A bananeira – Texto de Otávio Nunes

“Marimbondo, vem fazer sua casa em minhasa za-za-za. Sai azar
marimbondo. Vem fazer no teto o que é correto. Eu já sou torto, solto
e louco e não posso te morar. Ah, ah. Ou vá curtir a bananeira, que
tem eira, eira, eira. E eu não tenho eira, nem beira, não. Não tenho
eira nem beira.”

(versos da música Marimbondo, de Marlui Miranda e Xico Chaves, gravada
por Sá e Guarabira, num maravilhoso arranjo de cordas, no célebre
disco Pirão de Peixe com Pimenta, onde está a famosa Sobradinho)

Capítulo I

Jonas se encaminhou ao fundo de sua chácara para a inspeção diária de
sua horta. Reparou que os canteiros de almeirão e rúcula já estavam
prontos para a colheita. Embaixo das árvores, à margem do rio,
vislumbrou as taiobas, verdinhas, também crescendo rapidamente devido
às chuvas da época.

A banca de Jonas, no mercado municipal, tornara-se uma das mais
procuradas pelas donas de casa de Beiradinha. Só ali encontravam
verduras e plantas medicinais e de chá pouco conhecidas como taioba,
mostarda, folhas de ora-pro-nóbis, dois tipos de erva-cidreira (capim
e folha), poejo, levante, hortelã, sálvia, alecrim...

Tudo em ordem, como Deus manda e ele, Jonas, pedia. Sua horta era uma
das maiores paixões de sua vida. Frente a ela, somente sua mulher
Polina, seus filhos, a pequena Jolina e o jovem Delcidino, que
estudava na Capital, e suas pescarias.

Jonas voltou para sua casa, pegou a vara de pescar, separou as iscas e
o apetrecho de pescador e encaminhou-se à beira do Rio Dorminhoco,
como sóia acontecer todos os domingos. "Cuidado com os mandis. Da
última vez, o maldito enfiou o ferrão na sua mão", preveniu Polina.

Beiradinha tem este nome por ter sido fundada nas margens (nas beiras,
como dizem os autóctones) de um rio chamado Dorminhoco. E este último
é conhecido assim porque suas águas se movimentam lentamente em
direção ao mar e, mais uma vez a explicação nativa, quem o olha por
demais sente sono. O Dorminhoco também passa nos fundos da propriedade de Jonas e Polina, onde crescem também inhames, quiabos, mandiocas, bananeiras.

Jonas pegou as iscas e ficou pensando qual delas usaria. Tinha trazido
coração de galinha, pedaços de fígado bovino e minhocas de bom
tamanho, que proliferavam no solo fértil de sua propriedade. Optou
pelos anelídeos, conhecidos como isca universal até mesmo pelos peixes
do Dorminhoco. O bicho ainda "esperneava" no anzol no momento em que o
pescador lançou a linha até ultrapassar a metade do rio e pôs a vara
no suporte para ficar com as mãos livres.

Era dos únicos em Beiradinha a possuir molinete importado, presente de
seu filho. O rapaz comprou a preciosidade na capital. Na carretilha
tinha umas palavras esquisitas que Jonas não conseguia entender. Mal e
mal sabia sua própria língua, o que dizer das estrangeiras. Mas
adorava o presente. A vara era de plástico inquebrável e a linha,
também importada, de 50 milímetros. O conjunto suportava peixes de até
dez quilos.

Para passar o tempo, acendeu um cigarro de palha e ligou o radinho de
pilha. Minutos depois ficou sabendo, pelo noticiário, que a situação
na capital e em outras cidades grandes estava cada vez pior. A causa
dos rebeldes a cada dia ganhava mais adeptos e o governo central
parecia perder o controle da situação em algumas regiões do país. Mas
Beiradinha, distante como sonho, continuava sua vida à beira do grande
rio. O prefeito da cidade, capitão Flanélio, era governista e disse ao
povo que iria defender a cidade até o último homem.

