Sou um homem que tem saudade

Sou um homem que tem saudade.

E aviso desde já que não me encaixo na convicção daqueles que dizem não me arrependo de nada. Pra mim, isso é apenas conto de fada.

Sim, me arrependo de quase tudo!

Tenho remorso e culpa. E se não me considerassem louco acho que sairia por aí pedindo desculpa. Por um monte de coisas que fiz e me arrependo. Coisas de todos os gêneros, de todos os graus, de todas as idades. Mas mesmo assim sou um homem que tem saudade.

Saudade de quase tudo!

Até de um tênis velho que furou e de uma bermuda que manchou eu tenho saudade. Saudade de coisas bobas. E das outras também. Do pai e dos avós. De todos os cafundós. Dos primos e dos arrimos, das folhas e das bolhas, dos bichos de pé. Dos tios e dos rios. E das chuvas até.

Tenho saudade!

Da primeira vez que ouvi Skyline Pigeon do Elton John. Eu carrego até hoje no peito o que senti daquela vez, quando eu não sabia nada de inglês. Do balanço e da mangueira. E sabe aquela desconhecida coceira? Pois é. No carro e até em pé, tudo dá saudade, não é?

Tenho saudade!

Da Kombi e das Variants, do Fusca e da Brasília. Não sei por que, mas quando vendi um Corsinha mil com muitos quilômetros, cento e noventa mil, também tive saudade antes mesmo de sair da garagem, antes mesmo de esconder a lágrima que rolou quando o vendedor disse o negócio fechou.

Tenho saudade!

Dos amigos distantes e de todos os nossos dias marcantes. Dos jornais, das redações e televisões, do rádio, das matérias e até das férias eu tenho saudade. Das aulas em Catanduva e daqueles dias em Guaratuba. De Sorocaba e São Paulo, Rio Preto e Jundiaí, uma vontade de estar aí.

Tenho saudade!

Até de ter saudade. Às vezes, faz dias que não tenho saudade e assim me arrependo, sinto o remorso moer-me a alma e então com toda a calma
digo assim aqui para mim olha, o que passou não volta, e aí é ela que volta
com toda a força bruta de mil batalhões que a lembrança funda recruta.

Sou um homem que tem saudade.

Do olhar do meu cachorro que num certo dia desapareceu sem deixar rastro. E que depois eu dei como desaparecido político. Porque ninguém viu para onde ele fugiu. Reviramos a cidade toda à sua procura, Joãozinho, saiba disso por todo o sempre e até que, sei lá, a gente se encontre de repente.

Tenho saudade!

Dos Bee Gees no jardim e das farras sem fim. Da cama desarrumada e da sua unha carmim. Dos discos voadores que vieram e das assombrações que não eram. E também daquele Simca Chambord. Naquele tempo, a ligação espontânea com toda a fantasia trazia um quê de cutânea, quase todo dia.

Tenho saudade!

De certo coqueiro. De todas as árvores de uma vida. Mas especialmente de um jasmineiro. Há noites em que sonho tanto e no fim das contas o que fica é seu cheiro. Das aventuras de Dom Quixote e de quando eu botava minha filha no joelho para passo e trote, uma tal felicidade cuja pureza ainda me invade.

Tenho saudade!

Mas não a saudade triste do inacessível, cuja ponta resvala no risível. É uma saudade sacana, eu sei muito bem. Acho que sabem todos que a têm. Fica lá do galho esperando do meu íntimo um ato falho. Então, potente predadora, joga-se de pronto sobre minha cabeça e me imobiliza até que anoiteça.

Sou um homem que tem saudade.

Até de ter saudade! Porque sinto culpa se não a tenho. De tudo e de todos. Uma saudade invencível que não se aproxima aos poucos, mas vem como loucos. De repente, incontinente. Eu a sinto distante e quando a percebo, já vejo que é agora. Uma saudade que me afaga e me estupora.

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