Aquela bala de hortelã – 5

Numa das últimas vezes em que fui à casa de Elisa, percebi que havia um clima diferente dos outros dias. A senhora Wander tratou-me com educação, claro, mas não foi a mesma de sempre, preocupando-se muito em esconder os olhos vermelhos de ter chorado recentemente. Elisa deu a ficha: os pais tinham discutido outra vez. “Outra vez”? Sim, as discussões que nunca haviam ocorrido, agora tornavam-se freqüentes. O motivo era simples: depois do quase-acidente na estrada, a senhora Wander não suportava mais viver daquela maneira e desejava a todo custo levar o filho para um tratamento psiquiátrico, embora não tivesse certeza de que algo assim pudesse resultar em benefícios para ele. Já Damião Fausto interpunha-se.

- Mamãe também reclamou de umas coisas que o Papai está pedindo ao Homero. Ela o chamou de aproveitador.

Daí em diante, as coisas apenas pioraram. Elisa também vivia chorando, o que me deixava terrivelmente triste. Por várias vezes, cheguei a desejar que Damião Fausto fosse embora e nunca mais voltasse. Mas ele sempre voltava. Até que numa tarde, começo de primavera, um sol escaldante clareando outra vez os ipês floridos que dividiam ao meio as duas avenidas de Mirante Norte, estava com minha bicicleta deixando o Armazém Central, onde escolhera algumas frutas a pedido de mamãe, quando Damião Fausto freou bruscamente seu pequeno caminhão Chevrolet, aquisição recente, e abriu um sorriso em minha direção:

- Vamos lá, Rômulo, bote a bicicleta aí em cima e vamos com a gente!

Ele ia animado com seu novo veículo. Homero estava ao seu lado, olhando-me com a face mais inexpressiva do mundo. Então, abri a porta, pus a cesta de frutas sobre o banco, ao lado do garoto, e preparei-me para erguer a bicicleta e instalá-la na carroceria. Nesse intervalo porém, ouvi Homero desesperar-se depois de um grito de pavor:

- Pobrezinho do Papai, pobrezinho do Papai... Não, Papai... Não, Papai...

Meu coração ameaçou desgarrar-se de veias, vasos e artérias. Quis mesmo comprimir-se e subir pela garganta, saltando, apavorado, boca afora. Enquanto eu empreendia minha luta contra esse desejo enfurecido do coração e contra todos os receios que recaíam sobre minha alma naquela hora angustiante, observei que, num salto, Homero agarrou-se a Damião Fausto, beijando-o com aflição, esfregando-se contra a face do padrasto e repetindo:

- Pobrezinho do Papai, pobrezinho do Papai... Não, Papai... Não, Papai...

Foi quando tive pena de Damião Fausto. Certamente mais aflito do que eu e mais agoniado do que o próprio enteado, tornou-se branco como cera. Assim como eu, ele sabia que algo estava para acontecer e tudo levava a crer que a vítima, dessa vez, seria ele mesmo: Damião Fausto. Num fio de voz que retinia fino de sua garganta, ele ainda interpelou o menino:

- O que foi, Merinho? O que foi, Merinho?

Mas ia ser tarde. Do outro lado da rua, debaixo de um ipê cujos galhos arroxeados sacudiam levemente, fazendo dançar ao vento as pétalas de suas flores voluptuosas, o fazendeiro Tonico Fortes em pessoa, sem capanga ou matador, já erguia na direção do Damião Fausto sua garrucha de dois canos.

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