Rua de paralelepípedos

Esta história, tentei contar a tantos que nem sei. Mas não assim, de uma forma a não saber contá-la, pois essa tarefa parece-me ser a mais simples. Em verdade, sempre faltou-me coragem. Coragem para crer em minhas próprias palavras e, daí, por conseguinte, no episódio. Sou de um município do interior, hoje até certo ponto um razoável centro urbano, o que costumam chamar de cidade de médio porte. Numa das ruas centrais, tenho meu comércio. Trabalho com tecidos, a maioria peças de finas tecelagens. Esses pormenores, contudo, não são necessários ao relato. São apenas detalhes sobre minha conduta, talvez importantes para afiançar este meu objetivo, talvez desnecessários, mas, de pronto, aí estão.

Por tratar-se de um produto refinado, essa linha, os clientes são poucos, embora sejam altas as contas. Assim, com dois especialistas em vendas e outros dois para as demais tarefas, permito-me uma vida sossegada, mesmo nos dias mais corridos. Gosto de sair durante o expediente, andar um pouco pela área comercial, beber café preto e conversar com os amigos. Também aprecio observar as transformações da nossa zona urbana. Desde que para cá vieram algumas indústrias, mais gente e um tanto de dinheiro, muita coisa mudou. Perdeu-se. Ganhou-se. Como dizem por aí, tivemos um grande desenvolvimento.

Bem, a vida familiar também sofreu alterações. Hoje, meus dois filhos estão fora. Estudam em universidades distantes. Vêm duas ou três vezes a cada semestre. Matam a saudade e se vão outra vez. Vivemos sem eles, fazer o quê? Eu e minha mulher. Nossas famílias também estão por aqui. Acredite, gosto desta vida pacata. Sou, por natureza, e geralmente, muito sereno. E, quem sabe, devo a essa característica minha própria sanidade. Sim, porque o episódio em questão pode surtir muitos efeitos em um homem, mas acredito que poucos reagiriam como eu, absorvendo de maneira gradativa o choque poderoso daquele dia.

Eu era muito moço ainda, dezesseis anos. Na época, nesta mesma rua onde hoje tenho a loja, havia um calçamento de paralelepípedos e calçadas de ladrilhos bem cuidados que circundavam armarinhos, secos e molhados, padarias, bares e outros estabelecimentos. Nós morávamos num sítio próximo à cidade. Minha família é de origem rural. Aos sábados, vínhamos fazer compras, tomar sorvete, passear pelas vias sossegadas, onde poucos carros dividiam espaço com o povaréu proveniente da zona rural, geralmente trazido pelos caminhões dos fazendeiros e sitiantes. A cidade, por assim dizer, fervilhava aos sábados.

Lembro-me que chegávamos por volta do meio-dia, logo depois do almoço. Naquela época, especialmente no campo, almoçava-se cedo, lá pelas dez, onze horas no máximo. Os homens apanhavam sacas brancas e iam para os armazéns. Lá, os balconistas recebiam a saca e junto, uma lista de produtos, que providenciavam, empilhando-os cuidadosamente dentro do invólucro. À tardezinha, antes de voltar para o sítio, os pais de família incumbiam-se de buscar as compras. Nesse ínterim, reencontravam amigos nos bares, faziam jogos de cartas ou de bocha, bebiam cerveja e cachaça. Já as mulheres, com as crianças, encarregavam-se de ir às lojas de roupas, às farmácias e às visitas aos parentes e conhecidos da zona urbana. A nós, moços e moças, quando não havia afazeres determinados pelos pais, restavam gostosos passeios com os amigos, olhares furtivos trocados com pretendentes e pretendidos, enfim, saboreávamos aquelas tardes com o prazer que acende os jovens.

Recordo-me que depois de cumprir todos os meus programas daquele sábado, já no fim de tarde, meus amigos haviam ido embora e eu procurava reencontrar-me com meus pais. Mais uma hora no máximo e voltaríamos para casa. Eu planejava ainda perambular pela cidade, mas antes queria saber se precisavam de mim para algo. Creia-me, fui um jovem muito prestativo à família. Jamais imaginei ser tachado de irresponsável, dissimulado ou coisas assim. Por isso, eu os procurava. E foi quando, numa das ruas do comércio, próximo a grandes árvores de jatobá, deparei-me com um homem de avançada idade, aparentemente distinto por sinal, numa cena no mínimo curiosa.

