A viúva de meu pai

Às senhoras respeitáveis e às moças pudicas, aos homens hipócritas e aos meninos santos, a quem possam ferir as palavras chulas e as vísceras de minhas infâmias, a estes, e por estes, detenho-me a um passo do precipício: haverá outras leituras que causem menor incômodo. Aos outros, nada digo, senão os próprios termos de minha devassidão.

Ainda aos dezessete anos, chama-me Papai de moleque. – Ei, moleque, faça isso e aquilo. Diz-me assim como se fosse aos sete. Na sua indiferença ou entregando-se gratuitamente à ironia, vem ter comigo apenas quando é de seu interesse. Ruge como um leão neste instante para daqui a pouco mal fazer-se ouvir. Sou seu filho, mas ontem fui só um traste, e uma ou outra coisa volto a ser numa hora dessas. Não me notou a transformação, a barba bem cerrada, a voz grave, os pêlos que me riscam o torso, pois não me olha, não me ouve, vive distante de minha intimidade. Assim, sem que ele saiba, tomo-a em meus braços no começo da tarde e, no amarfanhado de meus lençóis úmidos, esquecemos da vida em meio aos regalos. Em profusão, pecamos os dois juntos até descer a noite e com ela surgir Papai, depois de um dia duro de trabalho. Bem, assim é que ele me diz. E ela a mim: – sou sua agora, e dele depois, você me almoça e ele me janta. Nisso, afunda o rosto no travesseiro e afoga na maciez seu riso ruidoso. Mas logo livra-se do sarcasmo. Lúbrica, roça em mim sua pele eriçada e em meu ouvido despeja obscenidades. Arrebata-me numa insuportável excitação e eu afundo-me em sua febre.

Nunca foi diferente, desde sua chegada. Papai a trouxe a tiracolo, sem aviso prévio. Algumas semanas antes, ele apenas avisava sobre uma certa moça que conhecera. De minha parte, pouca importância mereceu o assunto. Ele sempre vivera dessa forma. Mamãe o deixou por isso mesmo. Não suportava mais seu ímpeto extraconjugal. Mas eis que sua decisão foi mesmo juntar-se de papel passado. Ao entrar com a nova mulher na nossa casa, Papai sorriu-me desconcertado. Ocorreu-me imaginar que ao planejar sua nova vida, ele esquecera-se de minha existência. Pareceu-me que, abraçado a Suzana, tomou um susto ao deparar-se com o filho. A despeito do breve constrangimento, contudo, ele logo se recompôs, fazendo-me conhecê-la e, desde aquele instante, perder-me em intenções inconfessáveis. Debaixo de cabelos bem negros, Suzana esticou o braço e cumprimentou-me com ar indiferente, preocupando-se mais em observar a sala de estar que se abria espaçosa e confortável ao seu redor. Procurei afastar-me do turbilhão de pensamentos ruins que maculavam desde cedo aquela relação, mas não me foi possível deixar a surpresa de lado ao vê-la tão jovem perto de seu marido, que já tinha ultrapassado os cinqüenta anos fazia um bom tempo. Suzana, por sua vez, não aparentava mais que vinte e cinco ou até menos. Talvez Papai fizesse mesmo jus a todos os impropérios que saíam da boca de Mamãe naqueles últimos dias, antes de se separarem.

Passaram-se várias semanas em que Suzana mal dirigia-me a palavra, sempre ocupando-se com mudanças dentro de casa. De manhã, vinham vidraceiros, à tarde, os marceneiros, no outro dia, uma florista, dali a pouco, um eletricista. Eu saía para o colégio e, ao retornar, algo havia sido alterado. Se eu tivesse viajado durante um mês, não reconheceria minha própria casa quando voltasse. Tudo foi modificado, menos meu quarto. E ao deter-me nessa verdade, intriguei-me. A mulher de meu pai parecia não se sentir à vontade comigo. Com essa possibilidade tumultuando minhas idéias, novamente despencou sobre mim a sensação aflitiva de quando a vi pela primeira vez. Uma mistura de desejo e culpa consumia minhas forças e já prejudicava até mesmo meus estudos. A cada dia, tornava-se mais difícil pegar no sono. Suzana preenchia minha mente de maneira doentia. Por dias seguidos, tentei livrar-me desse redemoinho que me tragava sem dó. Marcava programas com meus amigos, tentava namorar com freqüência, trazia livros extras para tomar meu tempo. O caso, porém, era que nada disso funcionava. Nas rodas de conversas, eu quase nem mesmo ouvia o que diziam os outros, a ponto de começarem a desconfiar que algo de errado acontecia comigo. Quando me encontrava com uma garota, era Suzana quem me aparecia diante dos olhos. Os livros eu nem os abria. Suportei essa miséria por dois ou três meses, à beira de um colapso nervoso, até que um dia houve o inesperado.

