Véu de noiva

Capítulo 1

Que maus sonhos! A mãe abençoava-lhe e desejava-lhe bons sonhos, mas eram só maus, só maus. Deitava-se e logo adiante, súbito, despertava afogueado: os sonhos. Era no dia do casamento da irmã que se passavam.

Na festa, entre cumprimentos e suspiros, o véu caía-lhe, descortinando a face pálida e transformando-se em negra mortalha. Faltavam ainda duas semanas para o enlace, mas os preparativos andavam até as tantas.

Na sala, sobre a mesa escura, flamejavam os detalhes prateados das pequenas lembranças que traziam os nomes dos noivos: Isidro e Marta. A família, de certo modo, ocupava as noites com entusiasmo e já uma ponta de nostalgia.

Dividiam-se as horas entre risos rasgados e lágrimas contidas: a Marta, em sua felicidade distante, faria falta aos dali. Iam assim aquelas noites, enquanto o Vítor, entregue às sensações de seus pesadelos, esgueirava-se em meio ao pequeno tumulto, até encostar-se à mãe e, contra sua vontade, novamente adormecer.

Seria um aviso? Uma bobagem de menino de dez anos? Ouvira muito sobre os sonhos, mas objetivamente nada de concreto lhe fora traduzido. A avó dissera, certa vez, ter previsto em sonhos uma ou duas tragédias familiares, ao passo que o pai troçava: em quantas ocasiões não sonhara com riquezas de loterias? E onde estavam as riquezas?

Em sua mente infantil, Vítor consumia-se em conjeturas. Seu sofrimento crescia à medida que se aproximava o dia do sábado marcado. Pensou em queixar-se à mãe e numa oportunidade até ensaiou ir ter com a avó, mas havia duas coisas que o maltratavam: uma era ser tomado por bobo, do que não gostava nem um pouco; outra era causar tristeza ou apreensão aos da casa, e nisso não queria se meter. Iria mesmo sofrer só, levar até o fim o desconforto no peito, um estado em que o coração parece arder, como se fosse possível verter lágrimas por suas rubras entranhas.

Numa manhã fulgurante, o firmamento subjugado à voracidade do sol, cumpriu-se o enredo planejado. Seguiram para a matriz. O casamento seria às onze, depois a recepção teria lugar na própria casa, fincada entre os pomares e os jardins da chácara.

Vítor havia despertado muito cedo, antes mesmo de as doceiras e as cozinheiras incendiarem as brasas e o gás para encher as panelas, as travessas, as assadeiras – e também o ar, aos poucos embevecido pelos vapores aromáticos que serpenteavam em meio ao crescente corre-corre.

Havia pressa por todos os lados, mas ele não a tinha. Não obstante o ininterrupto giro dos ponteiros no relógio da parede – a inexorável transposição de segundos que, insensíveis, vão exterminando os minutos à sua frente –, Vítor desejava celeremente que o ar se quedasse quieto, que as folhas das laranjeiras se movimentassem lentas, que um sossego exagerado se abatesse sobre todos, desprezando o tempo e a escalada vertical da bola de fogo no céu. Que não viesse a hora!

Capítulo 2

Antes de avançar, entretanto, é preciso ainda dizer algo sobre o passado. Há muito que o menino costumava brincar por entre os ramos das folhagens, onde a umidade refresca a terra e para onde iriam os pés, incontinentes e despidos, se gozassem de autonomia.

Os anos haviam passado e ele não traíra o hábito. Às vezes, abandonava-se por horas a fio à desídia orquestrada, encharcando-se do delicioso ato de descansar por nada que fosse, o viço das plantas acariciando-o ao sabor da aragem: seu ninho verde – assim apelidara-o a mãe.

Sabia sempre onde encontrar o filho, ia ao ninho verde e lá estava Vítor, bajulado pelo seu pequeno canteiro de plantas. Às vezes, pegava-o em pretensos diálogos com os vegetais, outras vezes, com a própria terra, à qual dedicava carinhos e jurava, sobre sua honestidade imaculada, senti-la palpitando sob a palma da mão, a pele ebúrnea tracejando fiapos de sulcos na maciez da areia.