Ele estava posicionado na rua, sobre os paralelepípedos, na rabeira da carroceria de um caminhão Chevrolet. Com uma das mãos, apoiava-se na madeira do veículo, e com a outra, segurava uma bengala. Em seu redor, contornando-lhe até quase os joelhos, enfileiravam-se várias das tais sacas brancas às quais já me referi, todas devidamente cheias de produtos. Alto e magro, vestia um terno escuro, mas sem gravata; um lenço lilás envolvia-lhe o pescoço e um chapéu de feltro verde cobria-lhe a cabeça, de modo que, por várias vezes enquanto permaneci por perto, ele afundava-o o mais que podia. Estava lá, plantado, um leve sorriso colado à face, como alguém que pretende ser gentil à primeira vista. Meu impulso inicial foi oferecer-lhe ajuda, pois não havia ninguém ao seu lado e, eu bem sabia, as compras precisavam ser colocadas sobre o caminhão. Quando aproximei-me, ele cumprimentou-me. Sua voz era de uma eloquência impressionante, e suas palavras, sempre bem pronunciadas. O diálogo que travamos foi mais ou menos o seguinte:

O senhor precisa de ajuda? Quer que eu o ajude com as compras?

Ah, meu rapaz! Vejo que você parece ter uma educação superior ao que se vê por aí!

Obrigado... O senhor quer que eu suba para me passar as sacas?

Não é preciso, meu caro. Logo, meu filho vem e, então, me auxilia com isso tudo. Mas, diga-me, você mora na cidade?

Moro na Lagoa Seca.

Ah, sim! A Lagoa Seca. Há boa produção de café para aqueles lados, não é? Seus pais são fazendeiros?

Bem, não chegaram a tanto ainda. São apenas sitiantes.

Ora, mas isso não quer dizer que não cheguem a fazendeiros um dia, não é mesmo? Para isso, basta querer!

É, acho que sim. E trabalhar muito, acho...

Nesse ponto da conversa banal que travávamos, houve uma pequena pausa por conta da expressão que se estampou no rosto do velho, uma expressão de curiosidade, seguida de admiração e depois, troça. Então, ele riu. Aliás, gargalhou. Eu não compreendi bem o porquê daquela reação. Talvez em razão de minha surpresa, ele cortou bruscamente o riso e recompôs-se, afundando mais uma vez o chapéu.

Desculpe... como é mesmo seu nome?

Sérgio, senhor.

Ah, pois não. Sérgio. Sérgio é um nome forte. Nome forte este. Mas, meu caro Sérgio, você acredita mesmo que só o trabalho pode fazer de seus pais, prósperos fazendeiros?

Talvez um pouco de sorte ajude também...

Sorte, isso mesmo. Às vezes, a sorte é primordial. Você tem razão, tem razão. Você acha que seus pais terão essa sorte?

Quando fez-me essa pergunta, seus olhos ganharam um brilho estranho, eu imaginei tê-los visto próximo de estarem escarlates, mas foi apenas num relance, e nisso francamente não posso fiar-me. De minha parte, também senti-me estranho. Por que razão aquela conversa? Eu tinha outros planos, queria ainda olhar as meninas, talvez achar um ou outro amigo, e também falar com meus pais, mas não era meu desejo faltar com a educação, deixar ali solitário, no meio de um monte de sacas brancas, o pobre homem de bengala. Assim, resolvi responder às perguntas que me eram formuladas.

Se eles terão sorte, sinceramente eu não sei. O que sei é que eles trabalham muito e acho que bem mereciam ter muita sorte.

Claro! Bom filho, bom filho você é. A sorte às vezes está muito perto e nós não a vemos. É preciso procurá-la também...

O senhor parece entender de sorte...

Aqui, ele sorriu novamente, quase gargalhou, mas outra vez conteve-se.

Bem, meu amiguinho, acho que entendo um pouco, sim.

Nisso, riu com insistência. Depois, freou bruscamente e me olhou de uma maneira que, confesso, senti certo receio. Não sei se explico de maneira convincente, mas percebi, pela primeira vez em nosso diálogo, uma ponta de ironia. Aquela palavra “amiguinho” talvez tenha ajudado a alertar-me para isso. Era uma palavra que não condizia com a postura do homem, pelo menos a postura demonstrada até então. E, na sequência, uma risada grotesca, outra vez, aliás. Passei a conter minha simpatia inicial pelo meu interlocutor. Na realidade, meu desejo era chispar dali, mesmo porque a tarde já caía decididamente e agora talvez fossem meus pais que estivessem à minha procura.

- Senhor, me desculpe. Se o senhor não precisa de minha ajuda, eu tenho que ir.

