A hora da morte

Contou-me esta história o magistrado Ilídio Fagundes Tourão, digno de um caráter fiduciário à prova de manobras e entrementes aferidos em razoável monta nos meandros do ofício. Por certo, e disso dou fé, não ocorre entre sua altiva história um só processo de que possa ter se saído assim escassamente, nem mesmo este derradeiro, no qual, aliás, meteu-se de jeito. Contou-me esta história o magistrado Ilídio Fagundes Tourão, cujo passamento deu-se às nove horas e um quarto do dia 10 de março último, uma manhã de sol brilhante, como o fora sempre quem ela, discretamente, ali socorria à velhice imposta pela doença e talvez por um sórdido destino.

Por dois meses ou mais, estive a velar sua agonia. Casado já em altas horas, como será explicado adiante, não contava filhos e, daí, nem netos. Sua mocidade atravessou-a nos estudos para ocupar, seguidamente, distintas funções na carreira do Direito. Quando despertou para a vida fora dos gabinetes, os anos já o haviam traído. Restou-lhe, enfim, a convivência zelosa com a solidão. Eu o conheci nos corredores do tribunal. Sua figura circunspecta, de certa forma sombria, não costumava encantar, mas ao sabê-lo Doutor Tourão, de extraordinária carreira, desisti de meus receios e procurei uma aproximação que poderia me trazer grandes progressos.

Numa certa ocasião, enquanto eu relia o processo de um cliente, escorado no balcão do café, ele avizinhou-se sem rodeios e cumprimentou-me com um tradicional e quase simplório “boa tarde, doutor”. Confesso meu marasmo momentâneo. Em muitos daqueles dias, eu tentei fazer-me ver para, então, talvez, iniciar um contato. E agora, ali, bebendo café despretensiosamente, o homem destinava-me uma afável saudação. De início, é fato, sobreveio-me um breve torpor, mas também reabilitei-me a tempo de oferecer-lhe uma água e um café. Aceitas as bebidas, foi inevitável que eu utilizasse minha capacidade nata de persuasão para envolvê-lo numa pequena teia retórica que, posso garantir, acendeu uma chama de amizade naquela ligeira relação.

Decerto pouparei o leitor de aborrecimentos que poderiam nascer dos detalhes do que chamei de “capacidade nata de persuasão”. Basta assegurar que nossa amizade durou os últimos vinte anos, dez dos quais nosso proeminente Doutor Tourão gozou na sua justa aposentadoria. Por acaso, aliás, duas décadas também perfazem a diferença de nossas idades. Ao conhecê-lo pessoalmente, durante um cafezinho, ele contava 54 anos; eu, 34. Resumidamente, devo relatar que nos encontrávamos com certa frequência fora do expediente, quase sempre na residência dele ou na minha. Como é praxe em se tratando de figuras importantes do Poder Judiciário, Ilídio não era afeito a exposições públicas. No máximo, ia às reuniões periódicas de um clube de juízes, promotores e advogados, cuja sala social estabelecia-se muito próximo ao edifício de nosso tribunal. Lá, após os jantares, os associados pegavam-se no pôquer até altas horas. Fora isso, restavam poucas e discretas recepções.

Levava assim a vida o Doutor Tourão, quando num desses jantares minha esposa acenou-me com a seguinte possibilidade: “seu amigo parece estar apaixonado”. O quê? Seria possível algo assim? Aquele homem severo, de uma altivez assustadora a eventuais pretendentes, poderia estar olhando daquela forma para uma mulher? Um sujeito de um sorriso desconhecido como aquele? Um quase velho de espinhaço já um tanto curvado pela sua compleição e pela própria atividade despenderia seu coração àquela altura? E a uma moça ainda? Todas essas perguntas, que encerram filosofia, comportamento, aspecto físico e preconceitos, acudiram-me num instante. Mas logo evaporaram. Ao meu braço, minha perspicaz senhora lembrou-me disto: não acredito que essa moça linda possa se interessar pelo Ilídio!

Bem, o fato é que ela se interessou, sim. Aliás, interessou-se tanto que se casou com ele alguns meses depois. Ele, aos 59. Ela, aos 32. Juntaram-se como muitos casais de idades semelhantes não experimentam. Revelou-se, o Doutor Tourão, nas palavras da própria Gerusa, um marido e tanto. No tribunal, fie-se, o magistrado não se desviou um só milímetro de sua postura de solteiro. Seguiu carrancudo, quase mudo mesmo com os mais próximos, o típico arquétipo de um respeitado juiz. Fora do expediente, entretanto, permitiu-se a certas extravagâncias, como ele mesmo nomeava os jantares em restaurantes requintados ou a frequência a uma ou duas casas noturnas. Fomos, eu e minha esposa, a vários desses lugares com Ilídio e Gerusa. Também não deixamos de nos encontrar em nossas casas. Ambos eram-nos muito agradáveis; sua presença, prazerosa.

Dois anos passaram-se, até que no dia xx de fevereiro, entre 23h e meia-noite segundo a perícia, houve a tragédia: Gerusa, jovem e linda, foi morta a facadas em sua casa. Foi o próprio marido quem a encontrou numa madrugada, depois de chegar do clube de magistrados onde jogava pôquer uma vez por semana. Um rastro de suspeitas invadiu a vida até então extremamente reservada de Ilídio. Pouco tempo depois do crime, ele aposentou-se na tentativa de arrefecer o assédio que sofria diariamente. O procedimento, contudo, não amainou a voracidade da imprensa nem as pressões da polícia e posteriormente da própria Justiça. O caso, como o leitor deve se recordar, ganhou as páginas policiais dos jornais e incomodou sobremaneira o Poder Judiciário. O meu velho amigo sofreu na carne as consequências do episódio. Envelheceu em poucos meses os anos que parecia ter remoçado na companhia de Gerusa. Não saía mais de casa. Recebia dois ou três amigos, entre os quais estava eu. Não havia mais trabalho nem lazer par ele. Enfim, isolou-se.

