Notícias para distrair

O entregador de jornais que visita diariamente os portões das residências dos senhores Sepúlveda, à direita, e Magno, à esquerda da casa abandonada da rua Santa Luzia, é um sujeito curioso. Ao atirar o jornal quintal adentro, desfere dois tapinhas rápidos numa das pernas entre uma entrega e outra, e, à medida que ouve cada ruído causado pela queda do papel, emenda um desajeitado sinal da cruz. Ele é curioso por essas excentricidades, mas também, e principalmente, pelo fato de considerar que todas as notícias são para distrair. Em vez de perguntar se o leitor de sua região já leu o jornal hoje, ele prefere saber da distração. Então, Seu Sepúlveda, já se distraiu? E o senhor, Seu Magno, gostou da distração? Pois bem, esse rapaz ainda bastante jovem, como quase todos os jornaleiros, passou outro dia por maus bocados.

Vinha ele já pela rua Santa Luzia, composta de cinco quadras espremidas entre duas importantes avenidas, mas ao mesmo tempo de pouco tráfego e muito pacata por estender-se em área estritamente residencial, quando o aguaceiro que ameaçava desabar desde o meio da noite interveio pesado na madrugada. Os exemplares encontravam-se devidamente metidos em saquinhos plásticos. Dentro de seu esmero, Vital, este é seu nome, sentiu-se tranqüilo ao certificar-se do cuidado extra adotado pela empresa. Seu trabalho não seria prejudicado, nem seu nome enlameado, embora suas botinas, sim. A chuva parecia querer alagar tudo à sua volta. Já inteiramente ensopado, Vital procurou proteção sob a marquise de uma das casas que, no início daquela rua, cola-se ao passeio. Ali, com os jornais cobertos por uma lona, ele manteve-se por alguns minutos, esperou, por assim dizer, o que dava para esperar, pois com ou sem chuva as pessoas aguardam sua distração diária, pensou.

Eram quatro e meia. Vital havia permanecido sob o abrigo precário menos do que cinco minutos, mas para sua paciência, para seus hábitos matinais regidos por segundos, a impressão era de que o mundo já teria tido tempo de transformar-se. Releu as letras garrafais que, dentro do saquinho plástico, tratavam da criminalidade fora de controle. Também correu os olhos sobre a notícia cujo teor era o crescimento dos índices de desemprego. A distração está boa hoje, raciocinou de leve, lembrando-se também de outras manchetes que lera há pouco numa banca, a maioria explicando crimes, miséria, os juros altos... A ansiedade trespassou-lhe o espírito. Saltou sobre a moto e não haveria chuva que pudesse detê-lo. O temporal, embora mais ameno, ainda chicoteava-o nas costas. À água, passava a aliar-se o zunido de um vento horrível. Mesmo assim, Vital pôde ouvir o primeiro exemplar atirado chocar-se contra a porta de ferro. Seu semblante endureceu, a mão bateu duas vezes na perna e logo subiu à fronte para tascar o sinal da cruz.

A casa vazia entre os senhores Sepúlveda e Magno fica no extremo oposto da rua. Há coisa de cinco ou seis meses, a família mudara-se para outra região da cidade. O jornal anteriormente levado por Vital passara aos cuidados de um novo entregador. Não se sabe bem o porquê, mas o caso é que naquela madrugada invernal, de chuva, vento e raios capazes de atordoar, nosso amigo cometeu um equívoco, algo como um ato falho. Ao entregar o exemplar do Seu Magno, cumprir com seus hábitos de sempre e dirigir-se alguns metros adiante, onde atiraria o do Seu Sepúlveda, Vital atrapalhou-se entre as batidas na coxa e o ritual religioso, arremessando também um jornal na direção da casa abandonada, rumo à varanda entulhada de bugigangas e onde samambaias e outras folhagens pareciam ter encontrado uma morada segura. Pois sim. Não demorou um segundo para que ele, tão diligente em sua atividade, percebesse o ocorrido. Após livrar-se da última encomenda, dirigida à porta do Seu Sepúlveda, fez meia-volta e estacionou a moto diante do portão cujos trincos emperravam pesados e enferrujados com a falta de manuseio. Que bobagem a do Vital! Ele, como outros colegas, sempre carregam alguns exemplares a mais para situações como aquela, mas, tendo já finalizado seu trabalho, o que custava dedicar-se um tanto mais? Afinal de contas, o jornal iria amanhecer, talvez por vários dias seguidos, sem que ninguém lhe oferecesse uma mão amiga e principalmente os olhos a correr-lhe as páginas, distraindo-se em meio às suas notícias. Foi o que matutou Vital ao desvencilhar-se do trinco e seguir em direção ao amontoado de plantas e à escuridão onde jazia a pobre folha.

Mas eis que, ao aproximar-se do local onde o jornal havia caído, já dentro da varanda que contornava em L a casa vazia, Vital desconfiou de qualquer coisa estranha. Ele não sabia do que se tratava. Do modo que ao menos uma vez na vida nos ocorre de imaginarmos uma companhia sem, no entanto, poder visualizá-la, foi assim que Vital sentiu-se. Porém, da mesma maneira que a princípio, por um segundo que seja, nós procuramos afastar de nosso encalço uma idéia desse gênero, o entregador de jornais também tentou agir sob a voz da razão, pois se não via ninguém diante de si ou mesmo em redor, o que poderia temer? Com esses pensamentos, arriscou-se dois passos à frente, onde divisou por entre folhagens e demais plantas do jardim que avançavam construção adentro, trançando-se num sem número de brotos e folhas, o pequeno invólucro de plástico jogado no piso. Vital, então, desemaranhou-se dos primeiros cipós para alcançar o jornal, mas ao chegar mais próximo, mesmo na escuridão do quintal deserto, percebeu que o plástico ficara vazio de repente. Um frio subiu-lhe pelas entranhas e veio somar-se à pele gelada pela chuva que seguia firme em sua cantoria. Sim, ali, no interior da varanda, enlaçado pelas plantas, ele tinha a impressão que vinham lá de dentro da casa vazia como que notas de um triste cântico embalado pelo murmúrio de constantes goteiras. Outra vez, enquanto por um lapso perdeu o controle dos movimentos, teve a nítida sensação de não estar só. E um segundo depois, exatamente quando conseguia debelar parte de seu pavor, podia jurar, não sabe de onde, ter ouvido sair aquelas palavras de sons entrecortados e guturais: queremos nos distrair...

Enquanto desenlaçava-se daquelas malditas plantas que pareciam envolvê-lo tanto mais ele movimentava-se, Vital também jura ter visto desaparecerem lentamente na extremidade da varanda oposta à sua, onde só havia o breu, um par de luzes rubras, tais como dois olhos. Ele jura, mas isso já é uma outra história. Esta acaba com o entregador de jornais sobre sua moto, correndo com o terror ao seu encalço, avançando em disparada rumo à banca mais próxima, no meio da chuva e dos raios, cortando os ônibus apinhados de operários e os primeiros carros que trafegam em direção à manhã cinzenta, arriscando-se em alta velocidade, desejando livrar-se do arrepio que o toma inteiro por debaixo dos trajes ensopados, mas mesmo assim impondo-se apenas um pensamento, permitindo que só uma idéia habite sua mente, nada mais do que as manchetes que lera naquela madrugada: a corrupção, a criminalidade, os assassinatos, os elevados índices de miséria, os altos juros. Preciso me distrair, essas coisas me distraem, ia pensando Vital, atendo-se às notícias do jornal para esquecer do medo encerrado na paisagem desoladora daquela casa vazia.

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