Jonas lembrou-se do filho. "Aquele moleque está metido em alguma
confusão." Pelas cartas recebidas nos últimos meses, e lidas por
Polina, que entendia mais das letras que ele, Delcidino lutava ao lado
dos rebeldes. Seu coração de pai batia ainda mais descontrolado, como
pandeiro na mão de bêbado, por não saber detalhes do filho. Estava
escondido, preso, morto..? "Por que os estudantes querem modificar o
que existe? A mim bastam canteiros de verduras, família e beira de
rio."

De repente, a vara de pescar balançou e envergou, formando uma letra
U. Jonas empunhou a vara e começou a puxar o peixe. Quando o bicho
saltou para fora da lâmina d'água, ele vislumbrou uma bela piapara.
Era um de seus preferidos. Peixe gostoso, carnudo, pouco espinho. Mas
só deu tempo de admirar a presa, pois a piapara soltou-se do anzol e
voltou às profundezas do Dorminhoco. "Vou te pegar novamente, sua
bandida", gritou o pescador.

Jonas, ao mesmo tempo nervoso com a perda e preocupado com o filho,
pegou a isca errada. Em vez de outra minhoca, muito apreciada pela
piapara, colocou no anzol o coração de galinha. Arremessou a linha e
depositou a vara no suporte.

Capítulo II

Fazia quase um mês que não tinha notícias de Delcidino. Nem telefonar
podia, por desconhecer o paradeiro do fedelho. Além disso, Beiradinha
tinha apenas dois aparelhos, um público em frente à prefeitura e outro
na fazenda do capitão Flanélio. Rico e poderoso, o prefeito era
padrinho de seu filho e também maior produtor de bananas da província,
quiçá do país. Um terço das terras de Beiradinha lhe pertencia.

Entretanto, o que havia entre compadre Flanélio e Jonas não era
amizade, apenas um sentimento de indiferença, para Jonas, e compaixão,
do lado do capitão. Quando ainda jovem e pobre, dono de apenas uma
chácara, como Jonas, Flanélio nutrira profunda paixão por Polina.
Coisas da vida. Ela se encantou com o balconista Jonas, que já
trabalhava no mercado, em banca de outra pessoa. Casaram-se e Flanélio
ficou a ver navios. Polina achava aquele homem desajeitado, bruto e
mandão. Preferiu o modesto e distraído Jonas, mesmo que este sempre
estivesse no mundo da lua e tinha só uma chácara, herdada do pai, que
mal cabiam um pé de chuchu e um abacateiro.

Flanélio enricou-se. Dizem as más e boas línguas que pagou jagunços
para invadir terras. Em suas fazendas, as bananeiras cresciam formando
ondas verdes. Era alcaide da cidade havia mais de dez anos. Sua
palavra e figura eram tão respeitadas que fazia anos que não havia
mais oposição política a sua atuação.

O último homem que ousou emparedar o capitão Flanélio pagou caro. Foi
preso na praça no momento em que discursava impropérios contra o
poderoso. Numa tentativa de se livrar do castigo, o oponente disse que
não tinha se referido ao prefeito, mas a outro, de uma cidade distante
dali. O guarda o encarcerou com argumento insofismável. "Só pode ser o
nosso prefeito, mesmo, porque ele é o único que se encaixa em tudo que
você falou."

O opositor fugiu da cadeia e foi encontrado morto três dias depois, às
margens do rio Dorminhoco. Seu corpo já apresentava mordidas de
piranha. Havia três bananas verdes enfiadas no cadáver, duas na boca e
a terceira, em outro lugar.

Capítulo III

Polina nunca se queixou por Jonas não ter ganho mais dinheiro. Não
eram pobres, no entanto. A banca do marido no mercado municipal rendia
bem. A chácara tinha mais que dobrado de tamanho nos últimos anos, bem
como a produção de verduras e plantas medicinais. Tinha um filho
estudando na capital, coisa que poucos em Beiradinha poderiam sonhar.
Polina era feliz. Não conseguia imaginar como seria a vida ao lado de
Flanélio, sua empáfia, suas bananas, seu poder, suas amantes...