Acostumara-se à pulsação, embora não o levassem em conta. Deitar-se e sentir o leve pulsar sob o corpo acomodado causava-lhe prazer, ondas de um rio seco que o faziam flutuar num mesmo lugar. Sem que lhe dessem ouvidos, deixara de levar à mãe aquelas descobertas. Até que um dia, pela hora do almoço, pisou na sala branco feito cera, aterrado, olhos esbugalhados, a voz mergulhada em sua mudez repentina, bambeando-se, trêmulo, sobre os cambitos.

Logo, antes de lhe acudirem, a irmã também entrou. Marta havia ido ao ninho verde. Fora chamá-lo para comer e abaixou-se por um instante, numa atitude dessas em que, inutilmente, os adultos pressupõem poderem, com um simples movimento de corpo, aproximar-se do universo infantil.

Foi quando assistiu à súbita inquietação de Vítor e, em seguida, à disparada, sua fuga impaciente. Enfiara-se abruptamente pela sala e imediatamente recorrera aos braços da mãe, buscando a segurança que só as mães podem nos dar. Bebeu água com açúcar e, vencendo o pavor, disse aquelas palavras desconexas:

- A terra...tremeu...foi sim, a terra...mexeu mais...

Capítulo 3

Quatro ou cinco dias passaram sem que Vítor fosse ao ninho verde. Soturno, prostrou-se em algum canto da casa, escorria-lhe à fronte oleosa a densa melancolia. Mas vá ver criança despachar a curiosidade! Não há. Deu-lhe na cabeça retomar os costumes, desafiando o próprio horror, que, não duvide, ainda o consumia.

O tempo remedia, extingue tormentos ou, sabe-se lá, oculta-os em confins inacessíveis. Vítor, de novo, juntou-se à terra, sentindo seu frescor, respirando seu cheiro levemente úmido, estirando-se preguiçosamente sobre sua maciez e, por fim, aceitando como um carinho irrecusável a pulsação delicada que o massageava com afeto.

Alguns meses adiantaram-se até suceder, como na vez passada, o fenômeno que tanto intrigara o menino. Agora, contudo, abarcara o ímpeto do desespero e, diante da aproximação de Marta, pôde verificar, mesmo com o sangue enregelando-se nas veias, aquela reação inusitada, a terra pulsando além do hábito, o tremor sob o corpo infringindo a normalidade, um sussurro desprendendo-se como voz dos minúsculos grãos de areia que, sob a visão de Vítor, transformavam-se em centelhas saltitantes num ínfimo redemoinho de poeira reluzente.

A terra a queria, meteu isso na cabeça. A terra a queria. A terra a queria. Em sua mente, o tênue sussurro parecia advir de uma legião distante, parecia ser composto de sons disformes que se juntavam num só, vindos de várias direções e, como numa impressionante magia, dispostos numa composição compreensível ao ouvido humano.

Para Vítor, não havia dúvidas. O sussurro traduzia-se em M-a-a-a-a-r-t-a-a-a-a-a...M-a-a-a-a-a-a-r-t-a-a-a-a...Como poderia levar à mãe, ou a quem quer que fosse, tal enredo fantasmagórico? Sim, era algo fantasmagórico, como imaginam ser algo fantasmagórico as crianças. Mesmo tomado pela infelicidade, atormentado por uma indomável perturbação, trancafiou os pavores em seu âmago, resignando-se à desdita, expondo-se com uma coragem incomum para uma criança a um inimigo desconhecido e, por isso, inimaginável em seu poderio.

Desde então, vieram-lhe os sonhos, os maus sonhos: o brilho da irmã descortinando-se em morbidez, o véu desabando para revelar a face lívida e sombria da pobre Marta, logo no dia de seu casamento, logo quando seus sonhos de mulher enveredavam-se libertos a um futuro promissor ao lado do honesto e carinhoso Isidro.

Na manhã do dia, como já se soube, Vítor despertou muito antes do que deveria. A escuridão da madrugada ainda debatia-se na inevitável contenda, recusando-se a ser debelada pelo clarão do sol por muito pouco ausente.

A passos leves, adentrou o quarto de Marta. Dormia como um anjo a irmã, sob o lençol branco que escorregava quase ao soalho e uma fina coberta azul na qual sóis bordados despendiam certo fulgor, uma alegria de juventude.

