe-se lá. Mas Homero pouco compreendia aquilo, assim como Damião Fausto talvez também não compreendesse a condição do enteado. Deixei os dois ali e voltei à porta da frente da casa.

Mais tarde, depois que o padrasto saiu para ver qualquer coisa na cidade, Elisa disse-me que naquele dia Homero tinha previsto outra desgraça e que devido a essa previsão a tragédia não se concretizara. De automóvel, vinham da cidade vizinha, onde tinham feito compras, Damião Fausto e a senhora Wander, trazendo Homero com eles. A poucos quilômetros de Mirante Norte, Homero despencara a chorar, enquanto gritava algo como:

- Pobrezinha da mamãe, pobrezinha da mamãe... ônibus mal, ônibus mal...

Com os olhos encharcados, Elisa contou-me que a cada palavra, Homero acariciava os cabelos da mãe, sob forte comoção. Nisso, Damião Fausto divisou vindo pela pista contrária um ônibus intermunicipal. Como soubesse de acontecimentos anteriores, inclusive o último, relacionado à sogra, freou o quanto pôde o automóvel e conseguiu acessar uma estrada de terra que ligava a rodovia a uma entrada de fazenda. Mal concluiu a manobra e ouviu o estouro causado por um dos pneus do ônibus, que se desgovernou e invadiu a pista contrária. Pelos cálculos de Damião Fausto, o motorista levou ao menos trezentos metros para retomar o controle do ônibus e parar no acostamento.

- Papai nos disse que se não tivesse saído da estrada, o ônibus teria passado por cima do nosso carro.

Elisa e o irmão chamavam Damião Fausto de “Papai”. E acho que naquele dia, “Papai” convenceu-se de que poderia tirar proveito de Homero também para se dar bem na vida.

Capítulo 5

Numa das últimas vezes em que fui à casa de Elisa, percebi que havia um clima diferente dos outros dias. A senhora Wander tratou-me com educação, claro, mas não foi a mesma de sempre, preocupando-se muito em esconder os olhos vermelhos de ter chorado recentemente. Elisa deu a ficha: os pais tinham discutido outra vez. “Outra vez”? Sim, as discussões que nunca haviam ocorrido, agora tornavam-se freqüentes. O motivo era simples: depois do quase-acidente na estrada, a senhora Wander não suportava mais viver daquela maneira e desejava a todo custo levar o filho para um tratamento psiquiátrico, embora não tivesse certeza de que algo assim pudesse resultar em benefícios para ele. Já Damião Fausto interpunha-se.

- Mamãe também reclamou de umas coisas que o Papai está pedindo ao Homero. Ela o chamou de aproveitador.

Daí em diante, as coisas apenas pioraram. Elisa também vivia chorando, o que me deixava terrivelmente triste. Por várias vezes, cheguei a desejar que Damião Fausto fosse embora e nunca mais voltasse. Mas ele sempre voltava. Até que numa tarde, começo de primavera, um sol escaldante clareando outra vez os ipês floridos que dividiam ao meio as duas avenidas de Mirante Norte, estava com minha bicicleta deixando o Armazém Central, onde escolhera algumas frutas a pedido de mamãe, quando Damião Fausto freou bruscamente seu pequeno caminhão Chevrolet, aquisição recente, e abriu um sorriso em minha direção:

- Vamos lá, Rômulo, bote a bicicleta aí em cima e vamos com a gente!

Ele ia animado com seu novo veículo. Homero estava ao seu lado, olhando-me com a face mais inexpressiva do mundo. Então, abri a porta, pus a cesta de frutas sobre o banco, ao lado do garoto, e preparei-me para erguer a bicicleta e instalá-la na carroceria. Nesse intervalo porém, ouvi Homero desesperar-se depois de um grito de pavor:

- Pobrezinho do Papai, pobrezinho do Papai... Não, Papai... Não, Papai...

Meu coração ameaçou desgarrar-se de veias, vasos e artérias. Quis mesmo comprimir-se e subir pela garganta, saltando, apavorado, boca afora. Enquanto eu empreendia minha luta contra esse desejo enfurecido do coração e contra todos os receios que recaíam sobre minha alma naquela hora angustiante, observei que, num salto, Homero agarrou-se a Damião Fausto, beijando-o com aflição, esfregando-se contra a face do padrasto e repetindo:

- Pobrezinho do Papai, pobrezinho do Papai... Não, Papai... Não, Papai...

Foi quando tive pena de Damião Fausto. Certamente mais aflito do que eu e mais agoniado do que o próprio enteado, tornou-se branco como cera. Assim como eu, ele sabia que algo estava para acontecer e tudo levava a crer que a vítima, dessa vez, seria ele mesmo: Damião Fausto. Num fio de voz que retinia fino de sua garganta, ele ainda interpelou o menino:

- O que foi, Merinho? O que foi, Merinho?

Mas ia ser tarde. Do outro lado da rua, debaixo de um ipê cujos galhos arroxeados sacudiam levemente, fazendo dançar ao vento as pétalas de suas flores voluptuosas, o fazendeiro Tonico Fortes em pessoa, sem capanga ou matador, já erguia na direção do Damião Fausto sua garrucha de dois canos.

Capítulo 6 - Epílogo

Depois daquela tarde pavorosa, estive na casa de Elisa apenas uma vez, para despedir-me dela e também da mãe e do irmão. Com a morte de Damião Fausto, descobriram-se os meandros de sua vida. Como suspeitava-se naquela época em Mirante Norte, vivia em meio a atividades criminosas, cujas características prefiro omitir neste momento. Com a ajuda de familiares, a senhora Wander mudou-se para a capital, onde passou a tratar o filho com especialistas. O garoto, no entanto, morreu poucos anos depois, por complicações pulmonares.

Tudo isso ficamos sabendo ainda em Mirante Norte, nos dias em que se sucederam às tragédias, a tragédia familiar deles e a tragédia amorosa minha, se é que um garoto de doze anos pode ser levado a sério quando se insere numa tragédia amorosa própria. O que fiquei sabendo há pouco foi que, ao morrer, Homero também o fez de modo misterioso. Somente os aparelhos eram capazes de mantê-lo respirando. Convencida pelos médicos de que não haveria retorno, a senhora Wander, pensando, tenho certeza disto, apenas no sofrimento do filho, permitiu que fossem desligados. Antes que isso ocorresse, entretanto, Homero recusou-se a seguir aspirando aquele ar que lhe era obrigatoriamente enfiado pelas narinas. Morreu antes da hora.

- Acho que se tivessem cronometrado o tempo entre a morte e o momento em que os médicos iriam desligar os aparelhos, seriam dois minutos.

Disse-me assim a própria Elisa. Por um desses acasos, encontrei-a saindo de uma loja. Eu a reconheci por tê-la visto, psiquiatra famosa que é, em notícias de jornais e numa oportunidade também na televisão. Dessa vez, não precisei de balas de hortelã. Conversei com ela sentindo o gosto de uma estranha nostalgia, não sei se marcada pela tristeza ou pela felicidade, apenas uma nostalgia. Mas o que me atormenta desde então é outra coisa. Será que eu deveria ter contado a ela sobre o que se passou naquela tarde fatídica? O que só eu pude ver e ninguém mais? Que antes do disparo feito pelo fazendeiro contra Damião Fausto, e logo depois que Homero beijou e esfregou sua face na do padrasto, que já nesse momento testemunhei, aterrorizado, os lábios do menino, e mesmo seu rosto, manchados de um sangue que ainda esguicharia?

(Fim)

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