Quando a barriga de Polina deu Delcidino ao mundo, Flanélio se
ofereceu como padrinho. Foi uma festança na chácara. O menino ganhou
vários presentes e a promessa de um futuro assegurado. Depois, nunca
mais Flanélio procurou o afilhado ou seus pais. Jonas e Polina, porém,
jamais fizeram questão de lembrar Flanélio que um dia ele batizara
Delcidino na igreja da matriz, no centro de Beiradinha e molhara o pé
da criança com as águas do Dorminhoco, como era tradição na cidade.

Jonas, na beira do rio, bebeu um boa talagada de bananinha e lambeu os
beiços. A bebida era um tipo de aguardente, com acentuado aroma de
banana, produzida, conhecida e consumida apenas em Beiradinha. O maior
alambique, obviamente, pertencia a Flanélio, que tinha comprado outras
pequenas e antigas fábricas de bananinha, na tentativa de ser o único
a produzir a preciosidade.

Mas a tradição da bebida era tão antiga e arraigada na população que
ainda proliferavam na cidade várias famílias que fabricavam a cachaça
de banana artesanalmente. Muitas vezes às escondidas dos olhos do
prefeito que taxava fortemente o produto. Além do monopólio, Flanélio
desejava levar a bebida para outras cidades. Mas encontrou resistência
secular da população em vender o produto para além das fronteiras de
Beiradinha.

Enquanto pitava e ouvia músicas no radinho, Jonas foi novamente
surpreendido pelo envergar da vara. E desta vez a letra U era mais
fechada. Segurou a vara com as duas mãos para sentir a força do peixe.
"Deus meu, é dos graúdos." Começou a rodar a carretilha mas desistiu
com medo de quebrar a linha. Então resolveu apenas cansar o bicho,
para depois puxá-lo suavemente.

Foram mais de dez minutos de intensa batalha. Na água, o peixe nadava
pelejando de um lado a outro. Na margem, Jonas acompanhava risonho o
bailar do bicho, sem conseguir vê-lo. Quando percebeu a fadiga do
peixe, começou a puxar a linha pelo molinete. Era um enorme pacu,
redondo como uma bandeja. Assim que tirou da água, ficou admirando a
presa. "Bicho lindo, deve ter mais de cinco quilos. E como lutou o
desgramado. Não é à toa que é parente da piranha. Tinhoso, que só
vendo."

Quando chegou em casa, mostrou o pacu para Polina. "Prefiro piapara.
Pacu tem escama pequena e dura e os ossos são horríveis para cortar.
Mas é o maiorzinho que você pegou nos últimos tempos. Vou assar em
duas vezes durante a semana. Uma banda de cada. Agora senta aí que a
Jolina vai servir a comida", disse a mulher. Comeram frango frito,
feijão andu, mandioca, banana verde cozida com casca e doce de banana
feito com farinha de rosca ralada de pão duro. Jonas, apesar de magro,
comeu feito um frade franciscano na ceia de Natal.

Capítulo IV

Durante a semana, em sua banca de verdura no mercado, ouviu várias
conversas sobre as forças rebeldes que continuavam a avançar sobre
várias cidades e ameaçavam sitiar a capital. Seu vizinho de mercado,
vendedor de queijos, contou-lhe que ficara sabendo, por intermédio de
um parente que trabalhava na prefeitura, que o prefeito e o delegado
estavam fazendo uma lista de homens da cidade para montar um
destacamento de soldados que iriam defender Beiradinha de uma eventual
invasão.

"Capitão Flanélio, observou o comerciante, não sabe se poderá contar
com unidades legalistas, do exército nacional. Beiradinha está
entregue a sua própria sorte. Logo, logo, a polícia vai convocar todos
os homens adultos para formar a força contra-revolucionária. Como sou
velho e manco de uma perna, acho que estou fora. Mas meus filhos, não
sei não. E você Jonas? Nem aparenta a idade que tem. Será convocado,
com certeza", alertou.