Olhou-a por um instante fugaz, não queria acordá-la, mas foi o suficiente para absorver de sua fisionomia a leveza dos felizes. Refreou um impulso de adiantar-se em sua direção, abraçá-la e beijá-la e depois cingi-la dentro de seus braços delgados, comprimi-la contra o peito e entregar-se, afinal, a qual fosse a luta para livrá-la de qualquer destino ruim, de qualquer mal, de qualquer terra maldita.

Capítulo 4

O ninho verde abandonara há semanas. O medo e o ódio àquela terra cresciam simultaneamente. Assim como tornara-se intrínseco a seu bem-estar o aprazível habitat de tantas horas, Vítor açambarcava, desde seu mais remoto sentimento, a ojeriza por algo que lhe fora um dia tão caro.

O resultado, entretanto, desvelava-se em seu rosto tenro. A palidez das maçãs outrora róseas, quase mesmo vermelhas, e os olhos entrincheirados como duas opacas minas d’água que se vêem afundadas na beira da estrada, estas duas recentes características de sua face seriam por si só suficientes para delatar seu estado certamente doentio.

Entretanto, a casa voltava-se havia várias luas apenas à luminosidade etérea da noiva, relegando tudo o mais a importâncias menores. Somente de passagem é que a avó fez-lhe aquele afago:

- Ora, ora... não fique triste, meu menino. Sua irmã só vai se casar, não vai morrer...

Oh! Como queria poder acreditar em algo assim, em tão simples circunstância; como sonhava ocupar-se do correto desvelo da parte que decerto também cabia-lhe no apronto do evento; como gostaria de escapar das garras implacáveis de suas mais terríveis angústias! Mas esses desejos significavam apenas sonhos, sonhos impossíveis escapulindo no horizonte distante da realidade inevitável.

Na igreja, ao lado do corredor enfeitado de uma corrente de flores brancas e amarelas, rezou como jamais o fizera, acreditando piamente ser possível o que até então nem calhara imaginar, qual seja um auxílio daqueles santos piedosos dispostos entre relíquias e anjos absortos, aos quais não recorrera seriamente em momento algum de sua reles existência; seria de bom alvitre confiar-lhes tal tarefa?

Nesse mesmo segundo decretou-se impossibilitado de delegar-lhes o fardo, mas no outro animou-se à tentação acolhedora. Ademais, de onde poderia esperar ajuda, se em seu estado infantil e diante da burla do destino, seria apenas objeto de galhofa e suas visões, de incredulidade?

Apressou-se em sua duradoura súplica, desde o primeiro passo da irmã no piso sacro ao último amém. Observando-a, foi-lhe possível vislumbrar, sob o alvo véu crispado à leve brisa, sua feição vivaz digladiando com um sorriso teimoso a escapar-lhe pelos extremos dos lábios.

Era testemunha de sua felicidade desde o dia do consentimento. Marta, pobre Marta! Desvencilhava-se por um só instante de sua pendência – a silenciosa assembléia com as imagens severas daqueles santos – e uma sensação agradável percorria-lhe os nervos, descontraindo-os à medida que vasculhava a silhueta fulgurante da irmã, mas assim como libertava-se de seu cárcere, a ele mesmo retornava, submisso ao clamor de sua alma afundada em agonia.

Nem mesmo sua crença mais recente, obtida às custas da derradeira esperança, afastava de si as visões: o véu escorrendo pelo rosto da Marta, a Marta diáfana e violada pela morte, os olhos esgazeados.

Capítulo 5

Pelos vitrais de tons azulados na base e dourados no alto, o sol brandia seus raios vigorosos da manhã. Exatamente sobre o altar, um facho luminoso abraçava os noivos após vencer o círculo envidraçado no teto da torre.

Num lampejo, o rosto de Vítor iluminou-se. Ao menos num instante de inexplicável elevação, sonhou avistar ali um sagrado sinal a seus desejos. Em redor, nas sombras das árvores plantadas em fileiras às costas da igreja e em meio ao verde dos jardins da entrada, o festivo gorjeio anunciava pássaros bem dispostos.

Vítor voltou-se ao portal, curioso com a algazarra, e nisso o reflexo da luz solar nas lajotas lavadas e enceradas impediu-lhe a visão. Um momento a mais e a esperança apoderou-se quase inteiramente de seu espírito, o espírito do garoto fascinado pela radiante luminosidade que então envolvia a casa de Deus e, ora, ora, daqueles santos, especialmente daqueles santos.

