Leia histórias enviadas por brasileiros anônimos


Esta seção – Confissões – surge depois de cinco anos de hesitação, falta de tempo e coisas assim. São relatos enviados ao meu site antigo em meados da década passada por internautas de várias partes do país.

Quando em 2005 eu li “Achei que meu pai fosse Deus”, do escritor norte-americano Paul Auster, fiquei impressionado. Não apenas com a obra. Mas também com uma coincidência. Havia poucos meses, eu lançara no meu site de então uma seção que incentivava os internautas a contar histórias próprias que eles mesmos julgassem de algum modo extraordinárias ou que valessem a pena passar pra frente. Na época, a internet não era o que é hoje. Não havia o fabuloso movimento das redes sociais para levar adiante num só segundo ideias e propostas.

Aos poucos, comecei a receber algumas respostas. Chegavam casos sem o menor atrativo, mas também histórias que me pareciam ter um bom potencial. No início, minha ideia era simplesmente publicá-las no site. Mas, com o passar das semanas, comecei a pensar que poderia produzir algo dentro do chamado jornalismo literário. Então, como precisava dar uma satisfação aos internautas, resolvi publicar apenas os casos pouco interessantes e guardar os principais. Ao menos até que eu formulasse uma ideia mais madura a respeito do que fazer com o conteúdo que chegava aos poucos, mas chegava.

Foi quando peguei nas mãos o livro de Paul Auster, uma magnífica compilação de histórias enviadas por ouvintes da NPR (National Public Radio), uma rede de emissoras de rádios públicas que o convidou a participar de um programa onde ele lia as narrativas de pessoas comuns de todo o território dos Estados Unidos. Dessa experiência no rádio, surgiu o livro.

Fiquei fascinado pela ideia, tão simples e tão brilhante.

De certo modo, eu continuei hesitante quanto à publicação dos casos mais atraentes. Talvez a iniciativa não tenha sido um sucesso por isso mesmo. Eu publicava rapidamente apenas as narrativas cujo potencial jornalístico ou literário não me atraía. Arquivava as demais. Arquivava confissões e casos que me instigavam a buscar uma utilização mais propícia. Histórias nas quais eu via um bom potencial para um tratamento jornalístico mais adequado.

Claro que algumas delas podem ter sido simplesmente inventadas pelos internautas. Muitas, aliás, não passavam de brincadeiras de mau gosto ou simples bobagens. Meu procedimento, após receber bons conteúdos, resumia-se em responder ao e-mail. Era uma maneira de checar algumas informações que poderiam me dizer se ali havia verdade ou mentira, ou um pouco das duas coisas. O fato é que em alguns casos jamais obtive informações extras. Mas em outros, as respostas vinham. E consolidavam a história original.

O caso é que por várias razões, quase sempre vinculadas ao meu cotidiano profissional, deixei a proposta de lado. Depois disso, restou em minhas mãos um razoável conjunto de textos cujo teor eu um dia teria gostado de checar, investigar, me aprofundar em suas possibilidades jornalísticas. Mas como? Haveria tempo suficiente para convencer os confessores a conversar pessoalmente com um jornalista desconhecido? A dar seus nomes verdadeiros? Ou mesmo sob o anonimato abrir brechas para que fossem descobertos a partir de um ou outro detalhe?

O tempo passa. O trabalho engole nossas ideias. Nós desistimos por agora. Mais tarde, lá dentro do nosso cérebro, a massa cinzenta rumina as ideias engolidas. Dá a elas novas formas. Fazem as adaptações necessárias. E aqui está: o projeto de checar histórias e torná-las reportagens transformou-se num outro desafio. Um desafio com certo charme: será verdade o que dizem esses brasileiros anônimos que resolveram se confessar escondidos atrás da tela de seus computadores, onde nenhum padre pode vê-los nem mesmo quadriculados?

Você encontrará neste blog, à medida que eu conseguir dar às narrativas que arquivei um formato adequado para este objetivo, relatos curiosos, engraçados, dramáticos, alguns beirando o sobrenatural. É preciso aparar arestas de diferentes linguagens e isso leva tempo. Não sei qual será a periodicidade da publicação. Só sei que tenho, se não me engano, pelo menos umas duas ou três dezenas de boas histórias.

Por estes dias, ao pensar em começar a publicar esse material, veio-me a constatação sobre um fato incontestável: se, ao seu final, cada uma dessas histórias tivesse o nome de seu autor, como ocorre na obra de Paul Auster, haveria mais sentido. Talvez eu pudesse até pensar em organizá-las num livro, como fez Auster.

Mas o diabo é que isso não é possível. Porque à época não me preocupei em insistir na identificação dos internautas. Porque, além de histórias, há aqui confissões. Confissões que podem acarretar danos de vários tipos aos confessores, dos conflitos familiares ao próprio desgaste pessoal diante de amigos, de parentes, de colegas de trabalho, enfim, da sociedade de modo geral. Portanto, abaixo de cada história, colocarei o que me parece mais adequado a uma situação deste gênero: a profissão do narrador, a idade e o Estado ou cidade onde mora, conforme esse dado me foi enviado por cada um deles.

E a partir da impossibilidade de cravar a identificação, pensei que hoje, nas próprias redes sociais, quem pode saber se são verdades ou mentiras as mensagens postadas? E mesmo os autores das mensagens postadas, quem são eles se não anônimos cuja identificação muitas vezes não nos apresenta o menor significado de quem sejam? A própria globalização da informação acentuada pelas redes sociais mistura num grande bolo narradores e leitores, leitores e narradores.