Jonas narrou esta conversa e outras com Polina, à noite, fato que a
deixou irada. Ela disse que por nada neste mundo seu marido iria pegar
em armas ao lado do pulha do Flanélio, para defender um governo caindo
de podre. "Quem não for, vai preso. É o que ouvi hoje no mercado",
advertiu Jonas. "Vai nada. Eu escondo você num buraco que nem o capeta
de lupa na mão vai te encontrar." Ele perguntou onde. "Não falo, por
enquanto. Mas amanhã mesmo começo a arrumar o lugar", prometeu Polina.

Nos três dias seguintes Jonas ficou sozinho na banca, sem sua filha e
ajudante Jolina. A menina estava em casa para ajudar a mãe a construir
um local para esconder Jonas, se a polícia de Flanélio viesse atrás
dele. À noite, escondido de Polina, ele interrogava a filha sobre o
local. A garota, porém, tinha o mesmo temperamento pertinaz da mãe.
Negava, batia o pé, mas não revelava nadica de nada.

"O que será que estas duas estão aprontando pra cima de mim?", pensou
Jonas. Pela manhã, pouco antes de colher as verduras e colocá-las na
carroça, para vender, ele vasculhou meticulosamente sua chácara à
procura de uma pista sobre o esconderijo. O único local para se
esconder seria à beira do rio, onde ainda existiam várias árvores
nativas, da mata ciliar. Ele olhou, andou, cheirou, escorregou, caiu,
blasfemou, levantou a poeira da roupa e nada. De um lado, a mata às
margens do Dorminhoco, de outro, as bananeiras, pé de mandioca, de
quiabo, de chuchu, a parreira de uva e as outras frutíferas.

Antes de dormir, criou coragem e perguntou a Polina. "Será que você
quer me esconder fora da nossa chácara. No meio da mata?" Ela
respondeu com o silêncio e um olhar penetrante de desaprovação.
Segundos depois, emendou. "Não se preocupe. Durma bem, que amanhã o
dia será agitado no mercado. "Escutei no rádio que os rebeldes estão
vindo para este lado do País. Cidades maiores que Beiradinha estão se
entregando, com pouca resistência. Flanélio vai apanhar feito cachorro
vira-lata."

Jonas aproveitou para assuntar sobre o filho. Polina disse que a
última carta de Delcidino era aquela mesma, de dois meses atrás. Desde
então, explicou ela, o correio não voltou funcionar normalmente e ele
não iria ligar para a casa do Flanélio, onde há telefone. "Mas tenho
certeza que está bem, diz meu instinto de mãe. Só não sei onde."

Polina tinha razão. O diminuto centro de Beiradinha, onde o Dorminho
faz uma curva de 90 graus, se encontrava alvoroçado. Os dez policiais
da cidade estavam de prontidão nos principais pontos. Um deles no
mercado. Capitão Flanélio andava pelas ruas na tentativa de esclarecer
as pessoas e evitar furdunços. "Tudo sob controle minha gente. Os
bandidos estão sendo vencidos pelo exército nacional. Não tenham medo.
Eu garanto."

Ele entrou no mercado e tomou um copo de bananinha, no boteco em
frente à banca de Jonas. Antes de sair, puxou um dedinho de prosa com
Jonas. "Como vai compadre? E a Polina e a menina? Tudo bem?" Meio
contrafeito, mas querendo ser educado, Jonas respondeu. "Tudo bem em
casa, capitão." Flanélio Alisou a pança, como era de seu feitio,
quando conversava com alguém, e perguntou sobre o afilhado.

Jonas respondeu que a última carta era de dois meses atrás. E ele
estava bem. Desde então o correio começou a falhar na entrega de
correspondências. "É verdade compadre. Os tempos são duros. Espero que
o menino não tenha tido o desatino de se alistar ao lado dos
bandidos." Ao ouvir isto, Jonas empalideceu, temeroso.

"Se necessário – continuou Flanélio -, em breve começo a recrutar
homens de fibra nesta cidade para lutar contra os vagabundos que
querem tomar o poder no País." Alisou a pança novamente e observou.
"Ore com força e fé, compadre Jonas, você e Polina, para que Delcidino
não esteja metido com os do outro lado." As últimas palavras foram
pronunciadas em tom de advertência. E saiu, deixando atrás de si
várias pessoas que olhavam aquele vulto gordo sem saber o que iria
acontecer com a cidade.