Foi no dia 22 de setembro, eu jamais poderei me esquecer, não porque fosse meu aniversário, mas pelos contornos do episódio. Depois de comemorar até altas horas da noite com meu pessoal de escola, cheguei em casa pisando muito leve. Embora Papai nem mesmo tivesse se lembrado de mim naquele dia, as coisas poderiam complicar-se caso ele me surpreendesse num estado pouco recomendável para minha idade, se é que uma situação assim, de certa embriaguez, possa ser adequada a qualquer idade. Então, abri o portão da rua como quem tira uma taça de cristal do armário, e em seguida equilibrei-me o mais que pude para girar sem ruídos a chave da porta da frente. Tudo transcorreu como eu precisava. Atravessei a sala em silêncio, aproveitando-me da luz que penetrava da rua, e, ouvindo nitidamente Papai guinchar num ronco contínuo, cheguei são e salvo em meu quarto. Mais sossegado por saber de Papai tão profundamente adormecido, despi-me e, como sempre o fazia, enfiei-me nu sob as cobertas. Levemente entorpecido pelo álcool, estava quase dormindo quando senti a maçaneta da porta girar. Procurei permanecer imóvel. Certamente, seria Papai conferindo se eu tinha chegado. Vendo-me aparentemente em altos sonos, não haveria motivo para queixas eventuais. Com os olhos fechados, retive-me no movimento da porta, que logo pareceu ter sido fechada outra vez. Antes, porém, que eu me certificasse de que Papai já tivesse ido embora, ouvi nítidos passos sobre o tapete do quarto. Eram passos muito leves, e eles fizeram meu coração disparar até que eu me sentisse ainda mais tonto, temendo tantas coisas. Suzana escorou-se à beira da cama, enquanto, num ímpeto incontrolável, eu sentei-me sobressaltado junto à cabeceira. Devagar, ela levou uma das mãos à minha boca, enquanto a outra enlaçava-me pela cintura. Num segundo, o rosto dela estava colado ao meu, eu podia ver o desenho de seus lábios na penumbra. Ela apenas roçou a boca na minha, movimentando todo o corpo adiante, até encostar os seios rijos em meu peito. Nisso, abraçou-me com mais força, a boca colada ao meu ouvido. Eu não me mexia, os nervos travados. – Eu sei o que você quer. Sussurrando-me isso, afrouxou o abraço e deslizou a mão até minha coxa, fazendo-me tremer. Com um leve toque, afastou o lençol que me cobria da cintura para baixo. Então, chegou onde decerto juntava-se todo o sangue que me faltava ao organismo. E assim, sentindo-me latejar na pele macia de sua mão, subjugou-me às suas vontades. Uma onda de imobilidade invadiu-me os nervos. Talvez por um sentimento antecipado de culpa e o horror de estar na cama com a mulher de Papai. Ou quem sabe porque ela controlava a situação de um jeito em que eu poderia imaginar as cores do paraíso. E assim eu as imaginei, gozando o passeio daquelas carícias até inundar-me de prazer, e ainda por cima sob aquelas palavras repetidas: - Eu sei o que você quer.

