“Como dois e dois são quatro…” – Texto de Fernanda Villas Bôas

Os Alcoólicos Anônimos, a irmandade pioneira dos grupos de ajuda mútua, difundem uma frase lapidar entre seus freqüentadores: “viva um dia de cada vez”. A frase não serve apenas para quem tenta se livrar de uma compulsão, mas para todas as pessoas que precisam enfrentar adversidades, desencontros ou abismos internos pelo menos uma vez na vida. Ou seja, qualquer um de nós.

Viver um dia de cada vez também é um conceito adequado para um mundo imperfeito como o nosso. Um mundo onde imperam a injustiça social, as disputas interpessoais, as ilusões, os enganos e as más notícias. Por isso, aquela antiga filosofia de bolso - a felicidade é feita de momentos - tem uma base inconstestável de verdade e eficiência.

A felicidade, de fato, é uma obra em construção permanente. O que a completa é o empenho diário de quem se interessa por ela. Daí, a frase dos alcoólicos: “viva um dia de cada vez”, isto é, “construa sua felicidade todos os dias”, apesar dos ventos contrários.

Os dependentes em processo de recuperação precisam acreditar que a abstinência é uma conquista diária. É como a vida: viver também é uma conquista diária. Então, já que o futuro é incerto e os ventos não param de soprar, o melhor é tentar encontrar uma brisa na luta contra a maré. O resultado é bastante equilibrado: quanto maior o esforço, maior o prazer da vitória.

Num mundo dominado pelas aparências, o requinte da tal felicidade real pode ser compreendido apenas em momentos de turbulência. Nessas horas, as pessoas costumam reconceber valores e pontuar os diferentes aspectos da vida numa escala de prioridades. O curioso é que essas escalas são parecidas. Em primeiro lugar, sobressaem o amor, a amizade, a ternura e a
solidariedade. Ou seja, valores que dependem exclusivamente dos contatos humanos. Por isso, quase nunca são miragens. Podem ser tocados, cheirados, lambidos e degustados.

Apesar das armadilhas do consumo, da tecnologia e da modernidade, é melhor não ser fisgado pela propaganda enganosa: estacionar um Audi na garagem e vestir Armani para ir ao shopping pode representar muito pouco se a solidão e o desamor invadirem a alma.

As benesses concretas não têm preço, estilo nem status. Valem individualmente e podem ser encontradas em lugares tão triviais como a sua casa ou aquela festa entre amigos. A passagem imperiosa do tempo nos fornece só um lenitivo: a memória afetiva. Como é ilusório amar um tubinho preto ou um carro importado, essa memória só pode ser protagonizada pelas pessoas que amamos ou ensinamos a amar.

Ferreira Gullar é autor de uns versos contemporâneos, superoportunos para esta época de incertezas: “Como dois e dois são quatro/sei que a vida vale a pena/embora o pão seja caro/e a liberdade pequena”. Quem os recita com freqüência é a minha irmã. É um poema urbano, íntimo da crônica e absolutamente autêntico: a vida real sobrevive, sim, ao pão caro e à liberdade pequena. Porque a fome e a pressa passam, mas a poesia permanece, assim como as nossas melhores lembranças.

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