Capítulo V

Flanélio ainda nutria esperanças de que o governo central enviasse
alguns destacamentos do exército para ajudar a região do Dorminhoco.
Nas margens do rio, havia meia dúzia de cidades, dos mesmo tamanho e
importância econômica de Beiradinha. Ou seja, todas pequenas e pobres.

Quinze dias depois de sua conversa com Jonas, o capitão chamou seus
secretários de prefeitura e os capatazes de suas fazendas e anunciou.
"Estamos sozinhos. Só dependemos de nós mesmos. Dos homens mais
valentes que tiveram seus pés abençoados pelo Dorminhoco. Vamos
começar o alistamento voluntário em que todos terão de participar.
Quem não aceitar, será preso como desertor."

Depois da reunião, o prefeito ficou sozinho com o delegado e foram,
ambos os dois, verificar o arsenal de que dispunham. Contaram pouco
mais de 50 armas, entre rifles e revólveres. Metralhadora, nenhuma.
Muitas das armas ou eram velhas ou nunca tinha sido usadas. A munição
também era pequena. A idéia era montar uma série de bombas caseiras e
explosivos de garrafas, para complementar o pouco armamento.

A reunião foi secreta. Porém, o guarda que tomava conta da porta ouviu
e contou para seu vizinho. Como tudo que é ruim na vida, a notícia
espalhou-se velozmente pela cidade. Até as águas do grande rio
aumentaram a velocidade do seu curso.

Assim que Jonas chegou em casa, Polina ordenou-lhe que tomasse um bom
banho porque dali para frente talvez demorasse a ter outra chance.
Atordoado, lavou-se e comeu e ficou esperando o que a mulher iria
fazer. Ela pegou alguns lençóis, um balde velho e um rolo de papel
higiênico e disse. "É tudo que você precisa para se esconder. A comida
eu e a Jolina levaremos, uma vez por dia." Jonas perguntou. "Para que
o balde?" Séria como estátua, Polina respondeu. "É para aquelas
necessidades."

Os três caminharam às escuras rumo aos fundos da chácara. Perto da
toiceira formada pelas bananeiras, Polina retirou as folha secas e
mostrou um enorme buraco a Jonas. "É aqui que você vai se esconder.
Tem um buraquinho para entrar ar." Estupefato, Jonas coçou a cabeça.
"Meu Deus. Vão me descobrir." Polina garantiu que não. As folhas secas
das bananeiras cobriam toda a boca do buraco. Ninguém veria nada. E
ainda tinha uma tábua de compensado para tapar o buraco, por baixo das
folhas secas. "A sua casa, a partir de hoje, é a bananeira", disse,
resoluta. Ele entrou no buraco com a sua tralha e ela tapou
cuidadosamente. Não se preocupe com a banca do mercado, eu a Jolina
tomamos conta.

No dia seguinte, pela manhã, Polina foi levar sua comida e uma moringa
de água "É almoço e janta juntos, pois nós duas vamos ficar fora o dia
todo, no mercado. Não coma tudo de uma vez. E não saia daí nem pra
soltar seus gases fedorentos. Amanhã eu lavo o balde das necessidades." Sonolento e suado, Jonas perguntou o que aconteceria com ele se chovesse, pois o buraco entre as bananeiras estava numa ribanceira. Polina lhe disse que havia feito uma canaleta, por trás, para direcionar a água ao rio, evitando que inundasse o buraco. "Um pouco sempre entra, não tem jeito", justificou a mulher.

Capítulo VI

Era mais de meio-dia, quando o delegado entrou no mercado e foi direto
à banca de Jonas. Perguntada sobre o marido, Polina disse que não
sabia o que tinha acontecido com ele, sumido desde a noite passada.
"Estranho, vários homens da cidade desapareceram por completo, de
repente", assinalou o policial. No entanto, assegurou que continuaria
a buscar "voluntários" para a Força de Salvação Municipal, nome que o
prefeito tinha dado ao grupo de combatentes contra a revolução.

