O poder do olhar

Dizem que em certas ocasiões um olhar vale mais que mil palavras. Como aqui não poderei exprimir, através da imagem retida em minha mente, o olhar ao qual me refiro, tentarei explicá-lo com palavras. Não sei se mil serão suficientes, mas assim mesmo aí vão elas.

Desde a primeira vez que a vi, incomodei-me. Isso já faz bastante tempo, mas eu sou capaz de lembrar-me perfeitamente. Como fazia todos os dias naquele horário, encostei-me ao balcão e pedi um café. Ao virar-me, enquanto esperava pela garçonete, foi bem quando aconteceu. A velha, de cabelos compridos e fartos, abriu uma boca grande para dizer-me umas palavras de pouco sentido para dizer-se a um estranho, algo como “o senhor agora só viaja durante o dia...” Sim, eu já viajava apenas durante o dia, mas por que a observação em tom de constatação de uma desconhecida qualquer? Confesso que somente pensei nesse pormenor um pouco mais tarde. Naquele instante, quando ela fitava-me de maneira emblemática, só pude mesmo prestar atenção em seu olhar, um olhar cujos contornos e intensidade não me pareciam inéditos.

Levei ainda algum tempo para descobrir a origem de meu incômodo. Depois do episódio ocorrido no restaurante de um posto ao pé da serra, onde a parada do ônibus era obrigatória para aquela linha, nossos encontros tornaram-se frequentes. Assim, logo pude imaginar que a primeira vez não fora um lance ocasional. Em duas ou três vezes na semana, a velha esforçava-se em aproximar-se e, com o mesmo ar intrigante de sempre, fazer um ou outro comentário cujo propósito parecia ser incitar-me a explicar o motivo da mudança em meu horário de trabalho. “O senhor não viaja mais durante a noite” e coisa e tal. Minhas respostas configuravam-se constantemente em evasivas, desculpas rápidas e vazias diante da cobrança inusitada sobre um assunto que eu procurava evitar, mesmo em meus pensamentos.

Então, numa certa tarde, durante um desses rápidos diálogos que travávamos entre o balcão do café e a porta do restaurante, talvez ocasionada por um ângulo de visão a partir do qual até ali eu não a tinha observado, a fagulha de minha lembrança acendeu-se e eu soube exatamente do que se tratava aquele olhar.

Essa história começa há muito tempo, mas encontra-se tão viva em minha memória que posso percorrer seus mais profundos detalhes. Ao contrário de outras noites daquele período de inverno, quando a neblina tumultuava a descida, aquela madrugada de junho entrava muito limpa, permitindo mesmo às estrelas distantes um brilho intenso que enfeitava o firmamento de maneira extraordinária em meio à escuridão. Com o vulto da serra crescendo sobre nossas cabeças, fazíamos uma dessas viagens que se pode considerar absolutamente sossegada. Meio de semana, passava um pouco da meia-noite, e quase ninguém se atrevia a enfrentar o frio. Viajávamos com metade da lotação, a maioria tirando um cochilo ou dormindo profundamente. Esse era o ambiente. De repente, houve o inesperado. A rapidez com que tudo ocorreu impediu qualquer reação de minha parte. Foi-me possível apenas reduzir a velocidade à medida que percebi o acidente. No meio da estrada, riscando o asfalto de sangue, estava o corpo de um homem, completamente desfigurado.

O processo judicial, naturalmente, isentou-me de culpa. Dificilmente, um motorista poderia ser acusado do quer que fosse numa situação daquelas. Os peritos concluíram que o sujeito atirou-se à frente do ônibus. Portanto, suicidou-se. Duas semanas depois, foi enterrado como indigente. Por uns dias, fiquei afastado de meu trabalho. Na verdade, era visível até aos menos avisados que eu me encontrava muito perturbado. Se você já passou por um episódio assim, pode achar que sabe do que estou falando, mas, meu caro, nesse caso eu diria que você está completamente equivocado.

Nos meses seguintes, amigos e familiares vinham dizer-me palavras cuidadosamente escolhidas, cuja pretensão parecia ser resgatar-me do que consideravam tratar-se de um terrível sentimento de culpa. Como eu poderia reagir a tal comportamento da parte deles? Como eu poderia explicar-lhes o conteúdo de meu tormento? Não foi por pouco tempo que me detive à possibilidade de ter sido atingido por uma súbita loucura, talvez fruto do inevitável choque de pavor. Às minhas crenças, agarrei-me o quanto pude, mas nada se mostrava capaz de sossegar meus pensamentos, até o dia em que, num lapso, revelou-se a mim a essência do olhar da velha façuda.

Desde então, estou certo de minhas faculdades mentais. Não há loucura, a não ser a porção comum existente em todos os seres humanos. Tampouco houve alucinação ou coisa parecida. Ocorreu apenas algo que costuma fugir aos nosso cegos olhares. Pouco antes do acidente, quem sabe por acaso, quem sabe porque assim quis um destino que muitos supõem existir, minha visão desviou-se por um segundo da estrada à frente. Foi exatamente quando ele atravessava a pista, não o homem que um minuto depois jazia estirado no meio do asfalto, de maneira nenhuma. É curioso escrever essas palavras com tamanha certeza quando me lembro de tantas dúvidas que me perturbaram naqueles dias; quando me lembro de ter-me forçado a crer numa mentira bem mais confortável do que a verdade que hoje defendo com absoluta segurança.

À medida que, em sua selvagem beleza negra, ele ocupava-se de seu último salto bem diante dos faróis, à margem, assustada com o perigo iminente, ela detinha-se a tempo. Assim, freando o ônibus, não pude tirar meus olhos dos dela. Depois, quando desci, enquanto os demais corriam na direção da traseira, acompanhando o risco de sangue que a criatura, agora já apenas um homem nu, despejava na estrada, apressei-me em seguir por alguns metros a fêmea apavorada sobre suas patas hesitantes. Mas, súbito, ela disparou para a mata, veloz, a cauda negra confundindo-se com o breu, deixando-me apenas a marca daquele olhar, cuja lembrança ocorreu-me tempos mais tarde, no posto ao pé da serra. Ali, percebendo-me desconsertado e definitivamente ciente daquela verdade incontestável que se estabelecia bem diante de minha visão, ela afrouxou o semblante e seus traços aliviaram-se como se dela afluísse um enternecimento capaz de conceder-me seu perdão.

Desde então, desde esse acerto de contas, nunca mais a vi. Agora, são outros os meus tormentos. Penso nela em suas noites solitárias, em seus passos em meio à escuridão da mata, e uma angústia percorre-me a alma, como se estivesse me chamando a um dever ou, quem sabe, a um destino. A um destino reavivado quando, em minha mente, aqueles olhos pousam sobre mim todo o seu poder.

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