Menino deitado no pasto

O primeiro brilho da noite jovenzinha despontou lá pelos lados das paineiras ainda verdes manchadas dos fiapos brancos do algodão que escapa. Está mesmo entre o tronco e uma galhada longa que inibe a pobre amarelinha ao pé da árvore grande. É lá. Surgiu agora há pouquinho, enquanto esticávamos sobre a pastagem nossos sacos de estopa. Eta, mas que noite calorenta esta aqui. O rumor do brejo lá embaixo sobe como se pedisse o favor duma brisa, aquelas rãs todas e seus sapos preguiçosos chiando por conta de tantos grilos afoitos. Valha-me Deus, Tio Franco, e esses besouros? Mais acima, dentro da sala de porta entreaberta, a chama do pavio ensopado do lampião serpenteia de leve, numa calmaria extrema. Venha cá, Tia Rita. Mas ela não vem. A Tia Rita deitada na grama, quem pode com isso? Mas nem a cadeira ela traz, como antes. Só me sento, menino, só me sento. Agora nem me dá resposta.

Outra estrela já vem. Mete-se piscando entre as duas paineiras menores, à direita da mais alta. Olha lá outra, Tio Franco. E mais outra. Cai a noite, sobem as estrelas, brilha o céu. Nisso, alumia lá da estrada um facho lento e avermelhado, sacoleja. É cavaleiro. No meio dos vaga-lumes ariscos, o fiapo de luz segue até a casa, de onde sai a Tia Rita num boa-noite-Seu-Tonho-que-quente. Lá vai o Tio Franco. Nunca gostei de tal procedimento: é passar vivalma no caminho e pronto: já se abandona o posto. Desse modo, como se faz a contagem das estrelas que andam? Depois, não reclame se conto a mais. Os três juntam-se em roda, ainda na passagem. Seu Tonho testemunha em alta voz que sim, está calor, e que já mesmo as vaquinhas de leite ressentem-se da aflição que é ver de pouco em pouco a pastagem pedir água e não haver, mas não demora a chegar, que ainda ontem clareou a madrugada com o céu riscado ao longe.

A Tia Rita manda entrar para o alpendre, que se sentem um pouco e ela traz um café fresquinho. Tenho vontade de dizer que vá embora o Seu Tonho, pois o Tio Franco tem o que fazer esta noite.

As três-marias e as três-mariazinhas nunca que podem andar, isso é certo. Só podem mover-se as que não têm nome e nem conhecidas são. Dessas a noite está cheia, mas é preciso atenção, firmar a vista sem descuido nenhum, até que uma coisinha minúscula se denuncie entre tantas outras e faça o caminho até o mar, acabando num estrondo que se pode ouvir a qualquer lonjura. Olha lá, atrás da casa clareou num repente, mas só uma vez. Se o Seu Tonho estivesse cá fora, já voltaria à ladainha da chuva que não se demora por causa desses relâmpagos. De lá de dentro, não dá pra se ver. Então, ele deita conversa. O caçula, para o São João, dá-lhe um neto, é o quinto ou o sexto? O Seu Tonho faz motejo dele mesmo e põe-se a contar nos dedos pelos nomes, um tal de inho aqui e inho lá, até que acaba. Eles três estão quietos depois da contagem de tantos netos do Seu Tonho. O Tio Franco e a Tia Rita ficam assim de cabeça baixa. Alumiados pelo lampião, eles parecem tremer. Até que a Tia Rita levanta-se para passar o café.

Sai Lobo, se o Tio Franco chega, você está frito. Fica aí na estopa dele, fica! O Lobo faz dias que não me lambe. Parece estranho esse cachorro quando me olha com as orelhas empinadas desse jeito sem, no entanto, agir. Preciso avisar o Tio Franco disso e saber o que ele acha, se nosso Lobo vai ficando louco, que dó! Num instante, chega até a ganir, inquieto. Às vezes dá medo.

O cheiro do café atravessou as folhagens e veio dar bem aqui. A Tia Rita põe a bandeja na mesinha e os três levam todos juntos as xícaras para chupar a bebida fervendo. O Seu Tonho solta a saudade da Francisca que fazia um café assim, tanto muito forte como este. A Tia Rita emenda com amarga admiração que já faz dois anos. É sim, o tempo passa, não é mesmo? O velhinho suspira, suspira. A cabeça pende como agora há pouco curvaram-se os três. O tempo passa, ainda vai repetindo o Seu Tonho. E o Tio Franco não sabe se isso é verídico porque duvida que seja desse modo: parece que não passa nunca, isso que é! Eles todos já devolveram as xícaras e, por um atalho, o Seu Tonho acha jeito de dizer que passa sim, vocês vão ver. A Tia Rita leva as mãos até as maçãs gordas do rosto e balança a cabeça pra lá e pra cá. Não vejo a hora do Seu Tonho ir embora com umas conversas que só chateiam. Não gosto de ver a Tia Rita entristecida, chorando como está. O que será agora? O Tio Franco podia levantar de lá e espreguiçar-se daquele modo que não há quem não entenda o enjoamento da ladainha.

O menino faz falta até a nós que só vamos de passagem. O Seu Tonho fala assim de que menino? A Tia Rita chora mais. O Tio Franco lastima-se também: só nós é que sabemos. Os três estão lá no alpendre e uma brisa muito fraca que sopra agora faz tremeluzir em redor do lampião cada uma de suas figuras silenciosas. O Lobo me vigia de orelha em pé, como se visse um fantasma, o chiado do brejo ecoa distante, as paineiras até que enfim se mexem com a chegada do ventozinho, enquanto no céu cintilam todas as estrelas que se juntaram esta noite pra dizer que nada morre e que nada pode ser triste.

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