Quando morrem as pedras

Leu num pé de página qualquer, com o corpo dobrado em cima do balcão engordurado da padaria; leu e na mesma hora sentiu com certo assombro um tipo de chamamento ou, como ela costumava dizer sempre que era afetada por acontecimentos inesperados, teve uma palpitação, Tutinha, mas uma palpitação que só vendo!

Ah, já disse que vou, sua boba, não está ouvindo direito? Onde? Como assim, onde? Preciso explicar de novo? Você não se lembra quando passamos em frente naquele dia depois do? Isso, lá mesmo. Bom, se quiser, claro que pode ir. Não é uma pena o que vão fazer? Olha aqui, se for para se comportar assim, com esse desdém, é melhor me deixar sozinha, eu sei muito bem me virar! Tá bem, tá bem. Então tá bem.

Foram depois do almoço. Saíram da avenida rasgada pelo extenso canteiro de flores sofridas e desembocaram, primeiro, numa rua de comércio movimentado, com placas nas calçadas, gente apressada e carros buzinando; depois, dobraram mais duas ou três esquinas, e o vento úmido que a chuva deixara em seu rastro recebeu-as com alvoroço, atirando-lhes através dos vidros entreabertos um cheiro denso de lixo acumulado nas sarjetas e de fumaça das chaminés de duas velhas fábricas decadentes cujos fundos margeavam o bairro.

Ai, ai – tirou o lenço branco da bolsa e enxugou o que Tutinha pensou ser uma lágrima rala. – Olha lá, ai, me dá uma palpitação – apontou para algum lugar à frente, onde o asfalto confundia-se com a lama e as calçadas, com o mato alto. – Já começou – balançou a cabeça duas ou três vezes. – Já começou,Tutinha.

- Mas o que você esperava? Eu disse para não vir!

Calada, hein? Você não tem sensibilidade nenhuma. Foi aqui. Pararam o carro no meio da rua, numa placa de alguns metros quadrados de asfalto visível. No terreno, amplo e desolado como um pequeno cenário de guerra, as paredes de construções que um dia haviam sido casas enfileiravam-se, juntas e manchadas pelo musgo e pela saudade, por pelo menos meia quadra. Por entre os cadáveres inumanos, uma máquina agarrava com estardalhaço os pedaços do passado remoto. Alguns homens montavam andaimes para retirar as poucas telhas que restavam.

Achou que pensava, mas por um instante considerou que acontecia novamente, de verdade, sabe, Tutinha? – Está vendo aquele muro? Era um muro entre árvores e nosso cortiço – olhou para a outra para certificar-se de que não seria objeto de zombaria. – Sim, foi minha primeira vez – voltou-se na direção do cansaço do muro cuja aparência lembrava um corcunda deitado. – Mas não só do jeito como você pensa, porque hoje vocês pensam tudo errado!

De que você está rindo, Tutinha? Não há vergonha, meu bem. Nenhuma! Ele me ergueu, eu apoiei as costas no muro e foi assim que as coisas aconteceram. Mas, sabe? – levou o indicador à boca, o olhar tão perdido quanto tudo que se podia ver no velho terreno do cortiço. – O que me marcou de verdade não foi o que você está pensando – retrocedeu dois passos na direção de Tutinha, mas parou e, quase no meio da rua, avistou novamente toda a área que começava a ser demolida para dar lugar a um condomínio popular. – Foi o beijo, foi o que me fez sonhar com um amor de verdade, eu ainda acreditava, ai, ainda me dá uma palpitação, que boba eu sou – botou as duas mãos na cintura e apertou o farto vestido espalhafatoso que por sua indiscrição encobria-lhe o corpo judiado, engordado e decaído.

- Faz tanto tempo! Vamos, deixe isso pra lá, já era!

Não brinque com o tempo, Tutinha! Você ainda não aprendeu que ele é tipo uma faca com dois cortes, entende? Ele passa, mas não passa, sabe? – ainda estava na mesma posição, de costas para a amiga, as mãos apoiadas no largo quadril, as narinas abertas farejando todos os tempos passados e futuros. Permaneceu ali, calada, e parecia que a máquina e os homens agora trabalhavam em silêncio, e que os pássaros tinham deixado de cantar, e que só o cachorro que lhe lambia o tornozelo causava o único, o mais ínfimo ruído que se pode ouvir numa tarde nublada de completa destruição.

- Você está bem? Está com palpitação outra vez?

A amiga havia se aproximado e segurado seu braço com cautela. – Se estou com palpitação? Parece que estou emprestada, Tutinha. Parece que minha cabeça está emprestada a pensamentos que não são meus, que são de alguma outra, uma desconhecida, uma que está pensando na minha cabeça, uma que não sou mais eu – pensou num efêmero instante ter reconhecido a si própria numa janela próxima, mas com a mão fez um gesto de desânimo que não, não viu nada.

- Vamos? Vamos, meu bem!

Sob o chiado de um rádio que vomitava a voz do pastor expulsando os demônios do mundo, dois ou três operários, já sobre o andaime que haviam acabado de montar, atiraram contra elas as gracinhas sem melodia de sempre. Intercalavam as bobagens gastas e as gargalhadas robustecidas pela ignorância sem prazo de validade, tiravam telhas e arrebentavam paredes como se usa um pedaço de papel higiênico.

Mas, ambas de braços dados feito personagens caídas de uma ficção sem sentido, nenhuma das duas ouviu as obscenidades que reverberavam e depois caíam sem destino sobre todas aquelas pedras mortas.

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