A segunda via de Glauber Rocha – Texto de Fernanda Villas Bôas

O inventor do cinema novo, que usou metáforas para escancarar as contradições sociais do Brasil moderno, nem se lixava para as próprias contradições: ele se aproximou de Geisel e foi um machista intolerável, mas nunca deixou de defender as liberdade individuais

A frase foi inventada para ele: “ame-o ou o odeie”. Glauber Rocha, o mais visceral dos cineastas brasileiros, nunca provocou meias paixões. Era raivoso, nervoso, indócil. Tinha pressa para viver e não parava nunca. Talvez soubesse que morreria antes dos 60 anos (no mês passado, fez 26 anos que ele morreu) e, embora detestasse a idéia, sabia que um dia viraria um mito.

Hoje, quem não conhece Glauber Rocha, sustenta-se sobre a definição-chavão do cinema novo: “uma câmera nas mãos e uma idéia na cabeça”. A frase, atribuída a ele, é necessariamente impactante para introduzir os iniciados aos efervescentes anos 60, mas perigosa o suficiente para limitar a produção do cineasta à filosofês de botequim (não que filosofês de botequim não seja sábia – o que não se pode é abusar dela).

Seus três filmes mais importantes datam exatamente daquela década: “Deus e Diabo na Terra do Sol” (1964), “Terra em Transe” (1967) e “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro” (1969). São filmes marcados pela estética crua, pela profusão de idéias e pela síntese dessas duas expressões numa cara alegoria.

Dizem que o cinema novo representou para o Brasil o que neo-realismo representou para a Itália e a nouvelle vague para a França. Embora colonialista, a comparação é inevitável. Se a Itália viu-se em ruínas depois da 2ª Guerra Mundial e a França abandonou seu verniz amarelado para molhar o rosto de Narciso com água fresca, o Brasil inventou o cinema novo para alertar os brasileiros sobre o estado caótico da casa. Autoritarismo, contradições sociais, safári cultural, desigualdades crescentes – Glauber denunciou tudo, só que por meio de símbolos e metáforas.

O que ele desejava era transformar discurso em arte. Raciocinou certo: nada melhor do que o cinema para converter imagens e palavras numa mensagem transparente. O problema é que nem sempre essa mensagem era digerível. Mas Glauber virava às costas: “No Brasil, o cinema novo é uma questão de verdade e não de fotografismo. Para nós, a câmera é um olho sobre o mundo, o travelling é um instrumento de conhecimento, a montagem não é demagogia, mas a pontuação do nosso ambicioso discurso sobre a realidade humana e social do Brasil”.

Se havia erros e inflexões fora de hora, se faltava lastro e sintonia entre atores e cenários e se sobravam destemperos formais – ao diabo! (na Terra do Sol). Mas se os críticos quisessem enxergar uma estética naquela profusão de elementos em cena, melhor ainda. O importante era experimentar e conceber uma linguagem cheia de significados para o Brasil novo que estava nascendo. “Nosso cinema é novo, porque o homem brasileiro é novo e a problemática do Brasil é nova”, explicava Glauber.

Ele fazia questão de diferenciar o cinema brasileiro do cinema europeu. E não só chamou Louis Malle de fascista em 1980 como também reiterou, repetidamente, que o cineasta moldado por tendências tem dois destinos: a inutilidade ou a subserviência à indústria do lazer. A frase é dele: “não há vantagens em fazer filmes de conteúdo revolucionário se você imita a nouvelle vague francesa, o expressionismo alemão ou o comercialismo americano”.

Apoio aos militares - Mas Glauber não era apenas um cineasta, assim como Oswald de Andrade também não era só um escritor. Como o modernista, Glauber transcendia sua obra. Não era alemão nem pigarreava antes de falar, mas tinha postura de pensador. E era contraditório. No governo Geisel, chegou a endossar sua política numa entrevista radical à revista Visão. Também se encontrou com Figueiredo na Europa. Mas o que aconteceu? Ele virou a camisa? Rendeu-se às comendas polidas dos mais fortes?

Não. Acontece que Glauber tinha uma personalidade absolutamente indomável. Não permitia concessões à liberdade individual – mesmo que precisasse macular o autoconceito que ele mesmo fazia questão de disseminar por aí: um intelectual esquerdista, intolerante com o servilismo e inconformado com o “estado das coisas”.

Aquela pode ter sido sua forma de tentar compreender a dinâmica da política brasileira e situar-se na década de oitenta, que estava apenas começando. Mas e se alguém o questionasse ou o condenasse? Ao diabo! (na Terra do Sol).

Meio anjo, meio demônio, Glauber era, sobretudo, um ser humano - não um ícone que gesticulava, fazia amor, fumava e filmava velórios. Ele mesmo reconhecia suas estrondosas contradições. E, pra piorar, era um machista intragável. Disse uma vez: “são as mulheres que deveriam fazer o serviço militar. Não um serviço militar de guerra, mas para aprender as coisas básicas, como cozinhar, escrever o próprio nome, aplicar injeções, um mínimo de higiene. Seria uma forma de lutar contra a prostituição”.

Mas há também o Glauber frasista atrás do Glauber das cavernas: ele dizia, por exemplo, que “o Brasil é uma fazenda de 400 anos” (agora 500), que “a Espanha é a Bahia do Brasil”, e que “o cinema é, antes de tudo, uma indústria, inclusive se é dirigido contra a indústria”.

Depois dos anos 60, ele mudou muitas vezes de idéia. Fez reflexões além do seu tempo (“O fundamental é lutar para libertar o mercado nacional”) e não se calou quando desmontou o motor político que o conduzia até então: “sou brasileiro luso-tropicalista e os dogmas do marxismo já saíram da minha feijoada. Não é possível viver sob o capitalismo de Estado nem sob o capitalismo selvagem”. Glauber tentava uma terceira via. Faz falta hoje, quando não existe nem uma segunda.

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