Fustigava-o uma emoção insuportável. Lutava contra a excitação e o intenso desejo de debandar-se para o lado da Marta, o desejo de saltar sobre os bancos de madeira envernizada, correr em direção a ela e atirar-se em seus braços. Você vai ser feliz, Marta, você vai ser feliz, juro que vai!

E houve que, no auge do breve transe, uma sombra pairou sobre o altar de rendas e ouro. Lá atrás, à entrada, a luz também havia desvanecido, percebeu o menino num rápido meneio de cabeça. Voltando-se ao altar, viu que a sombra movia-se lentamente, como uma mão que afaga.

Da extremidade do móvel, voltou-se ao centro, sobrepondo-se primeiro ao cálice e depois ao feixe de crisálidas, aproximou-se e desviou-se do padre, sustentando-se finalmente nos ombros da Marta. Vítor reteve um urro de pavor, levou as duas mãos à boca, as lágrimas desceram constantes, até que seus olhos arregalados divisaram a imagem que se compunha às costas do vestido branco da noiva, mas logo dissipando-se, como algo que a retina não pode captar se exatamente em sua brevidade piscamos os olhos, a pálpebra recobrindo o globo ocular, privando a retina de seu trabalho rotineiro.

O menino imaginou-se assim naquela hora: apenas ele não piscara, apenas ele, o restante sim, os demais, numa coincidência assustadora, baixaram suas pálpebras, fecharam as cortinas sem observar a imagem que se compôs, o desenho pavoroso, as asas abertas sobre a cabeça da noiva e muito depressa o grande urubu içando vôo, batendo as asas e comprimindo com elas Marta e seu véu.

Capítulo 6

Da cerimônia à chácara, uma palavra sequer ouviu-se à sua voz. Malgrado sua insignificância num dia de casamento da irmã, percebeu-lhe a mãe o rosto sulcado pelas gotas salgadas, mas evitou comentários, esfregando-lhe apenas o lenço sobre a face turva, enfim, o dia era mesmo para emoções.

Vítor, por sua vez, resignou-se ao banco traseiro, fitando bem próximo ao vidro a paisagem mover-se. Na cidade, os transeuntes pareciam-lhe ocupados, pacotes à mão e passos apressados, os bares entulhados, crianças rodopiando sobre bicicletas, o calçamento de paralelepípedos evocando dos pneus grandes da Veraneio um ronco surdo que lhe fazia cócegas nos ouvidos, veja se pode.

Logo, tomaram a vicinal de terra batida e às suas margens enfileiraram-se plantações e criações, a fotografia conhecida. Uma angústia silenciosa entristecia-o a cada metro rodado. Os diálogos alegres e às vezes emocionados dos outros surtiam-lhe apenas um efeito passageiro, serviam apenas para compor um ambiente que a ele já não interessava mais.

A sua culpa diante do fim trágico que supunha estar para acontecer aviltava-lhe de tal maneira que já se sentia um homem judiado pelos anos. Talvez lançando mão de um instrumento punitivo ao seu alcance, castigava-se com conjeturas sobre a terra que amaldiçoara.

Não fosse seu apego àquele canto, quem sabe nada daquilo houvesse. Julgava-se o responsável pelo despertar de uma incompreensível e poderosa força do mal, e mesmo invencível, se tomasse em consideração sua luta e de seus santos ainda há pouco na igreja, onde ao final a sombra sobrepujou-se à luz. A distância cumpriu-se em coisa de vinte minutos, Vítor tombado ao acento.

A partir do alpendre, construído num semicírculo diante da casa, atapetaram a areia com encerados estendidos ao chão. As lonas cobriram também as armações de madeira instaladas para a ocasião desde alguns dias antes, quando o pai soube que o clube estaria indisponível por conta dos preparativos do baile de aniversário e que a reforma do salão paroquial não seria concluída a tempo.

Vítor, quando tomou conhecimento, desesperou-se, mas o que poderia fazer ele diante de sua insignificância? Mal reparavam sua magreza e seus olhos fundos! Em suas idéias, os maus resultados nas intenções de receber os convidados no clube ou no salão da igreja nada mais representavam do que a própria conjunção de acontecimentos propícios à desdita que se avizinhava.