Eu a queria, ela sabia. Mas não foi nessa noite que eu a tive de maneira completa. Só no dia seguinte é que, já íntimos, desfrutamos de nosso vigor juvenil tão logo cheguei do colégio. Papai almoçaria fora e nós dois nem pensamos nesse tipo de fome naquela hora. Eu mal havia entrado em casa quando ela surgiu detrás de uma porta qualquer. A visão daqueles trajes tão minúsculos deixou-me boquiaberto. Eu não a tinha visto assim antes. Estivemos apenas no escuro. Meu Deus, eu a queria ali mesmo, nem me importei saber se Papai almoçaria fora ou não, eu a queria agora. Suzana percebeu meu desejo desesperado e, para judiar-me, pôs-se a correr pela casa, dando gritinhos, fugindo de minha vontade. Fui me despindo enquanto tentava agarrá-la, e ela sorria, depois gargalhava. – Que engraçado é ver você correndo nu. Ela dizia-me isso e ria sem parar. Enlacei-a num canto e, debatendo-me com pés de mesa e cadeiras, pude dominá-la com força, ao passo que ela gemia desferindo palmadas contra meu corpo. A cada novo tapa, meu vigor crescia. – Me almoça, benzinho, me almoça! Suzana cochichava-me essas palavras. – Você me almoça e ele me janta! E essas também.

Eis o tempo avançando, e Suzana pontificando-se sobre meu ser. Às vezes, sento-me com Papai e sua mulher para o desjejum, noutras, para o jantar. Mas antes que a febre de meu ciúme torne-se minha asfixia, retiro-me sob uma desculpa qualquer. Ferra-me nessas horas a mais terrível das ânsias, desejo uma paz cuja distância de minha vida progride a cada dia. Toma-me a amálgama sombria, prenúncio da ruína. Penso em desviar-me da hipnose que me atrai irresistivelmente para a perdição. Esta desdita compara-se à fome que, morta com o alimento, parece-nos perfeitamente controlável, mas só até que venha outra vez o poder insaciável de sua voz silenciosa e autoritária. Sinto-me assim, como um glutão que se compraz durante o saboreio dos manjares e cuja consciência ressurge a cada intervalo de seus banquetes para acusá-lo, para fazê-lo sofrer, lembrando-o a todo instante sobre o pecado que cometeu. Tão logo Suzana afasta-se, meus nervos todos integram-se à torrente de culpa. Minha súplica não se entrega à hesitação. Desejo apagar tudo que se passou entre nós, olhá-la apenas como a mulher de Papai, voltar-me à minha vida, aos meus estudos, a tantas coisas que me esperam lá fora. Decido-me a partir. Numa tarde em que não há alma viva em casa, telefono para Mamãe. Vou morar com ela, proponho. Ela mal contém a satisfação, diz que prepara meu quarto em uma hora, arranja-me cópias das chaves, pergunta-me do que preciso. Nada, eu respondo. Só preciso de paz. Faço minhas malas com a força de um arrebatamento inexplicável, deixo para outra hora o aviso a Papai, a quem uma justificativa qualquer certamente agradará. Talvez só amanhã ou mesmo daqui a dois ou três dias é que ele dê pela minha falta. Num lapso, vem-me à memória a única brincadeira da qual Papai participou em toda minha vida: quando criança, eu tinha um caderninho onde anotava quantos dias ele ficava sem beijar-me, sem falar-me, sem ver-me. De mês em mês, eu esperava pelos novos recordes, como numa gincana, como numa triste competição. Brincamos muito disso, mas ele nunca soube. Agarro as malas com mãos decididas, desço as escadas que levam à sala de estar, abro a porta da rua e, tão depressa como vou saindo, preciso novamente entrar, empurrado, dominado, desejado por ela. Suzana, por coincidência ou destino, retorna da rua. Antes de compreender a cena, arranca-me a camiseta e seus lábios úmidos percorrem-me o corpo. A porta fecha-se atrás de seus cabelos cujos fios já enchem minha boca ávida por colar-se à dela. – Eu sei que você me quer. Suzana arfa em meu ouvido. – Você não ia embora, ia? Você não ia embora, ia? Sua pergunta, em tom queixoso, faz entregar-me àqueles braços quentes. Em segundos, dissipam-se minhas intenções de fuga. Sobre as malas depostas, matamos a fome um do outro.