Hoje, ambos os lados fermentam uma incrível massa de ideias (boas ou ruins) que crescem de modo tão incerto que essa extraordinária incerteza pode nos ajudar a pensar sobre o que é verdade ou mentira e sobre a importância de cada uma dessas duas condições que até há pouco tempo, quando a informação era muito mais restrita, separavam claramente realidade e ficção. Hoje, o bolo gira na batedeira da vida e mistura todos os ingredientes de modo a criar a verdade e a mentira de cada um. Eu também poderia dizer: "Hoje, o bolo gira na batedeira da informação..."

Os relatos que pretendo publicar aos poucos neste blog vieram a mim como verdades. Depois de tomar conhecimento de cada um deles, parte parece-me verdadeira e em outra parte me custa acreditar. Ao leitor, resta o atraente desafio de tirar suas próprias conclusões.

Detalhe importante: os dados abaixo de cada texto referem-se à data de envio da história, ou seja, no período de 2005 a 2007.

Atenção: caso você queira se confessar, basta enviar seu caso para este blog. O e-mail é marcioabc@marcioabc.com.br

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Em nome do Pai

Moro num pequeno edifício de uma área muito movimentada do Rio. A janela do meu quarto fica bem em cima de uma esquina onde uma rua acaba numa avenida. Dificilmente, há momentos tranquilos ou silenciosos por aqui. A não ser em certos horários aos domingos. Numa dessas ocasiões, eu estava sozinho em casa. Lá fora, havia uma chuva fina, mas intermitente. Fora alguns ônibus e carros, as ruas estavam quase desertas.

Perto das seis horas da tarde, ouvi dois disparos muito próximos. Corri para a janela e ainda pude ver um homem de costas para mim dar mais dois tiros em alguém que já estava caído na calçada. Foram instantes de intenso pavor para mim. Não sei como pude me manter ali, quase arrancando a cortina involuntariamente e olhando aquele corpo virado de barriga para cima com uma espécie de touca plástica na cabeça para se proteger da chuva.

Estava sobre uma mancha vermelha que parecia crescer ainda mais com a água empoçada. Não me lembro de como o assassino fugiu, por onde ele correu, essas coisas. Passaram-se alguns minutos de profundo silêncio. Ao menos eu não ouvia nada. E parecia estar pregado ao chão. Quando consegui me livrar daquele entorpecimento, a primeira coisa que pensei foi em ligar para a polícia. Mas antes de conseguir dar um passo, algo me chamou a atenção: a vítima dos tiros ergueu lentamente a mão direita e fez o nome do Pai.

Meu coração parecia ter parado. Por um momento, achei que pudesse ter sido uma ilusão, mas não. Porque a mão só agora caía ao lado do corpo, após ter feito o sinal da cruz. Nisso, eu observei do outro lado da rua e uma mulher de longos cabelos brancos estava olhando exatamente para mim. Ela pareceu ter dado um sorriso e depois virou as costas e seguiu pela calçada oposta. Fiquei estupefato. Lembro-me de tê-la visto descalça. Trajava um vestido claro. Não carregava bolsa. Nada.

Não sei o que me deu naquela hora. Eu desci correndo os quatro lances de escadas que separam o terceiro andar do térreo e saí à rua. Passei pelo corpo e corri na direção da mulher. Corri feito louco umas duas ou três quadras. Mas não a vi. Quando eu voltei, havia várias pessoas em redor do corpo. Aproximei-me. Estava lá: a mulher que eu procurava há pouco estava lá.

Estudante, 19 anos, Rio de Janeiro

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Por toda a vida

Algum tio velho da minha família tinha um desses capacetes que os soldados usam na guerra. Não sei de que guerra ou revolução era o dele, mas um dia – lá pela década de 1970 – ele o deixou em casa, também não sei bem o motivo. O que sei é que fiquei fascinado por aquele objeto estranho e pesado de cobrir a cabeça. Eu devia ter uns 5 ou 6 anos, mas eu me lembro bem o quanto eu gostaria de poder usá-lo. Só que minha mãe nunca me deixava tocar nele. Ficava em cima de um armário e eu não podia alcançá-lo.
Num domingo, depois do almoço, nós estávamos na sala e chegaram alguns parentes para uma visita rápida. Quando eles foram embora, todos saíram à calçada para se despedir. Meu pai havia pegado o capacete para mostrar a um dos parentes e quando saiu à rua, ainda carregava-o nas mãos. Ao lado dele, estava minha mãe com meu irmãozinho no colo. Devia ter uns dois ou três anos. Por uma brincadeira, meu pai colocou o capacete na cabeça do meu irmão.
Até ali, eu nunca havia sentido uma raiva tão grande. Eu sempre quis colocar o capacete, mas nunca me deixavam. Uma bobagem, é verdade. Mas para uma criança as bobagens podem ser coisa séria. Eu pensei algo como “tomara que morra”. E nisso, o que se passou foi tão aterrador que eu jamais pude esquecer. Alguém da vizinhança, acho que também por brincadeira, fez alguns disparos com um revólver. E uma das balas ricocheteou exatamente no capacete que cobria a cabecinha do meu irmão. Ele foi salvo pelo capacete de guerra.
Até hoje eu me lembro de como me senti por causa do pensamento que eu tivera alguns segundos antes. Um pensamento que nunca pude confessar. Porque ainda me sinto culpado. Bobagem? Talvez, mas bobagens de crianças às vezes nos marcam para a vida toda.

Professor, 35 anos, Belo Horizonte

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