Exatamente quando ele preparava-se para dizer algo, aproximou-se um rapaz. Eu já o havia observado, pouco antes, e percebi sua chegada um tanto dominada por desconfiança e curiosidade. Tão logo dobrou a esquina, em nossa direção, reduziu o passo, franziu o cenho de um modo brusco, como se ninguém pudesse conversar com o velho, aliás, seu pai.

- Ah, Sérgio, meu caro, este é meu filho. Constantino é seu nome, não o acha belo? Isto é, o nome?

O homem fitava-o com admiração, ao apresentá-lo daquele modo, sem poder evitar um certo constrangimento. O moço, no entanto, não disse palavra, apenas concedeu um breve cumprimento, meneando de leve a cabeça. Então, meu interlocutor voltou-se a mim:

- Oh, mas que mau jeito este meu. Eu ainda não lhe falei meu nome. Pois assim mesmo o é: Constantino, também. Perdoe-me, Sérgio. Quando ficamos velhos, perdemos a noção de algumas coisas...

Ele riu outra vez, e olhando-o com mais atenção, pude notar seus dentes muito sadios para alguém daquela idade. Lembro-me muito bem desse detalhe, embora não compreenda o motivo. De qualquer forma, ele possuía dentes incríveis. Ao suspender o sorriso, justificou a mudez do filho, afagando-o no ombro:

- Estou certo do prazer de Constantino ao conhecê-lo, Sérgio, mas ele não pode dizer-lhe isso. Meu pobre Constantino... Ele sofreu um terrível acidente, não é filho? Mas foi há muito tempo. Sua língua foi arrancada. Mas isso é coisa do passado, não é, filho?

Um frio percorreu-me a espinha ao imaginar uma língua arrancada, como a teve Constantino, o filho. Não pude evitar observá-lo com comiseração, mas ele não poderia perceber. Estava como que hipnotizado pelo pai, olhando-o profundamente dentro dos olhos. Foi quando senti a necessidade de afastar-me, sair dali, daquele diálogo que aos poucos tornara-se opressor para mim. O velho ainda tentou seguir com a conversa, mas eu, acho que até abruptamente, interrompi qualquer possibilidade nesse sentido e, já dando alguns passos, disse-lhes até logo. Constantino, o filho, já empilhava, sobre a carroceria do caminhão as sacas brancas, no meio das quais o velho afundava as pernas, surgindo em meio a elas como uma ilha, agora silenciosa.

Com a cabeça embrulhada no episódio curioso que acabara de acontecer-me, voltei-me decididamente para o lado oposto com o intuito de seguir meu curso. Há, contudo, coisas interessantes na vida. Em vez de continuar andando, atentei para o seguinte: já era tarde demais para perambular, ir até os bares e pontos de amigos onde poderia encontrar meu pai. Na verdade, eu deveria retornar ao local em que havíamos deixado nosso carro, no quintal da casa de uns parentes, onde minha família já deveria estar, à minha espera. Dei, então, meia-volta. Mas não quis passar de novo pelos dois. A certa distância, ainda os vi ajeitando as sacas sobre a carroceria. Para evitá-los, passei ao outro lado da rua e segui, por entre os jatobás e os caminhões e charretes estacionados. Como dizia minha mãe, apertei o passo. Queria deixar logo aquela rua e juntar-me aos meus pais.

Quase em frente ao caminhão dos Constantinos, acho que de modo involuntário, girei o pescoço no rumo deles. Já haviam acabado de empilhar as sacas. Constantino, o filho, contornava o caminhão para entrar pela porta oposta, enquanto o velho caminhava da extremidade traseira da carroceria para a cabine. Eu o vi abrindo a porta e num movimento ágil voltando-se meio corpo exatamente em minha direção. Por um instante, senti-me constrangido outra vez. Não era meu desejo ser visto novamente, e muito menos ser flagrado espreitando-o com curiosidade. Afundando o chapéu, ele oscilou a cabeça, num rápido cumprimento, e mostrou-me os dentes. Digo assim porque não sei se aquilo foi um sorriso. Depois, jogou a bengala num suporte entre a cabine e a carroceria e preparou-se para entrar. Nessa hora, por debaixo da porta da cabine do caminhão, pude ver, estarrecido, desaparecerem lentamente, à medida que ele subia para assumir a posição do motorista, dois cascos, um pouco menores que os das patas dos cavalos, mas ainda assim dois cascos, perfeitamente dois cascos. Eram os pés de Constantino, o pai.

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