Polina fechou a banca uma hora antes do normal, preocupada em chegar
cedo em casa para ver como estava o marido e providenciar o jantar.
Encontrou Jonas dormindo como pássaro no ninho. Ela o chamou e disse
que podia sair um pouco do esconderijo para tomar um banho e comer à
mesa. "Mas depois, volta à bananeira."

Ele reclamou de dor nas costas e nas pernas por ter de ficar sentado
no chão. Se tentasse ficar em pé no buraco, era obrigado a se curvar
para não bater a cabeça na tampa de madeira. "Você devia pelo menos
medir minha altura antes de abrir o buraco", comentou. "Na pressa, a
gente sempre esquece alguma coisa", desculpou-se Polina. Ela contou
também que muitos homens da cidade estavam escondidos, como ele. "Só
não sei se dentro de um buraco confortável, como o seu", brincou.

Logo depois do jantar, quando Jonas se encontrava deitado no chão da
varanda, para esticar o corpo que tinha ficado torto no buraco,
bateram palma no portão, de forma violenta. Era Flanélio e parte de
sua Força de Salvação. Rapidamente, Polina ordenou que Jonas voltasse
à bananeira e Jolina ajudasse o pai a tampar o buraco e disfarçar o
local com as folhas secas. Os dois correram para os fundos da chácara
e Polina foi atender aos visitantes.

Flanélio alisou a barriga e perguntou sobre Jonas, obtendo de Polina a
mesma resposta dada ao delegado. "Você está escondendo aquele covarde, como outras mulheres fizeram na cidade. Mas muitos e eu já encontrei", disse Flanélio, forçando a porteira da chácara. "Você não tem o
direito de entrar na minha casa", gritou Polina. O prefeito respondeu
que tinha decretado estado de sítio na cidade e "em tempo de guerra a
lei sou eu".

Flanélio e três guardas entraram na chácara e vasculharam tudo. De
longe a pequena Jolina torcia para que não entrassem na moita de
bananeira. Devido à escuridão, os guardas levaram tombos, tropeçaram
nos tocos, bateram cabeça em galhos de árvore, enfiaram os pés em
buracos. Um deles, junto com Flanélio, revistou a casa. No fim, nada
de encontrar Jonas.

Nervosa, Polina xingou Flanélio de contrabando de banha, um de seus
apelidos mais populares em Beiradinha. "Respeite minha autoridade se
não prendo você como espiã e traidora." Polina riu e quis saber por
que espiã? Flanélio contou que estava desconfiado que Delcidino se
correspondia com ela. "E isto é traição. Sei que o moleque está
engajado nesta bagunça desde o início, no ano passado, e já tem até
patente de capitão, como eu", confidenciou Flanélio.

"Se ele tem mesmo, é por merecimento e não como você que foi expulso
do exército por comer e dormir demais e saiu soldado raso, mais raso
que um pires", vociferou Polina. Ele disse que não iria bater boca com
ela, mas ameaçou. "Se eu pego este moleque, acabo com ele e sua corja
de barbudos." Polina lembrou que ele não deveria falar assim do rapaz.
"Afilhado é como segundo filho e no seu caso ainda mais importante,
pois não foi homem capaz de fazer filho em mulher nenhuma." Flanélio
quis avançar sobre Polina mas os guardas o seguraram e Jolina, forte
como gafanhoto, desferiu-lhe vários pontapés.

Flanélio foi embora no escuro da noite, irado e bufando como touro.
Polina havia tocado no assunto mais delicado de sua vida. Ele nunca
tivera um filho. Casou-se quatro vezes. Teve dezenas de amantes. Mas
não fez nenhuma barriga crescer e lhe dar frutos. Sempre achou que o
problema não era dele e sim das mulheres. Na cidade comentavam que
Flanélio tinha "aquilo seco e dali não sai nada", e jamais poderia ser
pai.

Muitas famílias pobres de Beiradinha lhe ofereceram crianças para ele
criar como filhos. Nunca aceitou. Queria um rebento com seu próprio
sangue. Uma continuação de sua estirpe. Por momentos em sua vida,
pensou em transferir o amor de pai, que ainda nutria em seu coração,
para Delcidino. O orgulho o impediu. Polina preferiu Jonas a ele. E
isto foi difícil aceitar.

