Aquela bala de hortelã – 1

O verão de 1962 foi de derreter os miolos. Pelo menos era isso que costumávamos ouvir com freqüência nas conversas preguiçosas dos vizinhos e conhecidos quando andávamos pelas ruas logo após o almoço. Não, isso não quer dizer que não havia chuvas. Chovia constantemente. As enxurradas encarregavam-se de trazer muita terra das encostas e despejá-la nas calçadas. Quando o sol ressurgia e as nuvens desapareciam do céu, lá iam os moradores, especialmente os comerciantes, com suas enxadas em punho, raspar os ladrilhos barrentos. Mas esse trabalho pouco adiantava, porque dali a algumas horas ou no máximo em dois ou três dias, o aguaceiro despencava novamente e a lama cobria tudo outra vez. Para nós, estudantes do quarto ou quinto ano, tanto os dias de sol como os dias de chuva representavam ocasiões para aventuras, às vezes bem sucedidas, em outras...

Estudávamos de manhã, e as tardes, cumpridas as tarefas escolares, pareciam esperar-nos de braços abertos com sua brisa quente e a claridade intensa da época reservada ao calor. Lembro-me de que escovava os dentes, no piso superior de nosso pequeno sobrado, enquanto pelo vão da janela do banheiro observava ansioso se os outros garotos já estavam à minha espera lá embaixo, à beira do gramado limpo, com seus dois ou três pequenos canteiros de cravos e rosas, que separava a rua e a varanda de casa. Com nossas bicicletas, rodávamos boa parte dos arredores da diminuta cidade. Se nossos pais consentiam? Ah, sim! Você não pode imaginar como eram sossegados aqueles arredores naqueles tempos. Havia trechos em que sabíamos onde desviar de pontas de raízes ou de galhadas prontas a surpreender um forasteiro desavisado. Conhecíamos uma infinidade de rotas em meio à pequena selva da parte alta, pouco antes do início das construções que compunham a zona urbana. Ali, muito perto, havia o acesso para quem vinha da rodovia. Era asfaltado.

Dois quilômetros, talvez alguns metros a mais, separavam em grande declive a rodovia e a entrada da cidade. Em certos horários, o movimento de pedestres era maior nesse percurso do que em qualquer outro local. Isso porque as pessoas viajavam muito mais de ônibus. Para ir a cidades próximas, bastava dirigir-se à rodovia e sentar-se no banco do ponto dos interurbanos. Poucos entravam em Mirante Norte, mas muitos passavam à sua porta e alguns programavam paradas. Gostávamos de aproveitar essas horas para exibir nossas habilidades sobre duas rodas, disputávamos nosso grande prêmio.

Em seis ou sete privilegiados donos de boas máquinas, como fazíamos questão de chamá-las, pedalávamos com extrema dificuldade rumo ao topo da estrada de acesso. Nunca conheci outros dois quilômetros tão longos como aqueles, mas subir montados nas bicicletas compunha requisito básico para a disputa da corrida. Quem não suportasse a ladeira bravia, podia considerar-se desclassificado. O Joca, apelidado Joca Fangio por sua afeição ao automobilismo e por tratar-se de nossa singela homenagem ao grande campeão, controlava a pontuação. Nossas temporadas eram semestrais. A cada mês, cumpríamos no máximo dois grandes prêmios, em razão de motivos que ainda serão dispostos. Fangio anotava as colocações em sua prancheta e orgulhava-se de ser tratado por “senhor juiz”. Corpulento aos 11 anos, jamais conseguiria subir a ladeira, e se pudesse fazê-lo, talvez fosse muito pior. Onde daria uma bicicleta embalada ladeira abaixo por seus mais de cem quilos?

