Aquela bala de hortelã – 3

Elisa. Esse é o nome da irmã mais velha de Homero. Naquele ano que se iniciava, estudaríamos na mesma classe de primeira série ginasial. Engraçado recordar-me disto, mas eu jamais havia reparado nela. Seria a idade? Naquela época, estávamos mais preocupados com muitas outras coisas antes de pensarmos em garotas. Seria a roupa de ginasiana: saia um pouco acima dos joelhos, com pregas que encorpavam quem a vestisse, além de uma blusa branca que, fofa, emprestava às meninas uma conotação de quase-mulher? Não sei dizer o que seria, mas quando a vi sentada no pátio à espera da aula, chupei seguidamente um pacote inteiro de balas de hortelã.

Minhas pernas tremeram no jantar daquela noite quando, à mesa, eu disse a mamãe e papai que Elisa estudava na minha classe. Eles entreolharam-se de maneira estranha e depois, em silêncio, não conseguiram disfarçar certo incômodo. Ao meu lado, minha irmã Helga fez, em meio às garfadas, um comentário cujas conseqüências só serviram para piorar as coisas:

- Ela está muito sozinha este ano...

Helga é dois anos mais velha do que eu e a maneira como se expressou sobre Elisa foi sintomática, cravando no ar um olhar de comiseração. Eu sabia que havia algo errado, mas não podia interpelar minha irmã ali, na frente de meus pais, cujas reações suscitadas pela simples menção ao nome de Elisa apresentaram um ar de tamanho desconforto. Até o fim do jantar, não se falou mais sobre o assunto. Tão logo Helga subiu para o quarto, eu pude então pedir-lhe algumas explicações.

Minha irmã sempre foi muito discreta. Naquela época, ela contava catorze anos, mas já parecia ser uma moça de dezoito por seu comportamento sóbrio e não afeito a criancices. Embora de início ela tenha me cutucado sobre o repentino interesse por Elisa, já suspeitando de meus sentimentos, colaborou conforme minhas intenções. Explicou-me que desde o casamento da senhora Madalena com o representante comercial Damião Fausto, o que a tornou senhora Wander, em razão do sobrenome dele, os moradores de Mirante Norte passaram a afastar-se aos poucos de sua convivência. Na cabeça de minha irmã, a razão para isso era que a senhora Wander esperara muito pouco tempo para abandonar a viuvez e casar-se novamente.

Havia, contudo, outro motivo, este sim decisivo para que o isolamento da senhora Wander crescesse a cada dia: o tal Damião Fausto era visto com reservas pela sociedade mirantina. Ninguém sabia ao certo o que ele vendia e para qual empresa trabalhava. Além disso, para alargar ainda mais a antipatia geral, Damião Fausto tinha sido, há coisa de seis ou sete meses, responsável direto pela morte do jovem professor Hildebrando, filho do fazendeiro Tonico Fortes, um dos homens mais ricos de Mirante Norte. Resumidamente, o acidente deu-se assim: numa madrugada, Hildebrando deixava o clube social, cuja sede localizava-se bem na entrada da cidade, quando Damião Fausto apontou com seu automóvel em alta velocidade para os padrões da época. A rua estava deserta e chovia muito. Damião Fausto não parou e o professor morreu ali mesmo, com a boca vazando sangue nos paralelepípedos. No outro dia, Damião Fausto alegou não ter percebido o atropelamento em meio ao aguaceiro, mesmo que o pára-choque de seu carro estivesse todo amassado. Bem, o fato é que misteriosamente ele foi julgado e considerado inocente. Com isso, a cidade, incluindo é claro o fazendeiro Tonico Fortes, nunca se conformou.

Essas informações eu as obtive com minha mãe. Lógico que os detalhes só chegaram ao meu conhecimento muito mais tarde, mas grosso modo dava para compreender por que sempre viravam a cara para a pobre senhora Wander e, de quebra, para seus filhos, Homero e Elisa.

As semanas daquele novo ano correram feito loucas e, com o tempo e a ajuda de Helga, pude fazer amizade com Elisa. No intervalo das aulas, sempre chupávamos muitas balas de hortelã. Meu Deus, eu nem me lembrava mais das histórias a respeito do Damião Fausto, tal era o meu desejo de permanecer ao lado dela. Um dia, tomei coragem e pedi à minha mãe para que me autorizasse a fazer a lição de casa com ela, mas a resposta foi negativa. Lógico, fui assim mesmo. A senhora Wander, que quase sempre encontrava-se sozinha com Homero e a filha, pois o marido viajava constantemente, passou a considerar-me muito. Pobrezinha, em todas as vezes que lá estive naqueles outono, inverno e começo de primavera de 1962, acho que presenciei apenas a visita de uma ou duas pessoas, assim mesmo uma sendo sua parente de outra cidade.

Assim, enquanto meus amigos achavam que eu estava em casa estudando, e minha mãe pensava que eu havia saído com meus amigos, um ou dois dias por semana eu sempre dava um jeito de ir ver Elisa. Com essa freqüência, foi impossível não perceber algumas situações estranhas provocadas pelo soturno Homero. Embora eu não pudesse compreender exatamente o que se passava, porque eu e Elisa estudávamos longe dele, era algo perceptível o esforço da senhora Wander para disfarçar certas reações do filho, procurando desfazer até mesmo o constrangimento que eu descobria nos olhos de minha amiga.

Numa ocasião, estávamos com os livros abertos no escritório de Damião Fausto, quando ouvimos o choro copioso de Homero em seu quarto. Elisa correu para lá, enquanto eu, talvez por respeito a algo que imaginava constrangedor para a família, permaneci ali, quieto, apenas ouvindo o menino lamentar:

- Pobrezinha da vovó, pobrezinha da vovó...

Demorei somente alguns segundos para entender que Homero possuía uma espécie de sexto sentido. Dali a pouco, enquanto a senhora Wander consolava o filho, o telefone preto tocou na sala. Do outro lado da linha, comunicaram a morte da avó de Elisa. Enfarte.

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