Às pressas, antes que seja a hora de Papai chegar, deixamos a casa em ordem. Ela mesma, como mãe zelosa, devolve minhas roupas e a mala ao armário. Despede-se com um beijo e, divertida, sem que eu possa ter tempo de defender-me, empurra-me com força e joga-me à cama. Lá eu fico, calado. Nada disso, contudo, é capaz de subtrair-me o impiedoso sentimento que se sucede aos nossos encontros. Outra vez, dentro de minhas veias, corre um sangue envenenado. Penso que amanhã terei coragem de levar a cabo o plano malogrado agora há pouco. Mesmo diante de Suzana, dessa vez não haverá circunstância a me deter, nem olhos suplicantes ou palavras arrebatadoras. Deixarei para trás o motivo de minha dor, mas também o de meus mais felizes prazeres. Esse aspecto, entretanto, não me faz hesitar: o preço de meus felizes prazeres é alto demais para minhas possibilidades. Desço para o jantar, Papai já está à mesa. Jornal à mão, concede-me um breve sorriso, que só eu posso perceber. Suzana traz, do microondas, a comida deixada pela empregada. À cabeceira, Papai abandona a folha para comer. Antes, sorve de uma só vez uma taça de vinho. Sentamo-nos, eu e Suzana, um de cada lado, frente a frente. Eles falam sobre frivolidades, minha cabeça pesa um pouco. Levo duas ou três porções à boca, tomo um copo d’água e depressa digo que preciso estudar. Mas, para minha surpresa, Papai pede-me que fique um pouco mais, há algo que ele quer me dizer. Então, na boca de meu estômago, uma pedra de gelo parece empurrar as paredes para os lados, imprimindo-me uma sensação desagradável de medo, aliás, de terror. Não me lembro de algo parecido em meus dezessete anos. Nunca Papai se importou se eu estivesse ou não à mesa. Nunca houve o que me dizer. Um mundo de conjeturas invade-me a alma, enquanto ele termina tranqüilamente seu prato. Suzana abaixa a cabeça, sem me dar a menor atenção, sem ter a preocupação de me dirigir sequer um olhar de sossego. Involuntariamente, comprimo tanto minhas pernas que elas iniciam um processo de dormência. Papai larga os talheres, acaba de mastigar o último pedaço de torta e antes de olhar-me, ainda detém-se a um largo gole de vinho. Só então resolve falar-me. Sinto como se meu estômago estivesse tomado por labaredas, e minhas pernas estão mesmo dormindo. Papai começa assim: - Moleque, faz quase um ano que Suzana chegou. Quando essas palavras saem da boca dele, eu posso ver sua língua rubra tingida pelo vinho roçando nos grossos pêlos de seu bigode. Fixo-me nesse detalhe por puro pavor. Ele teria descoberto tudo? Antes que eu possa aprofundar-me nesse sofrimento, entretanto, ele explica a finalidade da conversa. Ele quer que eu me torne instrutor de natação de sua mulher. Apenas isso. Primeiro, uma onda de alívio tão grande percorre-me o corpo que eu tenho a sensação de levitar. Se não me contenho a tempo, levo as mãos ao assento da cadeira para segurar-me. Nisso, vejo nos lábios de Suzana um sorriso de malícia, e depressa recordo-me de ter-lhe dito, enquanto nos consumíamos num de nossos pecados daqueles dias, que meu fôlego deve-se ao esporte que mais gosto e mais pratico: a natação. Neste momento, minhas pernas já formigam e, junto com a evolução de meu alívio, vão acordando aos poucos. Então, sinto nitidamente que, por entre minhas coxas, um dos pés de Suzana vem pressionar-me o sexo. O sorriso amplia-se em seus lábios, o rubor decerto enfeixa-se em minha face, mas Papai já se levanta e o pé num segundo também já se foi. Detenho-me ainda por alguns segundos, até que o resultado da carícia de Suzana desapareça sob minha bermuda. Quando vou me levantar, ela disfarça ao meu ouvido: - Já pensou em nós dois na piscina?