A chegada, aliás, constituía-se na nossa principal preocupação. Logo ao final da via de acesso, às margens da cidade, o asfalto simplesmente acabava, seguindo-se algo em torno de cem metros até o início da avenida principal de Mirante Norte, pavimentada com paralelepípedos. Descer em alta velocidade pelo asfalto e adentrar um trecho de terra, em que na estação das chuvas os buracos cresciam descaradamente, significava um grande risco de acidentes. Talvez para vingar-se de sua frustração por não poder participar das corridas, Fangio procurava posicionar-se, como juiz, sempre muito próximo ao fim do asfalto. Dali em diante, por mais que você tentasse frear, as dificuldades de parar a bicicleta eram imensas.

Estávamos posicionados para a largada, na cabeceira da pista. Aguardamos os passageiros descerem do ônibus e percorrerem alguns metros estrada abaixo e, então, ouvimos o apito do Pinóquio, um menino de nariz grande, auxiliar de Fangio, e cujo impedimento de participar conosco dos grandes prêmios não era físico, mas financeiro. Pinóquio, de família pobre, não tinha bicicleta. Ao menos não naquela época. Mais tarde, eu me recordo, ele teve uma, mas os pneus viviam na lona, a corrente mal encaixava-se aos dentes e o guidão quase nunca obedecia as manobras, o que sempre o deixava fora das competições.

Bem, mas quando soou o apito de Pinóquio, nós largamos. A estrada de acesso seguia, mais ou menos, as seguintes características: os primeiros duzentos metros eram retos, em declive manso que progredia sucessivamente daí em diante. Nesse trecho, costumávamos exibir-nos para aqueles que tinham descido do ônibus e a pé seguiam para a cidade. Fazia parte do ritual. Era como se quiséssemos nos apresentar a eles e chamar a atenção para uma eventual torcida. Fazia-nos bem fantasiar que alguém dispunha-se a torcer para um ou outro durante o trajeto. Ao atingir os primeiros duzentos metros, as bicicletas começavam a aumentar a velocidade, até chegar a meio quilômetro. A essa altura, já tinham ficado para trás duas curvas abertas e fáceis de manobrar.

Dos quinhentos metros até quase o primeiro quilômetro, o terreno exigia muito dos ciclistas, pois sua planície não possibilitava manter a velocidade obtida no forte declive anterior. Era preciso pedalar muito para não perder posições até o início do segundo e último quilômetro. Dificilmente alguém que liderasse a prova nessa altura conseguia perdê-la. Tudo começava com um arco à direita. A sensação ali não pode ser descrita para quem nunca cumpriu o percurso numa bicicleta. A descida tornava-se íngreme à medida que você contornava o arco. Na primeira vez, o mais correto seria confessar desespero, mas quem vivia esse desespero nunca deixaria de pensar em vivê-lo novamente. Cumprido o arco, o acesso seguia à esquerda em extensa curva leve, mas sempre em declive, até quase a quinhentos metros do final. E aí reuniam-se todos os perigos.

A ladeira parecia afundar-se num precipício. Os novatos, não poucas vezes, freavam desesperadamente suas máquinas e deixavam de cumprir esses últimos metros do percurso. A impressão comum era que você iria de cabeça e a bicicleta saltaria sobre suas costas, atingindo solitária o grande final. Por esses riscos é que disputávamos apenas uma ou duas corridas por mês. Se o fizéssemos de maneira mais regular, talvez nossos pais descobrissem os campeonatos e até mesmo vendessem nossas bicicletas. Não que as denúncias deixassem de chegar a um ou outro, mas com muito jeito desmentíamos tudo e cuidadosamente providenciávamos a suspensão temporária das competições até que o assunto esfriasse.