Capítulo VII

Como o tempo é o melhor esparadrapo que existe na farmácia da vida,
aceitou a decisão de Polina. Sabia que a índole forte daquela mulher,
filha de professora e de lavrador, seria um fardo por demais pesado
para seu temperamento de homem que sempre primou pelo desejo de
ordenar e ser atendido. "Dois bicudos não conseguem se beijar",
pensava Flanélio, com seus botões. Chegou até a entender porque duas
pessoas com gênios tão distintos, como Jonas e Polina, tinham dado
certo. "É por isso mesmo, pelas diferenças."

Através da madrugada, em seu esconderijo na bananeira, Jonas pensava
na vida. De um lado seu filho, do outro Polina e no meio Flanélio. Não
sabia se torcia para os rebeldes chegar logo e tirar ele do buraco,
para Polina aceitar a situação e deixá-lo entrar na Força de Salvação,
ou para o mundo de Flanélio se esboroar como uma fatia de bolo de
fubá.

Por dentro, Jonas sentia uma gota de pena do gordo capitão. Como pode
em pouco tempo um homem perder tudo o que construiu na existência.
Mas, também, Flanélio causou o mal na cidade, impondo sua vontade e
poder. Jonas não gostava de desejar o mal a ninguém, nem ao mais
sacripanta de todos. Trocaria tudo o que estava acontecendo por uma
hora na beira do rio, pescando piaparas, pacus, dourados, traíras,
bagres e mandis com seus ferrões.

Por volta das três horas da manhã, tempo calculado pela posição da
lua, já que não tinha relógio no buraco, Jonas sentiu os intestinos se
enrolar. Olhou para o lado e notou que havia esquecido o balde das
necessidades e o papel higiênico. Não pensou muito. Saiu do
esconderijo e se aliviou na canaleta, tapando a sujeira com terra,
como fazem os gatos.

Para se limpar, pegou um naco de folha de bananeira. Lisa como ela só,
teve de usar vários pedaços. Devido ao sereno da madrugada, acumulado
em pequenas gotas nas folhas da bananeira, Jonas emitia um grunhido de
frio arrepio ao passar a folha nas nádegas. Entrou no buraco e dormiu
o sono dos justos.

Três madrugadas depois, mais ou menos na mesma hora, acordou ao ouvir
tiros, vozes e gritarias de pessoas, latidos de cachorros, mugidos de
vaca, relinchos de cavalo e piar de corujas. Segundos depois, alguém
tirou a tampa do buraco com os pés. Jonas, contraído pelo medo, olhou
de soslaio para cima e viu o vulto de um homem alto, magro, trajando
roupas rasgadas e sujas, barbudo e com um fuzil enorme nas mãos.

"Pode sair daí, meu pai. Acabou", pediu Delcidino, estendendo a mão.

Epílogo

Após a vitória da revolução, Delcidino ficou em Beiradinha e tomou
para si as terras de Flanélio, o qual desapareceu por completo junto
com 15 homens de sua Força de Salvação Municipal. Capitão Delcidino
tornou-se o prefeito e hoje, doze anos depois, continua no cargo. Quis
dar metade das fazendas a seu pai. Polina não aceitou. "Não quero o
que não é meu." Jonas concordou apenas em ganhar uma nova carroça para transportar suas verduras ao mercado.

Jonas, hoje, está velho e cansado. Tem força apenas para plantar e
colher sua plantação, mas não consegue tirar um peixe de cinco quilos
da água. Jolina estuda na capital. Polina continua forte e decidida
apesar dos anos. No entanto, rompeu relações com o filho, por não
concordar com seus métodos administrativos à frente da prefeitura. Há
mais de cinco anos não se falam.

A vida em Beiradinha está como sempre esteve. Quem tinha, acumulou. Os
que não tinham, continuam a viver da esperança. O Rio Dorminhoco se
movimenta cada dia mais lento, como se soubesse que caminha rumo a um
futuro inalcançável.

E-mail: otanunes@gmail.com

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