Em minhas noites, sucedem-se horas de angústia. Os dias correm sem que a hesitação abandone minha mente. Durante o tempo escasso em que recobro o juízo, invade-me a certeza de que minhas forças diluem-se em meio à nossa infâmia. Envergonhado, creio ter-me acomodado a esses prazeres inomináveis. Se um dia, apenas um dia, ela me deixasse, talvez eu pudesse reagir, mas suas vontades são inesgotáveis. Agora, ela espera-me à porta. Minhas férias começam e junto com elas, o “curso” de natação. Enquanto a pequena piscina de casa é reformada, usamos o clube. Ela dirige o carro. Vou ao seu lado, como um menino comportado. Tão logo chegamos, uns conhecidos dispensam olhares curiosos, mas logo distraem-se ao saber que se trata de minha madrasta. Em seguida, o irmão de Papai, que já goza de sua aposentadoria, vem ao nosso encontro. Os dois irmãos não se bicam, mas ele nunca me desprezou. Como faz sempre que nos vemos, põe um beijo em meu rosto e justifica-se perante o ócio. – Depois que sua tia se foi, vivo por aqui... Apresento-lhe Suzana. De início, ele faz cara de surpresa, mas logo percebo-lhe a dissimulação. Decerto, acompanha por terceiros a mais recente aventura de Papai. De qualquer maneira, trata-nos com gentilezas. Testemunho também que Titio observa atentamente a nova cunhada, enquanto ela apenas sorri. Vamos para a piscina e começo a orientá-la, mas logo escapam-lhe detalhes que me fazem suspeitar de suas mentiras. Prego-lhe uma peça e fico com a certeza de que ela sabe nadar. Sou apenas um joguete em suas mãos. Ela quer apenas alimentar suas fantasias. Então, quando há pouca gente próximo à piscina, decido vingar-me. Sem que ela perceba, livro-me do calção de banho e ali mesmo, enquanto estamos escondidos pela água, tomo-a a força, ocupando-me de machucá-la por trás, violentando-a de maneira a não chamar atenção, mas assim mesmo invadindo-a abruptamente, e quando a viro para mim, seu rosto expressa apenas um ar lascivo. – Quero mais. Diz essas duas palavras e caminha rumo aos vestiários, para onde também marcho em seguida, como um soldado que cumpre seu dever.

Numa noite dessas, a convite de Suzana, saímos para as compras de Natal. Papai diz estar cansado e fica em casa. Ao voltarmos, já está dormindo, mas, contra todos os meus anseios desta noite, ela deixa-me sozinho e também vai deitar-se. Demoro a pegar no sono, o desejo queimando-me as entranhas, a necessidade de saciar meu vício põe-me à beira da loucura. Nem sei quanto tempo rolo para lá e para cá, até que adormeço em meio a sonhos turbulentos. Estou numa piscina tão extensa que não se enxergam as bordas, tento chegar à margem, mas não a alcanço, debato-me desesperadamente, aos poucos falta-me o ar, nado sem direção, e quando menos espero, uma mão vem ao meu socorro, erguendo-me da água e permitindo-me respirar. Nisso, acordo e Suzana está ali, em minha cama, salvando-me do pesadelo. Agito-me numa sensação de surpresa e excitação, ela me acaricia. – Você me protege? Você fica comigo? Essas palavras saem pesadas naquela voz rouca, e eu as interpreto como mais uma de suas milongas. Faminto, puxo-a para mim, enlaçando-a sob meu corpo. E ela repete: – Diz que me protege, que fica comigo? Eu a protejo, eu fico com ela, mas antes quero outra coisa, antes quero matar minha fome incontrolável. Com violência, rasgo-lhe a camisola, seus peitos saltam macios para dentro de minha boca, debaixo de minhas coxas as dela se fecham, ela parece querer desvencilhar-se: - Não, espera! Agora não! Mas eu não tenho tempo para nada, forço que me aceite e num instante penetro depressa em sua hesitação infantil, o que me torna ainda mais voraz. – Vem, então, se você quer! Toma o que é só seu agora! Em meu apetite, já sentindo o tremor do prazer apossar-se de todo meu ser, mal posso ouvi-la, mas esta última frase ecoa em meu pensamento. Sem poder compreendê-la melhor quando todas as minhas forças vão jorrar dentro dela, apenas repito: - Só minha, só minha, agora é só minha! Nisso, à penumbra da frágil luz que vem de fora, e suspendendo o torso numa contração natural dessas horas, diviso seus olhos cheios de lágrimas. Ela me encara: - Sou só sua agora, Papai está morto! Não posso mais estancar a onda que rebenta em mim. Entro tanto em seu íntimo que a faço gemer forte e até mesmo gritar. Num instante, meus sentidos cobram-me a explicação, e Suzana não se furta: - Não sei o que aconteceu. Acho que ele morreu dormindo. Num salto, ponho-me fora dela. Vôo para o quarto de Papai. Sim, lá está ele enrijecido pela morte. Levo as duas mãos à cabeça, enquanto seus olhos ainda abertos parecem mirar minha nudez. Meu Deus, penso, estou pelado, ainda molhado pela traição a Papai, diante de seu corpo que jaz inocente de minha desonra. Suzana vem abraçar-me por trás. Ela também está nua. Estamos nus os dois; nossos corpos, assim como nossas almas, devassados.