Entre idas e vindas, o inquérito estendeu-se por quase um ano. Em sua peça, a autoridade policial apontou Ilídio como o principal suspeito, mas também alertou: faltavam provas conclusivas sobre o crime. Havia impressões digitais de Ilídio no quarto e até mesmo na faca utilizada no assassinato, mas isso facilmente podia ser contestado, afinal ele morava naquela casa, dormia naquele quarto e teoricamente poderia ter usado aquela faca muitas vezes. Entretanto, o que inviabilizou qualquer possibilidade de condenação foram os álibis de Ilídio, todos eles de respeitada reputação: eram os próprios magistrados e advogados que atuavam no tribunal e à noite dirigiam-se ao clube. Pois naquela noite, dois advogados e um promotor deixaram o tribunal ao lado de Ilídio. Os quatro entraram em seus carros e tomaram direções distintas. Foi o que, de maneira unânime, eles disseram à polícia e é o que consta dos autos: “...às 22h50, o juiz Ilídio Fagundes Tourão deixou as dependências do tribunal...” Do mesmo documento, constam os depoimentos de outros quatro juízes e promotores do clube. Todos viram quando Ilídio entrou na sala social, exatamente às 23h, que foi o horário, segundo a ata dos trabalhos, em que o presidente da associação encerrou seu breve discurso semanal. Ilídio chegou nesse preciso momento e lá permaneceu até quase duas da madrugada.

Chega a ocasião de se fazer ao leitor um importante esclarecimento: a residência de Ilídio ficava, de carro, a pelo menos quarenta minutos do tribunal. Mesmo num helicóptero, seria impossível para meu amigo locomover-se até a sua casa, entrar, assassinar sua mulher e voltar ao clube no prazo de dez minutos, tempo entre sua saída do tribunal e sua chegada ao clube. Eis o nó que o livrou definitivamente das suspeitas. O crime, cometido dentro da casa do magistrado, fora certamente levado a cabo minuciosamente pelo seu protagonista. Mas cabe ainda uma informação importante, que explica as suspeitas iniciais da polícia e que será o combustível para o epílogo desta história. As investigações chegaram a um certo publicitário cujo nome proponho preservarmos aqui. Jovem de pouco mais de vinte anos, ele estaria, na época do crime, envolvido num romance com Gerusa. Ilídio teria descoberto e, para a polícia, tramado o assassinato da esposa, o que, permita-me recordar, nunca ficou provado.

Ao cabo de treze anos após o início do episódio, chegamos ao fatídico 10 de março passado. Meu amigo, que eu visitava frequentemente no hospital, animando-o a lutar contra o câncer que lhe corroía as entranhas, mandou chamar-me numa manhã calorenta. Lógico, muito depressa abandonei toda a papelada sobre a mesa da sala que ocupo no tribunal e voei ao seu encontro. Quando entrei no quarto e o encarei, nós dois sabíamos o que deveria acontecer muito em breve. Sua face, que vinha amarelada nos últimos dias, já descoloria-se numa alvura significativa. Os aparelhos, e apenas os aparelhos, o mantinham vivo, sob uma respiração lenta e a cada segundo mais deficiente. Por um lapso, aparei as lágrimas nas costas das mãos, mas logo recompus-me diante daquele homem digno até à beira do último precipício. Permita-me o leitor apenas uma observação: minha comoção era menos pela sua morte, que àquela altura agia como um alívio, do que com sua solidão. Meu amigo Ilídio estava morrendo sem ninguém da família por perto. Confortou-me, naquela hora, acreditar que eu era sua família no instante derradeiro.

Dei-lhe a mão, ele mal a segurou. Queria dizer-me algo. Fez sinal para que a enfermeira nos deixasse a sós e, em seguida, com muito esforço, disse estas palavras: “fui eu, meu caro; fui eu...” Ao proferir essa confissão, nenhuma lágrima desceu-lhe dos olhos baços. Era a segunda vez em vinte anos que aquele velho senhor me surpreendia. A primeira, no cafezinho, ao cumprimentar-me quase efusivamente. A segunda, ali, em seu leito de morte, ao confessar um crime de treze anos antes. Diante de meu embaraço, ele me disse que não havia tempo para detalhes. Seu desejo era apenas este mesmo: partir sem o peso do crime nas costas. Um minuto antes de morrer, ele espantou-me ainda pela terceira vez: avistou-me com uma expressão cuja leveza eu nunca encontrara ali, e sorriu. Foi, então, que indicou, sobre a mesa da cabeceira, um pequeno calendário de bolso. Curioso, tomei-o às mãos apressadamente, procurando compreender o quebra-cabeças. O calendário era de treze anos antes, e um círculo feito com caneta esferográfica marcava exatamente o dia xx de fevereiro, a data do crime cometido por ele. Eu continuei, por assim dizer, a ver navios, até que meu amigo sinalizou para que eu olhasse o verso do calendário. E lá, com a letra dele, estava grafado: “fim do horário de verão”. Naquele dia, todos os relógios foram atrasados em uma hora. Pasmo, eu não sabia o que pensar. Quando voltei-me, nosso Doutor Tourão dormia sereno, para sempre é verdade, mas muito sereno.

Tags: ,

Comments are closed.