A terra maldita, sob o verde das folhagens, margeava a área coberta para a festa. Tudo parecia-lhe afunilar para o que indicavam suas angustiantes visões. Nem mesmo o sujeito contratado para o churrasco viera. Em seu lugar, não se soube de onde, apareceu um brutamontes estranho, de poucos dentes e certamente de menos amigos. Afiava seu jogo de facas olhando para ele, Vítor, ou seria sua deficiência que o obrigava a fitar tudo de esguelha? Bem, mas não era secundário tal aparte?

Aproximaram-se os convidados, aos poucos estacionando os veículos na pastagem aberta para isso mesmo, e acomodando-se nas tábuas largas que serviam de bancos colados às mesas, estas compostas de outras extensas madeiras dispostas sobre baixos cavaletes. Já estavam sobre as mesas as pequenas travessas com molho e farofa, além de cestos de pãezinhos e, claro, os talheres. A festa propriamente dita começara. Mas não para ele.

Capítulo 7

Em sua mente, havia lugar só para prever a desgraça. Se alguém tivesse tido a idéia absurda de acompanhá-lo em seus movimentos durante o evento, perceberia algo como uma mácula num sacrário. Talvez um ou outro o percebesse, mas talvez também o confundisse com um irmão emocionado, como ocorreu à própria mãe.

Decerto que lhe recaía emoção, pois este estado abrange modalidades tão distintas que se sua descrição não vier acompanhada de complementos sobre o espírito de quem a carrega, torna-se impossível imaginá-la com correção.

A emoção de Vítor, com efeito, consistia, ao contrário da emoção típica de congraçamentos, em penúria. A privação da convivência com a irmã, não porque ela se casara, mas porque a morte viria buscá-la dali a pouco, emocionava-o de tal forma que suas lágrimas rolavam sem fim.

O menino sabia que haveria algo pavoroso e que a festa de casamento da irmã teria como desfecho a tragédia da protagonista. Uma sensação estranha de temor, ansiedade e impotência crescia dentro dele.

Dali a poucos minutos, chegariam Marta e Isidro, o arroz distribuído aos punhados seria atirado sobre eles, o sorriso dela encheria o lugar de alegria e emoção, esta sim uma comoção destinada a momentos como aquele, e depois? Depois, quando os noivos adentrassem o lugar preparado para a recepção e se assentassem diante de todos, o coração de Vítor galoparia desesperado, até, quem sabe, explodir.

Ao pensar sobre a hipótese, o menino pôde sentir um alívio fugaz percorrer-lhe as entranhas. Que bom seria se seu coração explodisse antes da tragédia da Marta. Que bom seria! E foi assim que lhe surgiu a idéia, esdrúxula, é verdade, mas o fiapo de uma última esperança agitou-lhe a alma junto com a sugestão.

Todas as tardes, quando o sol enfraquecia-se, a mãe regava os jardins. A folhagem abandonada junto com o pedaço maldito da terra apresentava-se viçosa naquele dia de festa. As samambaias e outras folhas cobriam a areia úmida e fria, quando Vítor afastou-se de todos e foi ao encontro de seu velho ninho verde, o ninho que há várias semanas deixara para trás.

De súbito, tomou-lhe a impressão de clima gélido, um frio apossou-se de seu corpo, obrigando-o a abraçar-se a si mesmo, os ossos terrivelmente doloridos, os dentes batendo, as palavras pronunciadas sílaba a sílaba:

- Le ...ve ... le ...ve ... a ... mim... le ... ve ... a ... mim, não ... a ... Mar ... ta ..., não ...a ...Mar ... ta ...

Não obteve, contudo, qualquer resposta. Sua efêmera passagem por entre aquele ambiente gelado não lhe foi outra coisa senão a própria confirmação de tantos pressentimentos. A maldição vinha dali, não existiriam meios para impedi-la.

Tão logo retomou os sentidos, recuperando-se ao vigor do sol, foi ter com a avó, a única que talvez pudesse ouvi-lo. Num ato de arrebatamento, cingiu-a pelo quadril e puxou-a ao local, mas em sua companhia pôde presenciar simplesmente a normalidade: onde há pouco transpunham os limites das geleiras os ares dos pólos, agora balouçavam radiantes, refletindo a luminosidade do dia, as samambaias e as demais folhagens, e a terra esquentava-se ao sol.