Em meio às palavras ditas de forma lenta e sob aquela irritante tonalidade do respeito fugaz, corre o velório. Num canto, recebo os pêsames de amigos e conhecidos. Só uma coisa, entretanto, retém-me a atenção, e trata-se de Suzana. À beira do caixão, vestida de preto, suas mãos percorrem as de Papai. Tenho nojo da cena, desvio o olhar para as pessoas que vêm falar-me, mas logo, como num movimento espasmódico, pego-me novamente preso à sua imagem, aos seus cabelos muito pretos e aos seus olhos incandescentes. Em intervalos regulares, ela procura-me pelo salão. Não consigo encará-la aqui. Uma lâmina de fio cortante desloca-se dentro de mim lembrando-me insistentemente de meu imperdoável delito. Mamãe chega e concede-me um abraço forte. Neste momento, sou capaz de chorar e contar-lhe tudo, só a ela, dividindo assim o peso do fardo que carrego sozinho. Enquanto a abraço, cresce dentro de mim a aversão por Suzana. Retorna-me à mente sua face molhada em minha cama, sua expressão doentia ao dizer-me da morte de Papai enquanto nos consumíamos em nossa tragédia. Agarro-me ainda mais a Mamãe, ela deixa-se entregar ao meu sofrimento. Sou tão forte agora que seria capaz de rejeitar Suzana nua numa hora do mais poderoso desejo. Aos poucos, Mamãe afrouxa seus braços, sentamo-nos os dois para velar Papai. As duas não se falam durante o tempo todo. Quando o enterro sai, Suzana procura-me com os olhos, eu lhe nego os meus. Sigo junto com Mamãe. No cemitério, não posso mais fugir. Ela aproxima-se e queixa-se de minha indiferença. Digo qualquer coisa e logo todos nos retiramos. À noite, em casa, há alguns parentes de Suzana, o que naturalmente impede qualquer investida da parte dela. De meu lado, a repulsa só faz crescer. Penso mesmo como pude deixar-me levar por tal ignomínia. Uma onda de pavor trespassa-me a alma quando penso naquelas últimas juras: - Sou só sua agora! A simples idéia de juntar-me a ela causa-me um desespero tal que busco refúgio ao telefone. Ligo para Mamãe e aviso que me mudo agora mesmo. Assim, sem que Suzana e seus parentes percebam, faço minhas malas no meio da noite e vou-me embora. Retomo minhas amizades, saio com uma ou outra namorada, deixo Suzana para trás, recuso-me a atender seus telefonemas cifrados, evito-a o mais que posso, embora no fundo de minha mente ela ainda esperneie.

Faz seis meses que Papai morreu. Mamãe chama-me ao escritório: - Você viu que pouca vergonha? Diz isso e entrega-me um envelope, mais precisamente um convite de casamento. Suzana vai se casar com nada menos do que Titio, o irmão de Papai. Surpreendo-me com minha própria reação: recebo a notícia com indiferença. Para não causar suspeitas sobre meu passado, que procuro enterrar um pouco a cada dia, acompanho Mamãe à igreja, onde Titio faz questão de casar-se. Aguardamos pela noiva, que logo entra trajando um vestido bastante discreto, como pede o bom senso. Estamos pela metade das fileiras de bancos e conforme ela avança a passos lentos rumo ao altar, meu coração acelera o ritmo das batidas. Procuro desviar o olhar de sua imagem, mas uma força maior parece fazer-me avistá-la a todo custo. Nitidamente, ela esforça-se por encontrar-me entre os convidados e quando o faz, esboça aquele sorriso onde a malícia e a inocência são capazes de misturar-se pacificamente. A essa altura, não posso mais distinguir se meu coração bate ou se está em suspenso. Um súbito tremor arrebata-me e eu preciso apoiar-me à madeira dos bancos. E isso parece fazer-me recuperar a noção das coisas. Embora, quem sabe por respeito ao morto, eu tenha me recusado a seguir em minha lúbrica relação com a viuvinha de Papai, seria a mais pura inverdade se eu dissesse que não vou me encontrar novamente com a mulherzinha de Titio.

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