Mas deixe-me voltar ao apito do Pinóquio e ao grande prêmio daquela tarde de verão, em fevereiro de 1962. Saímos em sete. A largada obedecia à colocação da prova anterior. Como eu havia vencido a única corrida que pudemos realizar em janeiro, posicionei-me à frente. Por assim dizer, tinha a pole garantida. À minha esquerda, na segunda posição, vinha o filho do doutor Alcebíades, médico de Mirante Norte, um bom sujeito, mas um tanto exibido demais para nosso gosto. Em terceiro, posicionava-se o Arthur, que pelo fato de nunca ter vencido uma prova ganhara a alcunha de Palerma. Depois, vinham o Neco Onça, meu melhor amigo daquela época, cujo apelido originava-se nas inúmeras pintas que desenhavam todo seu corpo; o Sete e Meio, imbatível nesse jogo de cartas e que todos nós tínhamos como perfeito ladrão, porque era certo que roubava, mas ninguém conseguia flagrá-lo; e os gêmeos Sílvio e Sálvio, de aparências tão semelhantes que seus adversários de grandes prêmios, incluindo-me, desconfiavam de uma séria trapaça no ano anterior, quando Sílvio precisava vencer a última prova para conquistar o título. Se isso não ocorresse, a vitória seria do Palerma, que sempre chegava em segundo e por isso somava muitos pontos. Assim, quando todos achavam que estaria quebrado o jejum do Palerma, pois Sálvio havia cruzado a linha final, bem diante do Fangio, eis que o vencedor se apresenta como Sílvio, para espanto geral. Mas como desmentir? A partir desse episódio, Fangio determinou que os gêmeos deveriam apresentar-se sempre com roupas distintas durante as provas, o que acabou com qualquer suspeita futura, mas para o azarado do Palerma, o estrago já estava feito.

Bem, o Pinóquio apitou e nós largamos. Ao contrário do que vivíamos fazendo, ou seja, desperdiçando tempo em acrobacias e cumprimentos aos passantes, minha estratégia era enfiar todas as minhas forças nos primeiros cem metros, abrir uma boa vantagem, já que havia largado na frente, e depois apenas administrar bem os meandros do percurso para alcançar a segunda vitória da temporada. E assim o fiz. Quando iniciamos o primeiro declive, percebi que os demais só agora começavam a perceber minha boa dianteira. Então, conforme a descida aumentava progressivamente, pedalei ainda mais forte, até não poder mais. Minha velocidade foi estupenda.

Ao concluir a segunda curva que levava aos primeiros quinhentos metros, olhei para trás e não vi qualquer outro competidor ao meu encalço. Percebi também, de relance, que subiam a ladeira a senhora Wander, como apreciava que a chamassem, por tratar-se do sobrenome de seu segundo marido, e seu filho Homero, de cinco ou seis anos, cujo pai, o primeiro esposo da senhora Wander, havia falecido há dois anos. Esse garoto, coitado, sempre fora esquisito. Eles eram nossos vizinhos de rua e dizia-se que às vezes até mesmo a mãe, o padrasto e a irmã mais velha assustavam-se com suas reações inusitadas. Ao passar pelos dois, que decerto tomariam o próximo ônibus lá em cima, ouvi o Homero dizer algumas palavras, o que também era muito raro, e voltar-se com o rosto coberto pelas mãos para o lado da mãe. Em minha concentração na corrida, levei algum tempo para decodificar os signos pronunciados naquela mensagem. E ao fazê-lo, não houve tempo para mais nada. A senhora Wander e o Homero ficaram para trás e minhas pedaladas, como era necessário naquele trecho, fizeram com que a corrente bradasse forte no eixo traseiro, mas meus pensamentos viajaram para o semblante inquieto do garoto e também para suas poucas palavras ditas à margem da estrada. Era tão raro ouvi-lo falar... Nisso, detive-me à sua frase, compreendi, mesmo com retardo, o que ele havia dito, e nada mais era do que isto:

- Pobrezinho, mamãe. Que tombo feio!

Ao sabê-lo, uma reação estranha e automática incumbiu-me de tentar frear a bicicleta. Apertei como pude a haste esquerda sob o guidão. Antes de qualquer efeito, contudo, o pneu dianteiro chocou-se contra uma pedra, estourou e atirou-me, em meio a horrendas cambalhotas, a cinco ou seis metros abaixo. Tudo escureceu à minha volta e eu permaneci em coma por uma semana. Foi a primeira vez que eu soube por que de vez em quando a família de Homero assustava-se com ele.

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