“O Mestre” e “O Bis”

Faz algum tempo que eu não como doces por vontade própria. Explico: não os compro; feito criança, só os como quando me dão. Quando vou à casa da minha mãe, é uma perdição completa: rosquinhas de pinga, mantecal (sinceramente, não sei como se escreve), doce de mamão, doce de leite, doce de abóbora... De vez em quando, a avó da minha filha também me empanturra de bolos, pudins etc e tal. Só que no que depender de mim, é seca total. Entretanto, toda regra tem exceção. E muito esporadicamente, vencido pelos supermercados da vida, levo para casa o chocolate que eu mais gosto: o Bis.

E lá estava eu, depois de abrir uma garrafa de vinho, assistindo ao filme “O Mestre”, com Philip Seymour Hoffman (de quem sou fã) e Joaquin Phoenix (de quem nunca fui muito com a cara). Grande filme. Não sei por que não concorreu ao Oscar. Talvez porque a tal academia não seja muito a fim de filmes que fazem pensar, de filmes que fogem àquela estruturinha básica que o publicão quer ver para “se divertir”, comendo pipoca, conferindo as mensagens no celular e conversando animadamente com a pessoa ao lado.

Philip e Joaquin dão um show de interpretação. Na minha modestíssima opinião, porque não entendo porra nenhuma de interpretação, é o melhor papel de Joaquin Phoenix, que pra mim virou Joaquin Fênix, isso mesmo: ressurgiu das cinzas.

Bom, mas estávamos no vinho e no Bis, essa é a verdade.

O filme discute questões espirituais, incluindo vidas passadas. Lá pelas tantas, aperto o botãozinho de pause. Vou ao banheiro, dou aquela mijada gostosa que damos no meio de um filme do qual gostamos, tipo fique aí me esperando, DVDzinho babaca, eu estou no comando, paro você quando eu bem entender, e se quiser ainda meto o dedo no review, ok?

Volto, pego o controle e um segundo antes de apertar o play (por que será que mesmo num país de língua portuguesa como o nosso, a NET manda esses controles remotos com tudo escrito em inglês, hein?) eu me lembro daquela caixinha de Bis que está escondidinha no armário da cozinha (eu mesmo escondi de mim mesmo pra ver se eu esquecia, mas, como se vê, não esqueci).

Fazer o quê? Vou até lá e, muito a contragosto, porém, com o coração aos solavancos, meto a patona no invólucro retangular. Apalpo aquela superfície lisinha como só uma caixinha de Bis sabe ser (incrível, parece que ela vem sempre depilada) e conto os tabletinhos: quatro. Quatro! Fico feliz. Porque alguém que se dispõe a não sair da linha quando o assunto é doce, chocolate e essas punhetinhas todas, alguém assim precisa estar sempre atento, não é?

(Peraí que o vinho acabou e vou abrir outro!)

(Cacete, na próxima encarnação – se houver, coisa que eu tô achando lorota daquele ET filho da puta ali em cima –, não quero que a família da minha ex-mulher fique me abastecendo com garrafas e mais garrafas de vinho, uísque, licores etc etc. Mas, bem entendido, isso fica para a próxima encarnação. Nesta, acho melhor continuar do jeito que está.)

Voltando. Pego a caixinha de Bis e vejo que há quatro tabletinhos (guardem isso porque será importante daqui a pouco). Vou para o sofá. Finalmente aperto o play e o filme segue. Eu como o primeiro Bis e imediatamente, o segundo. Porque Bis é assim. O nome já entrega, né? Quem consegue mandar um só para dentro? Ninguém, claro.

Está (no filme) aquele clima de vidas passadas e por aí vai, e eu mando os dois tabletes restantes. Enfim, acabou. Sob um inevitável clima de velório, empurro a caixinha (com a metade coberta por aquele plástico depilado azul) para o lado e penso que ótimo filme, do jeito que eu gosto, um filme de diálogo, interpretação, elucubração...

O personagem do Philip Seymour Hoffman está explicando algo a respeito de espíritos que vivem diversas vidas ao mesmo tempo, que enquanto você está aqui, você também está lá, e nisso, pasmem!, ouço uma coisa que todo mundo já deve ter ouvido: um plástico estalar, aquele barulhinho super natural, como quando amassamos a capa do ovo de Páscoa e ela fica lá gemendo até o Corpus Christi.

Só que era ali, em cima da mesinha de centro, a própria caixinha de Bis crepitando. O Philip Seymour Hoffman dizendo sobre nosso envolvimento com acontecimentos de trilhões de anos, com as coisas que rolam sem que possamos compreender, e eu vou pegar mais uma taça de vinho. Como não quero derrubar a bebida, aperto pause novamente. E aproveito para levar a caixinha de Bis ao lixo (pois é, sou meio neurótico quanto a isso).

No caminho, do jeito que peguei a caixinha, sinto o polegar em contato com uma superfície dura. Penso: é o plástico que não rasguei. Está ainda esticado, envolvendo metade da caixinha, e por isso dá a impressão de uma superfície rígida. Mas ao mesmo tempo uma sensação estranha evoca instintos imemoriais. A um passo do lixinho da pia, aperto outra vez a caixinha do Bis e... caralho!

Isso não é plástico duro, porra nenhuma!

Sim, lá estavam mais dois tabletinhos, juntos, cúmplices, sarcásticos e, até acho, risonhos. Surgidos do nada. De uma vida passada! Eu não acreditava. Queria que o Philip Seymour Hoffman e o Joaquin Phoenix fossem pras putas que os pariram. Sob a luz pálida que vinha da rua (eu só assisto aos meus filmes no escuro), desvirginei ( e aqui, para “encaixar” melhor, vou usar tablete no espanhol) aquelas tabletas, aquelas pastillas, enfiando a língua, a boca, os dentes, a alma naquela doçura irresistível.

Comi as duas em pé!

Comi as duas em pé no meio da cozinha, como manda o bom figurino.

Saciado, sem compreender o fenômeno místico, voltei ao controle remoto e vi o filme até o fim. Belo filme.

Gosto de obras em que você fica esperando algo incrível acontecer, mas não, nada de incrível acontece. Como naquele livro maravilhoso do italiano Dino Buzzati, “O deserto dos tártaros”, em que o personagem principal aguarda por uma guerra que nunca vem. Acho que gosto de filmes e livros assim porque minha própria vida também é assim: uma longa espera por algo que não sei bem o que é, e nem mesmo se um dia virá.

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