Vozelindo

Alvorecer. Ele parece pisar em falso em seu progresso pela estradinha que liga o pequeno sítio à cidade. Vai meio assim, de banda. O primeiro sol bate em meia face. No encalço, emendam-se os netos pequenos: o Pedro e a Lúcia. De manhã, sempre é assim. Leva as crianças e as verduras. Enquanto estudam umas, vendem-se as outras.

Cultivar alfaces, couves e chuchus foi o que lhe restou depois do derrame. Um lado só, responde aos que perguntam dos efeitos. O outro mexe como antes.

Para os netos, a família e os outros, junta à aparência todo o ânimo que sobrou, mas assim mesmo é preciso buscar mais, não se sabe onde. De si para si, põe-se renitente. Arrastar o peso dum lado não lhe convence nem um pouco.

Atende com a cortesia de sempre às felicitações pelo restabelecimento, mas intimamente pede a Deus que lhe mande a outra parte do castigo. Enquanto espera o fim da manhã e da aula dos netos, senta-se num banco diante da quitanda.

Ali, põe-se a pensar na vida, em seus dias de saúde, no trabalho pesado do campo, na mangueira de vacas leiteiras, no estábulo com os cavalos mastigando milho, nas sacarias empilhadas das tulhas.

Também as coisas ruins sobrevêm: a geada brava, a estiagem rude, a morte da mulher Antonia, a saudade doída. Mas nada disso justifica tornar-se metade, pensa ele. Olha com desdém para a mão retorcida, tem vontade de chutar a perna adormecida. Queixa-se a um compadre. De que me vale ainda a vida assim?

Dali a pouco, vem a quitandeira. Teresa é seu nome. Foi ela quem lhe sugeriu o cultivo das hortaliças, um trabalho leve e que distrai. Disse-lhe isso naquela vez, e ele aceitou. Sempre aceitava o que lhe dizia Teresa. Os dois já estão velhos, é verdade. Mas têm histórias para guardar. Até outro dia, ainda misturavam-se debaixo dos lençóis.

Quando ainda nova, a mulher Antonia tinha-lhe olhos grudados, desconfiava de suas peripécias, mas assim mesmo ele escapava para ir ver a Teresa de marido viajante. Depois, na beira da velhice, a mulher Antonia, aos poucos, desviou-se desses desejos. Mas ele não. A quitandeira também não. O marido viajante viajou para sempre, e os dois então viram-se livres de uma vez.

Agora, entretanto, o castigo do derrame tomou-lhe a precisão. Teresa o consola. Até se diverte: já se fez muito. E sorri. Mas para ele, resta só um meio homem, assim mesmo: de que me vale ainda viver? A Teresa sacode o avental e entra.

Lá adiante, na direção da escola, desponta a figura do Pedro. Vem em disparada o menino. Cadê a Lúcia? É o que pensa o velho, erguendo-se com dificuldade – quando ele se senta por muito tempo, os movimentos parecem diminuir. Geme para resgatar a perna de seu calabouço.

Antes que o neto chegue, ele vai ao seu encontro, arrastando-se, ofegando. Vai meio assim, de banda, o lado esquerdo endurecido. Apesar de intrigado, não esquece de se maldizer e à sua condição. Pede sempre a Deus pelo restante do castigo mandado a prestação.

E a sua irmã? Mas o Pedro só olha para o avô, está quase sem fala. Com esforço, balbucia umas palavras: o moço, o homem chamou... Agora, o velho despreza seu estado, arremete à frente num ímpeto doentio, mas não pode agir como deseja, esforça-se como um burro que conduz o arado, puxa com brio sua metade desfalecida.

Onde? Onde? Segura o braço do neto sem ter tempo de mirá-lo. Por ali. O menino aponta um terreno baldio. Há mato alto em meio a escombros de antigas construções abandonadas. O percurso torna-se ainda mais injusto para um velho doente. Já lhe falta o fôlego, tanto que havia para ele em outros tempos.

Avançam os dois, avô e neto, por entre o capim e a alvenaria despedaçada. O pequeno tropeça, voa por sobre tijolos e madeiras apodrecidas, o risco de sangue na testa, porém, não suspende sua investida. Segue atrás do velho, que já não pode com as palavras. Por pouco, não se sustenta mais sobre a perna sadia. O cansaço transforma-se em dor, uma dor que se espalha depressa. A visão se embaça. Ele percebe, então, que pode lhe faltar o tempo.

Estão quase no fundo do terreno. A força se esvai, ele tem plena consciência. Foi assim que começou o outro, ele se lembra. Seu pedido, enfim, será atendido, mas agora clama por um prazo maior, só um pouco mais. Diante dele, os feixes de capim são apenas finas sombras escuras que pendem à brisa. Mas assim mesmo ele continua. E ali está a Lúcia. O velho sabe que aquela criança que ele não pode mais distinguir é sua neta. Preparando-se para atirar-se sobre ela, há um vulto qualquer. Ele sabe que se trata do moço, o homem ao qual se referiu o Pedro. Num instante absurdo, salta sobre ele e engancha-se em seu pescoço. Com o auxílio do outro, o braço aleijado serve como alavanca. Um pescoço é espremido. O peso do corpo meio-morto cai sobre o vulto. E ali permanece. A outra parte do castigo recaiu-lhe, enfim. O Pedro retira o lenço que amordaça a irmã. Logo, sob sua expressão de desespero, a voz rouca que brama pelo Vozelindo atrai a atenção dos vizinhos. Vem a Teresa, vem o compadre, vêm um e outro conhecido. Diante de todos, atarracam-se dois homens que morreram há poucos segundos, sufocados, asfixiados, sem compreender por que vivem mais ou vivem menos.

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