Que estranho está você, menino... Venha, vamos comemorar a felicidade da sua irmã!

Capítulo 8

Uma última surpresa apagou definitivamente em Vítor qualquer chama que houvesse de salvação: por mais que ele relutasse, não havia como enganar-se sobre a área ocupada pelo ninho verde e sua posição em relação à casa. Deus, como ele conhecia o ninho verde!

Durante as tardes, deitava-se ali e, por entre as plantas, admirava o céu azul, acompanhava a viagem das nuvens e em sua mente compunha desenhos com as densas massas brancas, mas não era só. Acomodado em meio ao verde e sobre a terra macia, muitas vezes adormecia vendo, através da janela do quarto de costura, a mãe lançar-se aos pedais da máquina, produzindo aquele vago ruído constante. Isso fazia-o dormir, quantas vezes!

Eis que agora, em plena festa, alinhando-se ao ninho verde, descobria a engenhosidade final. De lá – perceba isso –, da moita de folhagens, onde ela plantava-se agora, era impossível avistar a janela. Sim, se ele se deitasse agora mesmo naquele pedaço gelado de chão, poderia contagiar-se com a beleza do céu azul e imaginar coelhos, carneiros e velhos de barba entre as nuvens, mas não dormiria assistindo ao trabalho da mãe na máquina de costura.

Pelos seus cálculos, as plantas, e talvez a terra – oh, Deus! – tinham se deslocado pelo menos três metros à esquerda. Estavam agora bem atrás da mesa dos noivos. Um surto abateu-se sobre Vítor, ele ameaçou disparar no rumo da mãe, mas a vozearia avolumou-se sob os encerados, os noivos desciam do carro alugado e, antes mesmo que se endireitassem sobre as pernas bambas da justa emoção, já levavam uma surra de pequeninos grãos brancos que pareciam pulular a reboque de uma felicidade ímpar.

Capítulo 9

Mesmo assim, Vítor tentou. Obscurecido ainda mais debaixo dos festejos do arroz, sacudiu o linho do pai, depois o tailler da mãe e, por fim, mais uma vez apelou à avó, mas esta apenas o enlaçou com afeto e espalhou arroz sobre seus curtos e vastos cabelos negros.

Abraçados, os olhares cruzando-se sob mútua admiração, Marta e Isidro foram passando pelos convidados, cumprimentando-os aleatoriamente, até chegarem à mesa reservada a eles. Vítor desgarrou-se do pequeno tumulto festivo que se instalara no recinto e chispou para perto do casal, pondo-se estrategicamente, embora não soubesse bem por que, ao lado da Marta, que estava à direita de Isidro.

Logo atrás, uma pequena efusão remexia as folhagens do ninho verde. Pouco há mais a dizer sobre o que se passou, tão inusitado e improvável mostrou-se o episódio, mas antes desse fato que me vem à memória como se depois disso não tivesse havido amanhã, Vítor, perturbado e inevitavelmente à beira de um colapso tal a intensidade com que o coração sacudia-lhe o peito, ainda olhou seu ninho uma última vez e, como se o fitasse com uma imaginária fronte crispada, a terra pulsou visivelmente.

Então, rugiu o vento forte que, sem qualquer explicação sensata, não levantou uma toalha sequer, mas apenas vasculhou com furor a cabeça das pessoas e tudo o que se punha acima delas. A armação de madeira, como se a base não fosse importunada pelo tornado, resistiu integralmente, embora os encerados desde o primeiro instante em que sibilou a fúria já sobrevoassem em círculos os arredores da casa.

Óculos, gravatas, lenços e alguns chapéus perderam-se num instante só. Os convidados, sem compreender o fenômeno, levantavam-se e, desequilibrados, iam direto ao chão, onde, aliás, encontrava-se total segurança. Ali não havia vento, seria possível jogar cartas sobre o encerado disposto para cobrir a areia.

Nervosos, os presentes não se apercebiam desse estranho detalhe e continuavam erguendo-se e debatendo-se com outros na tentativa de permanecer em pé. Assim, o episódio grotesco seguia seu curso, até que um grito horripilante escapasse da garganta de Vítor. Mas fora horripilante apenas para ele mesmo, pois os demais, apavorados com o vendaval, não conseguiram ouvi-lo.

O menino viu quando, do ninho verde, ergueu-se a terra a uma altura de aproximadamente meio metro e uma fenda nela escancarou-se, logo atrás da Marta, que, sem assistir a tal absurdo e agarrando-se a Isidro, lutava contra sua queda.

Em seguida, Vítor percebeu uma impressionante alteração do fenômeno. Foi como se um assopro se transformasse em sucção. E assim, escapando-se de Isidro, a irmã já inclinava-se na direção da fenda que se abria sob as folhagens do ninho verde.

Num esforço sobrenatural, o menino lançou-se à frente, agarrando-a pelo quadril, enquanto Isidro, inocente quanto ao fim que se dava ao evento, abraçou o pequeno cunhado pelas pernas. Pouco a pouco, em coisa de minutos, ao passo que os três atarracavam-se uns aos outros, enfraqueceu-se a fenda, Vítor observando-a sempre. Foi quando ele voltou a ouvir aquele sussurro, mas agora em outras palavras:

- V-í-t-o-r, V-í-t-o-r, o v-é-ú, o v-é-u...

Vítor, compreendendo a situação, ajudou o alvo véu a desvencilhar-se dos trajes da Marta. E, enquanto, a fúria do vento arrefecia, viu seu pedaço de chão, talvez com todas as forças desperdiçadas no insucesso que já se acabava, tragar lentamente o véu da noiva, até fazê-lo desaparecer dentro de um pequeno risco na areia seca.

Capítulo 10 (Epílogo)

Bem, o vento se foi, a festa continuou e Marta viveu feliz com Isidro. Mas o episódio, que só eu conheci, jamais saiu-me da cabeça. Hoje, com quarenta anos, volto à terra que, por razões outras, meu pai vendeu logo depois do casamento de minha irmã.

A chácara, visivelmente desamparada pelo proprietário atual, ainda resiste com as velhas estruturas. A casa com as paredes rachadas, o alpendre escorado, as pastagens secas e abandonadas, as árvores desfolhadas e doentes compõem o tom melancólico. O ninho verde não é mais verde. Tudo secou naquele pequeno pedaço. A terra também mostra-se envelhecida, tingida de uma negrura estranha.

Por um instante, vagou em minha mente a idéia que de algum modo aquela terra vingara-se de sua derrota do passado, mas logo o receio de estar enlouquecendo afastou-me de tal desvario. Pedi permissão ao dono, um inveterado jogador alcoólatra, para ver o lugar. Bêbado, ele mal me respondeu:

- Faça o que bem entender... Quer comprar aquilo?

Dou alguns passos em direção ao lugar onde naqueles tempos florescia o ninho verde e uma súbita sensação revela-se para meu temor. Incomoda-me um frio estranho que num lapso traz-me à memória o dia do casamento da Marta, mas logo vejo que se trata apenas de sugestão (Deus, eu jamais me esqueci de qualquer um daqueles detalhes pavorosos!).

Ao contrário de qualquer inverno, o sol é abrasador. Estamos em pleno mês de janeiro e o mormaço faz reverberar logo adiante capoeiras e leiteiros na triste pastagem. Livrando-me da miserável hesitação que me humilha por um instante, recomponho-me e invisto contra meu receio. Não há nada aqui, só uma areia seca, sem vida, misturada a gravetos e pedregulhos marrons.

Agacho-me exatamente sobre o lugar onde tantas vezes adormeci confortavelmente, risco o chão com o indicador, uma nostalgia bate à minha porta. Teria sido tudo uma ilusão de criança? Irrito-me comigo mesmo. Depois de tudo que passei naqueles dias!

Mas, por mais que este pedaço de terra tenha causado-me o desgosto, não lhe guardo mágoa. Talvez porque as coisas acabaram bem. Faço menção em levantar-me, mas algo ainda atrai-me a atenção. Um minúsculo ponto branco brilha em meio à areia escurecida. Intrigado e com o peito em crescente ebulição, estendo o braço até o incógnito objeto e, comprimindo o polegar contra o indicador, resgato-o da aridez. Do início ao fim, sem uma nódoa sequer, nasce da terra um alvo véu de noiva, afagando-me o rosto conforme a brisa e, pela contundente emoção, arremessando-me ao solo morto.

(Fim)

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